Na verdade, há muita hipocrisia em alguns discursos políticos mais recentes sobre a “autodeterminação” e o “referendo”, como forma de resolução do alegado diferendo do Sahara Ocidental.
Efetivamente, só quem não acompanha a evolução desse “dossier” e esteja desatento à geopolítica do mundo e, particularmente, da Região do Magrebe Árabe, continua a falar do referendo para o Sahara Ocidental.
É que, a tentativa de um referendo para o Sahara Ocidental, na sequência da criação Missão das Nações Unidas Para o Referendo no Sahara Ocidental, MINURSO, desembocou num impasse total por causa de desacordo entre as partes na definição de um recenseamento eleitoral dos saharauis.
Apesar do apoio técnico de especialistas internacionais, as Nações Unidas concluíram que, tecnicamente, era impossível a realização de um referendo para o Sahara Ocidental.
Portanto, quando se fala, ainda, de um referendo e na Missão das Nações Unidas Para o Referendo no Sahara Ocidental, MINURSO, não fica bem a Cabo Verde como membro das Nações Unidas que tem a obrigação de conhecer o processo, até porque o nosso país tem um representante permanente junto dessa Organização Internacional que deve ser consultado sempre antes de qualquer pronunciamento público sobre esse processo.
Assim, posto de lado o referendo, as Nações Unidas lançaram um novo processo para o Sahara Ocidental, com base numa nova «doutrina» sobre a questão do Sahara: a busca de uma solução política negociada e mutuamente aceitável.
Assim, após a entrega da iniciativa marroquina para a concessão de um estatuto de autonomia para o Sahara ocidental, o Conselho de Segurança reuniu-se em 30 de Abril de 2007 para aprovar a Resolução 1754, que constitui um ponto de viragem histórica no tratamento da questão do Sahara Ocidental. Com essa Resolução o Referendo deixou de ser a via para a resolução da questão do Sahara tendo as Nações Unidas mudado a sua abordagem e o método para encorajar as partes a negociar de boa-fé a fim de chegar a uma solução política mutuamente aceite.
E é, precisamente, esse novo processo que inspirou o debate sobre a questão do Sahara Ocidental, desde 2006, em particular com base na Resolução 1754 do Conselho de Segurança das Nações Unidas que reafirma o compromisso da ONU em «ajudar as partes a alcançar uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceite», tomando nota da proposta marroquina de uma larga autonomia para o Sahara Ocidental, apresentada em 11 de Abril de 2007 ao Secretário-Geral, proposta essa considerada «séria e credível» para a resolução definitiva desse diferendo.
Segundo o «Conseil Royal Consulatif des Affaires Sahariennes», CORCAS, uma Instituição criada para apoiar o Rei de Marrocos, Sua Majestade Mohamed VI, na questão do Sahara Ocidental, «com a proposta marroquina para a região do Sanhara Ocidental, o processo de negociações entre Marrocos e a Frente Polisário retomou-se após vários anos de «status quo», sendo que a nona ronda de negociações entre o Reino de Marrocos e a Frente Polisário realizou-se de 11ª 13 de Março de 2012, em Manhasset, Nova York, com a presença de Argélia e Mauritânia como observadores (conf. Royaume du Maroc, Conseil Royal Consultif des Affaires Sahariennes-CORSAS, pags 72 e 155).
Com base nessa nova abordagem da questão do Sahara Ocidental, ou seja, «a busca de uma solução política negociada e mutuamente aceitável» e reconhecendo o «erro histórico» da Organização da Unidade Africana (OUA) e da sua sucessora, a União Africana (UA) em reconhecer a chamada República Árabe Saharaui Democrática (RASD) como seu membro, em violação da sua própria Carta Constitutiva, que só reconhece como membro os Estados (a RASD não é e nunca foi um Estado à luz do Direito Internacional), muitos Estados africanos, incluindo Cabo Verde, “congelou” o seu reconhecimento (aconteceu no Governo do PAICV e do Dr José Maria Neves) à RASD, tendo surgido a partir de 2006 uma «onda» de apoio ao plano de autonomia apresentado por Marrocos. Mais recentemente, no Seminário C24 para o Pacífico que se realizou de 24 a 26 do passado mês de Maio, em Bali, Indonésia, vários países africanos, nomeadamente, o Gabão, a Costa de Marfim, a Serra Leoa, e outros países da Ásia e do Pacífico, reiteraram esse apoio ao plano de autonomia apresentado por Marrocos.
Assim, nota-se muito cinismo nos discursos políticos quando se afirma que é preciso um referendo para o Sahara Ocidental, uma questão já ultrapassada pelas Nações Unidas, como supra demonstrado. Esse cinismo é ainda mais acentuado quando para reivindicações idênticas, de outros povos e territórios, no plano internacional, já há outros posicionamentos, por alinhamento ideológico e, quiçá, por outros interesses.
Em política, é preciso coerência, mesmo admitindo que possa haver “dois pesos e duas medidas” nas relações internacionais! É preciso seriedade na análise de questões sensíveis como essa do Sahara Ocidental, sob pena de se cair no Ridículo!
O posicionamento do Governo de Cabo Verde, que tem a competência, constitucional, para dirigir a política externa do país, em relação ao Sahara Ocidental é correto, coerente, vai ao encontro das aspirações dos saharauis e está em consonância com a evolução desse processo, no quadro das Nações Unidas, como acima mencionado.
A União Africana (que sucedeu a OUA), contrariamente à algumas recentes declarações, não tem legitimidade para intervir e mediar na questão do Sahara Ocidental porque reconheceu esse território como seu membro, em violação da sua própria Carta Constitutiva, quando havia ainda um diferendo com Marrocos.
Por isso, ao posicionar-se ao lado de uma das partes, essa Organização foi parcial e, consequentemente, não tem legitimidade para intervir nesse processo, como «mediador». Aliás, a onda de «congelamento» do reconhecimento da RASD e de apoio ao plano de autonomia apresentado por Marrocos constituem um verdadeiro descrédito dessa Organização e a prova do seu falhanço total na questão do Sahara Ocidental.
Nota-se que das Organizações Internacionais no mundo, só a UA reconheceu a chamada RASD. O resto das Organizações Internacionais, como, por exemplo, a ONU, os Países Não Alinhados, a Liga Árabe, a Organização da Conferência Islâmica, a União Europeia, e outras alinharam-se com o Direito Internacional e conformaram-se com as resoluções das Nações Unidas e, atualmente, com a Resolução 1754 que procura encontrar uma solução política e consensual para o conflito «estéril» do Sahara Ocidental através de negociação e diálogo.
Cabo Verde ao reconhecer a integridade do Reino de Marrocos, incluindo o Sahara Ocidental, e o plano de autonomia apresentado por Marrocos, teve uma posição coerente com o Direito Internacional, nomeadamente com o Tribunal Internacional de Justiça, TIJ, e as posições da Organização das Nações Unidas, particularmente, do seu Emissário Especial, Peter van Walsum.
Em 1974 o TIJ, uma Instituição das Nações Unidas, com sede em Haia, Holanda, respondendo ao Parecer Consultivo (Advisory Opinion) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de acordo com o Capítulo IV do seu Estatuto, sobre o Sahara Ocidental e mais precisamente sobre a questão de saber se o Sahara foi sempre «terra nullius» e, em caso de resposta negativa se existia um laço com Marrocos, respondeu as duas perguntas favoravelmente à Marrocos: esse território não era terra «nullius» e os seus habitantes tinham laços de fidelidade com os Reis (na altura Sultões) de Marrocos, a quem prestavam «allégeance». Assim, para o TIJ não há dúvida de que o Sahara Ocidental faz parte integrante de Marrocos.
É bom realçar que a iniciativa desse pedido de Parecer, «Advisory Opinion, ou Avis Consultatif», foi do próprio Reino de Marrocos, na pessoa do falecido Rei Hassan II, e foi dirigido à Espanha, antiga potência colonizadora do Sahara, em 17 de Setembro de 1974.
Não tendo a Espanha avançado com esse pedido, a Grã-Bretanha requereu à Assembleia Geral das Nações Unidas esse pedido ao TJI, que foi aceite. Assim, com um parecer favorável do TIJ, Marrocos, através do falecido e visionário Rei Hassan II, em 1975 dirigiu a histórica «Marcha Verde», com o acordo da Espanha, que culminou na recuperação do Sahara Ocidental e o regresso desse território à pátria mãe, o Reino de Marrocos. Não de trata de uma «colonização» como lhe chamam alguns ideólogos comunistas e nostálgicos da guerra fria. Muito pelo contrário, com a recuperação da parte sul do seu território, o Sahara, Marrocos deixou de ser colonizada pela Espanha, pondo, assim, ponto final na dupla colonização que sofreu: França, parte norte e Espanha, parte sul (Sahara Ocidental).
Convém realçar, para melhor compreensão e análise, que o Emissário das Nações Unidas para o Sahara Ocidental, em 2008, o diplomara holandês, na época, Peter van Walsum, anunciou que chegou a conclusão que «a opção independentista reclamada pelo Polisário («Braço» Armado da RASD) é irrealista e que o estabelecimento de um sexto Estado no Magrebe não é possível», reforçando, desta forma, o plano de autonomia apresentado por Marrocos como a única solução para a resolução desse diferendo.
É, também, um posicionamento que acompanha a evolução do mundo e a dinâmica das relações internacionais e da Nova Ordem Mundial.
As críticas que se ouvem por aí, nomeadamente, de que não se deve alterar a nossa política externa, são, francamente, infundadas e desajustadas da realidade do século XXI. É que terminou a guerra fria e a política do Não Alinhamento que vincaram no século passado.
Hoje vivemos uma Nova Ordem Internacional e a diplomacia deve ser ajustada à nova realidade do mundo, cada vez mais complexo, imprevisível e multipolar.
Desde a Conferência de Paz que se realizou em Westphalie, uma região da Alemanha, há quatro séculos, a Ordem Internacional, que ali se inventou, sofreu evolução, de acordo com as mutações da política internacional. A Ordem Internacional de hoje exige um diálogo permanente, o chamado «Soft Power», para se chegar a entendimentos no mundo, em detrimento de conflitos.
Segundo Henri Kissinguer, ex-Secretário de Estado Norte Americano, que terá vaticinado a «impossibilidade» do Estado de Cabo Verde em 1975, «a tendência natural dos responsáveis políticos, nomeadamente, nas sociedades pluralistas, é de engajar o diálogo com os responsáveis da revolução, na convicção de que tudo o que querem, no fundo, é negociar de boa -fé sobre as premissas da ordem existente e chegar a uma solução razoável» (L´ORDRE DU MONDE, COMMENT EVITER LE CHAOS MONDIAL», pag 10, Pluriel, 2014, KISSINGUER HENRY).
Para Kissinger, o «Soft Power» nas relações internacionais é importante para se chegar a entendimentos. Essa visão, aliás, sábia, desse conhecido diplomata americano, vai ao encontro da nova abordagem das Nações Unidas para o Sahara Ocidental, consagrada na Resolução 1954 do Conselho de Segurança.
Assim, a política internacional e a diplomacia evoluem e acompanham a dinâmica do mundo. Só assim se apercebe a evolução do posicionamento de Cabo Verde nesse processo. É que, do reconhecimento da RASD como Estado, nos primeiros anos da nossa independência, a posição de Cabo Verde evoluiu para o “congelamento” desse reconhecimento, pelo Governo do PAICV, e agora a posição do Governo de Cabo Verde, do MPD, evoluiu para o reconhecimento do Sahara Ocidental como parte integrante de Marrocos. Uma evolução normal de posição, de acordo com a evolução da Nova Ordem Internacional e das relações internacionais que tem sempre como pressuposto principal o interesse dos Estados.
Assim, a posição, atual, do Governo de Cabo Verde, que está em conformidade com a nova abordagem das Nações Unidas para o Sahara Ocidental, não é isolada, no plano internacional, pois, alinha-se com os posicionamentos da quase maioria dos países africanos, dos Estados Unidos da América e da Europa, nomeadamente da Espanha, antiga potência colonizadora.
Essa autonomia existe nos países ocidentais mais desenvolvidos do mundo e ao reconhecer a integridade territorial de Marrocos, incluindo o Sahara Ocidental e uma larga autonomia para esse território, Cabo Verde, uma vez mais, alinha-se com as melhores práticas do Direito Internacional que asseguram a paz e a estabilidade no mundo.
Assim, contrariamente ao que se diz, o princípio da autodeterminação dos povos, consagrado na Constituição da República de Cabo Verde não afasta a autonomia dos territórios, como o Sahara Ocidental. A autodeterminação não implica, necessariamente, um referendo para os povos decidirem o seu destino.
A Carta das Nações Unidas proclama a autodeterminação como um dos princípios da ONU. Neste momento, como sobejamente realçado supra, está sobre a mesa de negociações entre Marrocos e a Polisário a proposta marroquina de uma larga autonomia para o Sahara, proposta essa considerada «credível e séria», pelas Nações Unidas, o que significa que a autonomia é também uma das formas de autodeterminação dos povos, proclamada na Carta da ONU.
Ao reconhecer a integridade territorial de Marrocos, incluindo o Sahara Ocidental, a decisão do Governo não viola a Constituição de Cabo Verde, tanto mais que o reconhecimento dos Estados, no Direito Internacional, é uma decisão política e soberana de cada Estado.
É bom recordar, para terminar, que aqueles que mais criticam, hoje, essa postura do atual Governo de Cabo Verde em reconhecer a integridade territorial de Marrocos, incluindo o Sahara Ocidental, foram aqueles que mais beneficiaram, no passado, da ajuda e solidariedade de Marrocos durante a luta de libertação para a independência da Guiné e Cabo Verde. E, após a independência, o reconhecimento da RASD pelo então Governo do partido único, não terá sido tão pacífico no seio do próprio Governo do PAIGC/CV, devido as boas relações dos então dirigentes no poder com o Rei Hassan II de Marrocos. Não terá «caído» um membro do Governo do então partido único em Cabo Verde por causa da sua «ousadia» em apoiar, numa Conferência Internacional, a «independência do Sahara»?
O reconhecimento da integridade territorial de Marrocos, incluindo o Sahara Ocidental, que marca uma “nova era”, com o estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países e, sobretudo, com a instalação de um Consulado em Dakhla, no Sahara Ocidental, é uma decisão política de grande envergadura, da competência, constitucional, exclusiva, do Governo, legitimo, da República de Cabo Verde, que dirige a política externa do País, e deve ser respeitada por todos, incluindo os restantes órgãos de soberania.
Contrariamente à alguns discursos, recentes, separar as relações diplomáticas entre Cabo Verde e Marrocos do reconhecimento da integridade territorial de Marrocos, incluindo o Sahara Ocidental, para Cabo Verde não faz nenhum sentido e pode ser encarado por Marrocos como uma “marche arrière” nessa tão ambiciosa relação que se projeta para o futuro.
Com esse reconhecimento, o Governo de Cabo Verde e a sua diplomacia deram um passo importante na sua reafirmação como Ator atento da política internacional, alinhando-se com as melhores práticas das relações internacionais, da Nova Ordem Internacional e ainda com a Resolução 1754 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, contribuindo para a paz e segurança em África e o aprofundamento das relações de cooperação com o Reino de Marrocos, dirigido, superiormente, por sua Majestade o Rei Mohamed VI, um amigo de Cabo Verde e do continente africano.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1123 de 7 de Junho de 2023.