Por uma cultura do cumprimento da Constituição

PorA Direcção,2 out 2023 7:53

A Constituição democrática de Cabo Verde completou 31 anos no passado dia 25 de Setembro. É interessante notar a sobriedade com que a data foi marcada. Mereceu uma conferência de imprensa do presidente da república e um encontro com dois conferencistas, organizado pelo grupo parlamentar do MpD. Da comunicação social pública não se notou na sua programação o entusiamo habitual dedicado normalmente aos feriados e outras referências históricas do regime do partido único, algo visível no dia anterior nos 50 anos da Guiné-Bissau.

Dos meios académicos e universitários não houve registos também de reflexões sobre a magna carta do país, em contraposição com a preocupação da universidade pública em organizar o evento “Diálogo de gerações” por altura do 99º aniversário de Amílcar Cabral, o fundador e ideólogo do PAIGC.

É de se perguntar se esses sinais de indiferença resultam de uma suposta “paz constitucional” que se teria chegado na sequência da revisão de 2010, como postulam certos estudiosos e personalidades. Ou, se pelo contrário, têm a sua origem na hostilidade latente que mantém sempre activo o velho reflexo conformista e obriga a omissões graves na celebração dos princípios e valores da democracia liberal e constitucional. Quando aparentemente se sai da indiferença é muitas vezes para mostrar as insuficiências constitucionais em particular na materialização dos direitos de segunda e terceira geração. Quer-se repetir de forma mais ou menos disfarçada a velha disputa de qual vale mais: a liberdade ou o pão.

A história, porém, demonstra que quando se cai na ilusão de pôr primeiro o pão perde-se a liberdade e sacrifica-se o pão. Prosperidade continuada e sustentável depende da capacidade de criação de riqueza que por sua vez é favorecida pela iniciativa individual, o espírito criativo e inovador e a disponibilidade em correr riscos. Liberdade é o ingrediente básico e indispensável porque pressupõe a igualdade de todos perante a lei, a segurança dos indivíduos, da propriedade e dos contratos, o Estado de direito, governos democráticos e a existência de tribunais independentes.

Não é apontando as insuficiências e o quanto se está aquém do ideal constitucional e da democracia como fazem os populismos de direita e de esquerda é que se renova a vontade de garantir o respeito pela dignidade humana, da realização da igualdade e de assegurar o direito à busca pela felicidade. A democracia é, de uma certa perspectiva, um jogo em que os indivíduos na diversidade dos seus interesses e no pluralismo das suas ideias vão traçando um caminho nem sempre linear para a realização do bem comum. Para isso, porém, é fundamental o cumprimento das normas constitucionais. E a cultura democrática adquire-se cumprindo as normas assim como para ser um bom jogador de xadrez e traçar estratégias ganhadoras tem que se conhecer bem as regras do jogo e não procurando introduzir outras regras a meio da partida.

Infelizmente, muito do que vem sendo apresentado como iniciativas para ultrapassar a crispação política, manifestações de partidocracia e actos que configuram tirania da maioria não vai no sentido de pressionar para o cumprimento da Constituição. Nem tão pouco de exigir dos titulares de órgãos públicos o exercício efectivo das suas competências, respeitando a separação dos poderes, e de responsabilização plena de todos os actores pelos actos de governação. Prefere-se muitas vezes ficar pelo “atirar pedras contra o sistema” num exercício que gera frustrações e ressentimentos, abre espaço para o cinismo em relação à política e aos políticos e mina as possibilidades de desenvolvimento de uma cultura cívica essencial para restaurar a confiança e criar capital social. No fim do dia só se vêem os vestígios dispersos do que foram movimentos, associações, fóruns e grupos de candidatura a eleições autárquicas.

Também não fiscalizando os órgãos de soberania e o conjunto da classe política no sentido de uma maior conformidade constitucional e entretendo-se só com denúncias de corrupção, outros fait divers e pelo espectáculo de manifestações desmedidas de poder de certos políticos, muitas vezes deixa-se passar ao lado disfunções graves da democracia. Se ao nível central tais situações podem acabar por ser notadas já no poder local nos municípios é mais difícil. O que se passa em particular nos municípios da Praia e de S. Vicente é paradigmático a esse respeito.

De facto, o grau de escrutínio que os órgãos municipais são submetidos pelos próprios munícipes é muito menor do que acontece ao nível nacional. A atenção dos media não se foca nos problemas locais e os órgãos municipais que deviam primar pela colegialidade no seu funcionamento são vincadamente dependentes do órgão executivo singular que é o presidente da câmara. A situação complica-se com a fraca pressão social e política para forçar os eleitos nas assembleias municipais e os vereadores a chegar a entendimentos sobre o que fazer e que recursos alocar na resolução dos problemas locais. Também não ajuda a tendência para o caciquismo do órgão executivo singular que curiosamente nem está previsto na Constituição.

Porque os dois órgãos municipais são directamente eleitos, em caso de falta de diálogo e de um acordo negociado e na impossibilidade de um dissolver o outro só pode resultar num bloqueio institucional. A existir uma cultura de responsabilidade e de credibilização das instituições, essa constatação devia servir de incentivo para se chegar a compromissos com mais facilidade. Infelizmente, prevalece uma atitude de pôr à frente as conveniências do momento e até de sacrificar princípios para conseguir ganhos tácticos na luta politico-partidária. Na falta dessa cultura de compromissos, situações como a de S.Vicente não acontecem mais vezes nos 22 municípios só porque na generalidade funcionam com maioria absoluta e o diálogo político que domina não é o centrado nos problemas locais, mas no que repete a agenda nacional dos partidos.

Mais complicado e prenhe de consequências é o que aconteceu no município da Praia em que se fugiu às normas legalmente estabelecidas e aplicadas em todos os municípios, ao longo dos mais de trinta anos do poder local, na discussão e aprovação do orçamento municipal. A um ano das próximas eleições autárquicas ainda não houve uma resposta institucional efectiva e atempada para repor a legalidade. A impunidade reinou e a expectativa é que seja legitimada nas urnas daqui a um ano.

É um grave precedente que se abre e que da parte dos órgãos de soberania, da classe política e da sociedade não mereceu atenção adequada. Já se conhece da história recente de alguns países de como políticos e partidos singram na busca do poder atirando-se ostensivamente contras as normas e as instituições democráticas. Ganham áurea de autênticos e intocáveis ao ficarem repetidamente impunes perante os sucessivos atropelos dirigidos contra as instituições, perante a complacência geral.

Evitar que tanto essa estirpe daninha de políticos se espalhe e contamine toda a política nacional, deve ser uma preocupação de todos. O antídoto para esse tipo de desvio é o cultivo de uma sólida cultura constitucional e a rejeição de ideologias revolucionárias. A instituição do Dia da Constituição, uma ideia a que o PR se associou durante a conferência de imprensa do passado dia 25 de Setembro, podia ser um bom começo para isso. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1139 de 27 de Setembro de 2023.

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Autoria:A Direcção,2 out 2023 7:53

Editado porAndre Amaral  em  19 jun 2024 23:29

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