O Estado de Cabo Verde parece já ter assumido o culto de Cabral, o culto da personalidade do líder do PAIGC assassinado na Guiné-Conacri pelos próprios companheiros de partido a 20 de Janeiro de 1973. Um culto que, à semelhança de outros cultos de personalidade, em particular nos séculos XX e XXI, caracteriza-se, segundo o sociólogo Adrian Popon, por demonstrações públicas, quantitativamente exageradas e qualitativamente extravagantes, de louvor ao líder.
Foi o que se assistiu nestes últimos dias de frenesim à volta de Cabral que se viu coroado no discurso do presidente da república que o homenageia entre muitas outras coisas como visionário, pedagogo, estudioso, cientista social, especialista, formador, humanista, pensador, diplomata, soldado das causas da ONU, teórico e prático, político pragmático, defensor da igualdade de género, defensor do direito internacional e militante contra a pobreza. Para uma outra ocasião terão ainda ficado as qualidades de estratego militar e de poeta. Com os olhos postos no centésimo aniversário do nascimento de Cabral em Setembro de 2024 já foi logo anunciado que todo o período até lá vai ser marcado por múltiplas e variadas iniciativas de homenagem ao herói.
A questão que se coloca é se esse tipo de homenagem que passa por projectar a imagem idealizada e quase messiânica de uma personalidade política é própria de um Estado de Direito Democrático assente nos princípios da soberania popular e no pluralismo de expressão. De facto, uma operação do género só pode ser mantida pela via da propaganda e exposição mediática, onde não é significativa qualquer dissenso e onde há sistemática falsificação da história e da cultura de uma sociedade. Só dessa forma é que se consegue manter viva uma perspectiva história linear que inexoravelmente desemboca no líder e que permite que se proclame que “renascemos com Cabral enquanto comunidade política” e que ele seja ainda a “fonte de inspiração para enfrentarmos os desafios do nosso tempo”. Não se pode deixar de notar o tom quase religioso dos cultos de personalidade que, embora seculares, vão se socorrer de uma espécie de messianismo para justificar a intemporalidade do pensamento e da acção do líder.
No século passado, depois de Mussolini na Itália, Hitler na Alemanha, Estaline na União Soviética, Tito na Jugoslávia, Mao Tsé-Tung na China, Péron na Argentina, os cultos de personalidade proliferaram-se por vários outros países com regimes autoritários, totalitários e de partido único. Actualmente só subsistem em alguns deles e tendem a renascer em regimes progressivamente autocráticos ou em derivas iliberais pronunciadas. Cabo Verde poderá querer definir para onde quer ir com o ressuscitar de práticas e ideologias que frontalmente colidem com o sistema de princípios e valores instituídos na Constituição. Também quererá saber das implicações de insistir num culto de Cabral quando a Guiné-Bissau, de onde advêm todas as referências, de há muito que vem atenuando o impacto político e ideológico da luta pela independência e, significativamente, na semana passada, aboliu o feriado nacional de 23 de Janeiro, dedicado ao dia do início da luta de libertação.
Cinquenta anos depois da morte de Cabral e de tudo o que na Guiné e em Cabo Verde se passou, devia-se estar em condições de ver com objectividade o que realmente aí aconteceu. Opta-se por utilizar a efeméride para reviver o culto, não se sabe com que fins para além dos alimentados pelos que, ainda vivos, banham na sua glória. E isso à custa de tudo e de todos. De facto, o que se pode ver hoje em retrospectiva é que nessa fatídica noite foi desferido um golpe fatal ao projecto da Unidade Guiné-Cabo Verde engendrado por Amílcar Cabral. A simultânea prisão de todos os cabo-verdiano em Conacri numa operação conduzida por combatentes guineenses com a cumplicidade que quase todos os outros guerrilheiros aí estacionados deixou isso bem claro.
A gravidade do golpe foi obscurecida no esforço subsequente para conter os estragos no PAIGC e convencer os cabo-verdianos a ficar. Foi posta a circular a mensagem que a morte de Cabral resultou de “Três tiros da PIDE” e elegeu-se um cabo-verdiano, o Aristides Pereira, como substituto de Cabral para dirigir o movimento de libertação. Tudo indica que no momento tal arranjo convinha a todos, seja ao regime do Sekou Touré, seja aos guineenses que deixaram cair a pretensão de Nino Vieira de substituir Cabral e aos cabo-verdianos que não desistiram do projecto. O PAIGC não se resumia à uma futura unidade Guiné-Cabo Verde, era também a reivindicação da representatividade dos povos dos dois territórios com exclusão de quaisquer outros grupos políticos e a exigência da independência sob a direcção única do partido. Para muitos deles muita coisa estava em jogo.
Uma espécie de casamento de conveniência motivado pela ideia de conquista do poder terá selado o compromisso que só viria a terminar com o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 na Guiné. Nessa data, finalmente, reconheceu-se que o projecto da unidade Guiné-Cabo Verde afinal tinha sido morto no dia 20 de Janeiro apesar da propaganda em sentido contrário feita junto dos povos dos dois países. O custo de tudo isso em termos de liberdade, justiça e oportunidades perdidas foi suportado pelos povos que nos 15 anos seguintes viveram em regime de partido único. Cabo Verde com a democracia após o 13 de Janeiro conseguiu prosperar e abrir outras possibilidades de vida aos seus cidadãos. A Guiné com muita instabilidade e a meio de golpes e contragolpes já por várias vezes esteve perto de ser considerado um Estado falhado. Ao longo de décadas por causa de ressentimentos e desconfianças mútuas a relação entre os dois Estados não ganhou a normalidade que seria de esperar nem se conseguiu explorar o potencial que uma maior proximidade no comércio e noutros sectores poderia propiciar.
A grande questão que se coloca é como pode ser relevante para esta fase do país com outro sistema de valores procurar inspiração nos protagonistas de um projecto político que nas suas várias componentes fracassou de forma tão trágica. Intenções iniciais tidas como boas não podem justificar violências indescritíveis, décadas de guerra civil e atraso brutal no desenvolvimento no pós-independência. A democracia pela sua própria natureza reclama uma ética de responsabilidade em que governantes periodicamente submetidos a voto popular livre e plural prestam contas e responsabilizam-se pelas políticas implementadas e pelas decisões tomadas.
Pôr o país em rota de colisão com esses valores cria bloqueios que aumentam a polarização e a crispação política, diminui a capacidade nacional de enfrentar os seus cada vez mais complexos problemas socioeconómicos e agudiza a situação de dependência das pessoas em relação ao Estado. Uma evolução que por sua vez aumentaria os riscos de agravamento das desigualdades e também da pobreza e marginalidade, ao mesmo tempo que acelera a emigração e as migrações entre as ilhas. Não é o momento para isso.
Em S. Vicente, na Cimeira dos Oceanos, ficou claro que não vai ser fácil conseguir o apoio desejável para enfrentar os grandes desafios representados pelas alterações climáticas, pela transição energética e pela adopção do digital. É por isso fundamental que toda a energia e atenção da nação se focalize em fazer o melhor do que for mobilizado e disponibilizado. Mas tal não será possível fazer se se deixar agravar a tendência notada no inquérito do Afrobarómetro no que indicia da percepção das pessoas quanto à corrupção, da descrença nas instituições e do sentimento de insegurança.
Inflectir a situação existente não passa pela renovação de mitos e instituição do culto de personalidade. O país já sabe de experiência própria que não resulta. A via para se ultrapassar o cinismo e a desconfiança passa sim pelo exercício da cidadania plena e por se ter uma sociedade civil autónoma e interventiva.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1104 de 25 de Janeiro de 2023.