Conacry, dia 20 de Janeiro, há 50 anos. Um Volkswagen chega, de noite, a uma casa branca, isolada, de um só piso. Há um largo terreiro à volta e uma enorme mangueira em frente da habitação. Um telheiro serve de garagem. O condutor arruma o carro no telheiro. Dois faróis projectam luz para os ocupantes do veículo – Amílcar Cabral e a sua segunda mulher, Ana Maria. Uma voz ríspida ordena que amarrem Amílcar. Este resiste. Não deixa que o atem. O comandante do assalto dispara. Atinge-o no fígado. Amílcar, sentado no chão, propõe que conversem. A resposta é uma rajada de metralhadora que acerta na cabeça do fundador do PAIGC. A morte é imediata. Os autores do atentado: Inocêncio Kani, que dispara primeiro, um veterano da guerrilha, ex-comandante da Marinha do PAIGC; membros do Partido, todos guineenses.
Noutros pontos da cidade, onde se alojam os cerca de meio milhar de combatentes do PAIGC, grupos pertencentes à revolta aprisionam os restantes dirigentes sediados em Conacri: Aristides Pereira, Vasco Cabral, José Araújo. São todos transportados para uma vedeta que zarpa para Bissau. Sekou Touré recebe no palácio presidencial, a 21 de Janeiro, os cabecilhas da rebelião. Tudo leva a crer que apoia os assassinos de Cabral. Mas, surpresa, o Presidente da Guiné-Conacri não dá cobertura. Manda prender os conspiradores, ordena ao Exército que detenha todos os elementos do PAIGC, e pede à marinha russa, presente no país, que intercepte o barco que leva os prisioneiros para Bissau.
Um texto do historiador e veterano de guerra russo Serguei Kolomnin faz um relato do que aconteceu na madrugada de 20 para 21 de Janeiro de 1973. O documento contém testemunhos dos marinheiros que estavam a bordo do navio da marinha soviética que resgatou Aristides Pereira e os restantes prisioneiros.
Uma madrugada caótica
Amílcar Cabral estava morto. A ideia original seria prender Cabral, mas na confusão que se seguiu o líder do PAIGC acabou assassinado.
Um outro grupo, chefiado por Mamadu N’Djai, invade a casa de Aristides Pereira, atam-no com um arame nas mãos e nas pernas e metem-no num carro. Seguem-se ataques às casas de Vasco Cabral, José Araújo e outros líderes do PAIGC. Todos os que foram capturados são levados para o porto e enfiados nos porões das vedetas do PAIGC.
Entretanto, as autoridades de Conacri começam a agir. Na cidade é declarada a lei marcial, as patrulhas militares saem à rua e alguns dos conspiradores são presos, outros conseguem fugir e dirigem-se também para o porto.
Inocêncio Kani toma a decisão de rumar para Bissau para, segundo Kolomnin, entregar os prisioneiros às autoridades portuguesas.
Entretanto, o presidente da Guiné-Conacri, Sékou Touré, ao saber da captura dos líderes do PAIGC e da sua retirada do país pede auxílio ao embaixador soviético, A. Ratanov, com o argumento que a Guiné não tinha meios para perseguir os conspiradores.
Um marinheiro do destroyer soviético lembra que “à meia-noite de dia 20, entrou de repente a bordo o comandante do Exército do Povo de Conacry, Sangare Toumani, acompanhado de uma equipa de especialistas militares soviéticos onde estavam o major-general Chicherin e o capitão Zhuchkova. Em nome do presidente Touré e do embaixador soviético, pediram ao comandante que se fizesse ao mar, capturasse os conspiradores e para aniquilar qualquer bolsa de resistência”.
O comandante do destroyer soviético, o capitão Yuri Ilyin, via-se assim numa posição delicada. Era um marinheiro experiente, um dos membros da tripulação recorda que “[Ilyin] era um bom líder, exigente e justo. Os homens respeitavam-no muito”. O oficial estava bem consciente que tomar parte em operações de combate com o possível uso de armas significava provocar um incidente internacional. Além disso, sem uma ordem directa de Moscovo ou do seu comando em Severomorsk [base da frota russa do norte, 25 quilómetros a norte de Murmansk], não tinha direito a largar amarras.
Mas também sentia que não tinha direito de ignorar um pedido do embaixador. Como reforça um outro marinheiro da sua tripulação, “todos nós, na época, tínhamos sido criados na tradição do internacionalismo”, e para Ilyin era a vida de amigos – dirigentes do PAIGC – que estava ameaçada.
O comandante do contratorpedeiro enviou então mensagens codificadas para Moscovo e para o seu superior da Frota do Norte, onde informava o que tinha acontecido em Conacry e transmitia a sua decisão de navegar em perseguição do grupo de conspiradores e assassinos de Cabral. Ao mesmo tempo, Ilyin sabia que não obteria uma resposta com a rapidez necessária – tanto em Moscovo como em Severomorsk era madrugada.
O capitão sabia que tinha o tempo contado para conseguir capturar os conspiradores sem arriscar entrar em águas territoriais de um país da NATO. Decidiu avançar mesmo sem respostas às mensagens. Faz soar o alarme de combate, reúne no convés os outros oficiais e conta-lhes o plano. Nenhum se opõe. Segundo Kolomnin, a reacção dos marinheiros soviéticos é unânime: “é preciso salvar os companheiros de Cabral”. O único que levanta dúvidas é o representante do KGB na embaixada soviética, que praticamente diz ao capitão Ilyin que está por sua conta e risco. Apesar desta pressão, o capitão mantém a sua decisão. Às 0h50 o destroyer faz-se ao mar, em perseguição dos conspiradores. A bordo seguia também o comandante Sangare Toumani com um pelotão de soldados guineenses.
Passada uma hora chega a primeira mensagem de Moscovo – “o oficial do contratorpedeiro só poderá usar as armas com autorização do Chefe da Marinha” – mas, Ilyin já navegava preparado para o combate. Sabia que os três barcos rebeldes estavam armados com metralhadoras gémeas de 25 mm, capazes de provocar sérios danos no destroyer.
O navio soviético navega junto à costa, conheciam as capacidades das tripulações dos conspiradores e sabiam que de noite não se atreveriam a navegar ao largo, o mais provável, pensavam, era que lançassem a âncora e esperassem pela luz do dia.
Esta hipótese é confirmada. Às 3h da madrugada, o tenente Maleshin detecta dois pontos fixos no radar, as características coincidem com os barcos dos sequestradores. Ilyin força as máquinas do destroyer, espera cair sobre o inimigo aos primeiros raios de sol. É o que acontece. Às 5h da madrugada, o contratorpedeiro russo aparece de repente, do meio da névoa da madrugada, em frente aos barcos rebeldes. Nestes, a tripulação tenta levantar âncora e ligar os motores, mas param quando veem as torres da artilharia soviética apontadas para eles.
Os marinheiros do contratorpedeiro manobram até ficarem ao lado dos barcos dos conspiradores. Os soldados guineenses abordam-nos. Desarmam e prendem os rebeldes. Toda a operação é feita sem disparar um tiro. No entanto, depois de revistados os porões, não se conseguem encontrar os líderes do PAIGC que tinham sido presos pelos conspiradores. Estes só foram descobertos mais tarde, no terceiro barco, cuja tripulação tinha perdido a orientação no escuro e encalhara nas proximidades. Segundo testemunhos de marinheiros, Aristides Pereira, Ana Maria Cabral, Vasco Cabral, José Araújo e outros membros da direcção do partido estavam com um “aspecto horrível”, com marcas visíveis de tortura e espancamento. Aristides Pereira era quem estava em pior estado e quase perdeu as duas mãos por falta de fluxo sanguíneo.
No caminho de regresso, o capitão Ilyin envia novos telegramas codificados para Moscovo com o relatório completo da missão. Quando o destroyer chega a Conacry tem à espera um grupo de especialistas soviéticos. Depois da entrega “oficial” dos barcos capturados e dos rebeldes às autoridades guineenses o oficial russo é literalmente atacado por todos os representantes da embaixada da URSS.
Todos querem saber detalhes, principalmente se foram usadas armas. De acordo com as memórias de um marinheiro do destroyer, um dos diplomatas estava tão nervoso que não se coibiu de fazer o sinal da cruz enquanto murmurava “graças a Deus, não aconteceu nada”.
Mas a história não acaba aqui. Apesar da atmosfera de euforia vivida, das congratulações por parte da tripulação, havia um homem, um único homem, o capitão Yuri Ilyin, que teria de ser responsabilizado pelas suas acções.
Em Moscovo, a sentença já tinha sido dada: “ele [Ilyin] não pode ser perdoado”. Por ordem do Comandante da Marinha soviética, Ilyin foi removido do seu posto por “arbitrariedade e violação das instruções oficiais”.
Valeu-lhe então a posição do major-general Chicherin, que enviou um novo telegrama ao Estado-maior onde dizia que a acção do capitão Ilyin “merecia a mais viva estima do presidente Sékou Touré e foi uma grande vitória sobre os mercenários do imperialismo. Sékou Touré solicita a promoção do camarada Ilyin”.
No dia 22 de Janeiro de 1973, as acusações contra Ilyin foram retiradas. Algumas horas depois, chega um telegrama assinado pelo almirante Yegorov, comandante da frota do norte, onde declara a sua gratidão ao capitão Ilyin pela “acção audaciosa e decisiva num serviço de combate no Atlântico”. O telegrama terminava com um “regressa. Seremos piedosos”.
À procura dos culpados
Uma comissão internacional, indigitada por Sékou Touré, elabora um inquérito sobre os acontecimentos. A pouco e pouco, os antigos dirigentes do PAIGC são libertados. O Conselho Superior de Luta do Partido decide ir mais longe na investigação. Até porque não se dissiparam todas as dúvidas: sabe-se quem matou mas ainda se pergunta quem mandou. Poucos acreditam que os conspiradores, mais operacionais do que políticos, tivessem agido (apenas) de motu próprio.
Reunido de 7 a 9 de Fevereiro, o Comité Executivo da Luta designa Fidélis Cabral de Almada, o jurista “de serviço” do Partido, para dirigir a sua própria comissão de inquérito. Num clima de psicose e de caça às bruxas, o que se seguiu foi uma purga sem precedentes nas hostes do Partido. De entre as 465 pessoas inquiridas, 43 são inculpadas e 9 acusadas de cumplicidade, recaindo suspeitas sobre outras 42. Não menos expeditivos foram os processos de Março de 1973: entre confessos culpados e presumíveis inocentes, 80 indivíduos são condenados à pena capital, seguindo-se as execuções, por grupos separados, em diversos pontos das Zonas Libertadas da Guiné.
O Exército Português nada lucra com o assassínio. A guerrilha intensifica a acção. Em Março de 1973, dispõe dos mísseis terra-ar “Stella” que retiram a supremacia aérea às forças portuguesas. Em Maio, Spínola, governador da Guiné, avisa o ministro Silva Cunha: “Aproximamo-nos, cada vez mais, da contingência do colapso militar”. A 24 de Setembro, nas matas de Madina do Boé, o PAIGC declara, unilateralmente, a independência da Guiné-Bissau.
Os caminhos para o fim dos impérios
O fim da Segunda Guerra Mundial marca a etapa decisiva da descolonização. A França e a Inglaterra, possuidoras dos maiores impérios coloniais, não têm capacidade para num pós-guerra enfrentar revoltas espalhadas por África e pelo Oriente. Por outro lado, a Carta das Nações Unidas consagra o princípio da autonomia, o que dá um novo dinamismo aos movimentos nacionalistas reforçado pela subida ao poder de Mao Tse-Tung na China, a derrota da França na Indochina e a nacionalização do canal do Suez, no Egipto.
A Inglaterra, em 1947, inicia a descolonização pacífica e integra as suas antigas colónias na Commonwelth, à excepção do Quénia. A França reconhece a independência da Tunísia e de Marrocos mas mantém uma guerra colonial na Argélia até 1962. A Sul do Saara a descolonização foi pacífica, excepto nos Camarões.
A Bélgica, ao retirar precipitadamente do Congo e apoiando uma das facções, deu origem a uma violenta guerra civil que só terminou em 1965 com a subida ao poder do general Mobutu.
Cientes da realidade africana, considerando que a partilha de África na Conferência de Berlim (1884/1885) tinha criado fronteiras arbitrárias, sem levar em conta os factores culturais e étnicos dos povos indígenas, Nkrumah defende o pan-africanismo [Kwame Nkrumah, presidente do Gana de 1960 a 1966] e Senghor um conjunto de valores culturais e étnicos a que se chama negritude [Léopold Sédar Senghor, presidente do Senegal de 1960 a 1980], o que levaria a formação de uniões e federações de Estados. Estas, contudo foram efémeras. Devido ao tribalismo, às diferenças ideológicas, a luta pela liderança e as pressões das grandes potências, com a guerra fria, África mergulhou em conflitos sangrentos. Os movimentos nacionalistas da década de 1960 foram acelerados pela Conferência de Bandung (1955), onde os países do Terceiro Mundo afirmam o seu apoio ao anticolonialismo, ao não alinhamento e à Resolução n.º 1514 das Nações Unidas (1960) que reafirma o princípio da autodeterminação dos povos.
Nos PALOP, a insurreição armada inicia-se em Angola, em 1961, com a formação de três movimentos de libertação – FNLA, MPLA e UNITA –, estende-se à Guiné-Bissau com o PAIGC e a Moçambique com a FRELIMO.
A estas insurreições armadas, Salazar respondeu com a deslocação de milhares de soldados para as colónias, o que provocou o isolamento português a nível internacional e uma crescente oposição interna contra a guerra colonial, que vem culminar com a queda da ditadura no dia 25 de Abril de 1974.
O percurso de Cabral
Amílcar Cabral nasce em Bafatá, a 12 de Setembro de 1924. Na certidão de nascimento, surge com o nome de Hamílcar, homenagem prestada pelo pai ao célebre cartaginês Hamílcar Barca.
Em 1932, Juvenal (o pai), Iva (a mãe) e Amílcar regressam a Cabo Verde. É nas ilhas que a família vive o período difícil da Segunda Guerra Mundial. Salazar sobe os custos de vida, as mercadorias rareiam. Em 1940, a seca provoca a fome. Morrem mais de 20 mil cabo-verdianos. E, entre 1942 e 1948, nova crise vai fazer 30 mil vítimas.
Aluno brilhante, 17 valores numa escala de 20, Amílcar conclui o curso liceal em São Vicente. Vai para a Praia onde se emprega como aspirante na Imprensa Nacional, enquanto aguarda a concessão de uma bolsa para prosseguir os estudos. Finalmente, em 1945, embarca para Lisboa. A escolha da sua formação universitária é óbvia: será engenheiro agrónomo.
Amílcar Cabral chega a Portugal em 1945. É o ano da grande esperança para os democratas portugueses, depressa desfeita quando Salazar garante a condescendência dos vencedores da Segunda Guerra Mundial e mantém, inalterável e apoiado, o regime de ditadura.
A primeira mulher de Amílcar, Maria Helena de Athayde Vilhena Rodrigues, foi sua colega no Instituto de Agronomia. Narrou assim a Mário de Andrade o conhecimento do futuro marido, de quem viria a ter duas filhas, Iva Maria e Ana Luísa:
“Conheci Amílcar no primeiro ano de Agronomia, em 1945. As aulas tinham começado em Novembro, ele chegou em Dezembro (...) Eu não pertencia ao seu grupo, mas lembro-me perfeitamente de o ver entre os outros colegas. Como ele era o único negro, notava-se bem... Amílcar não fizera o exame de admissão à Universidade (...) toda a gente falava dele, elogiava a sua inteligência e ele era simpático e descontraído. No que respeita às suas actividades políticas, lembro-me que os meus camaradas recolhiam assinaturas de adesão aos movimentos democráticos. E Amílcar participava activamente nesses comités de estudantes antifascistas. Aquando das assembleias era ele quem dirigia as discussões porque se exprimia muito bem (...) No princípio do terceiro ano, em Outubro de 1948, pertencemos à mesma turma, a dos únicos vinte e cinco estudantes que tinham passado nos exames”.
Companheiros e amigos recordam Amílcar como um indivíduo de dinamismo contagiante, grande sentido de humor, com enorme capacidade de criar amizades. Sedutor, atrai afectos femininos com facilidade.
“O meu irmão conseguia fazer amizades em todo o lado”, diz Luís Cabral. “Foi pela simpatia de Amílcar – revelou em entrevista ao “Diário Popular” o primeiro presidente da República da Guiné-Bissau – que os soviéticos nos forneceram os mísseis com que controlámos a aviação portuguesa. O magnata italiano Perelli era seu amigo e deu-nos as fardas de oficiais que usávamos. Tudo por amizade e simpatia”.
Após terminar o curso, em 1950, faz estágio na Estação Agronómica de Santarém. Pouco depois, falece Juvenal Cabral. Em 1952, Amílcar regressa a África, a Bissau, contratado pelos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné Portuguesa.
1955 é o ano da Conferência de Bandung que assinala o nascimento do Movimento dos Não-Alinhados, do final da primeira guerra de independência do Vietname, da passagem à luta armada da FNL argelina. E Amílcar Cabral transferido para Angola, trabalha em Cassequel, como engenheiro. Inicia um contacto activo com os fundadores do MPLA, ao qual se liga, desde o início.
Em Novembro de 1957 participa em Paris numa reunião para o desenvolvimento da luta contra o colonialismo português, mantém contactos com os anti-colonialistas em Lisboa, está em Accra num encontro pan-africano e vai a caminho de Luanda quando ocorre o massacre de Pidjiguiti.
1959, ano da viragem
Entre 1956 e 1959, Cabral e os companheiros “procuram desenvolver a luta pela independência de forma ‘pacífica’ – escrevendo artigos em revistas, infiltrando patriotas no único sindicato legal (o dos trabalhadores do comércio), reivindicando melhores condições para os africanos, organizando greves”, como escreve Carlos Lopes Pereira.
A 3 de Agosto de 1959, uma greve dos estivadores de Bissau e dos trabalhadores dos barcos de transporte fluvial, no porto de Pidjiguiti, é reprimida pelo exército colonial, a tiro, provocando 50 mortos e mais de uma centena de feridos. Ainda segundo Lopes Pereira, é aqui que Cabral “compreende que a única via para libertar a Guiné é ‘através da luta conduzida com todos os meios possíveis, incluindo a guerra’”. Em Janeiro de 1960, abandona, definitivamente, Lisboa.
Em Outubro de 1972, perante a 4ª Comissão da Assembleia-geral das Nações Unidas, Cabral relembraria que o massacre de Pidjiguiti foi “uma dolorosa lição para o nosso povo. Ficámos a saber que, contra os colonialistas portugueses, não se podia escolher entre a luta pacífica e a luta armada. Eles tinham as armas e estavam decididos a massacrar-nos”.
O movimento muda de táctica, como escreve ainda Lopes Pereira, “os seus quadros passam à clandestinidade, mobilizam mais gente nas cidades e nos campos, preparam a luta armada que será desencadeada em 1963 e vencida em 1974. Amílcar Cabral explicará essa opção várias vezes, nos anos seguintes: ‘A luta de libertação nacional é (...) uma luta política que pode revestir diversas formas, de acordo com as circunstâncias específicas em que se desenvolve. No nosso caso concreto, esgotámos todos os meios pacíficos ao nosso alcance para levar os colonialistas portugueses a uma modificação radical da sua política no sentido da libertação e do progresso do nosso povo. Só encontrámos repressão e crimes. Decidimos então pegar em armas para nos batermos contra a tentativa de genocídio do nosso povo, decidido a ser livre e senhor do seu próprio destino’”.
Nem só de guerra vive o homem
Há uma preocupação constante de Cabral com a educação do povo. Em 1964, já em pleno conflito militar, é editado o primeiro livro escolar. Em Conakry é inaugurada a Escola Piloto, internato para os filhos dos combatentes e crianças das zonas libertadas. Em Kiev, na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, é criada uma escola de enfermeiros do PAIGC.
Em 1969, um resumo dos textos e discursos de Amílcar Cabral é publicado em Londres. Em 1970, é publicado um resumo d’“O Poder das Armas”, em Paris. Nesse mesmo ano dá uma conferência, “Libertação Nacional e Cultura”, na Universidade de Siracusa, nos Estados Unidos da América. Cabral é, cada vez mais, uma figura global da revolução, como o argentino ‘Che’ Guevara, com quem se encontra várias vezes.
Amílcar Cabral explicou a ideologia que o guiava a um grupo de intelectuais, em Londres, em 1971: “nós acreditamos que uma luta como a nossa é impossível sem ideologia. (...) Partir das realidades do nosso próprio país para a criação de uma ideologia para a luta não implica que se pretenda ser um Marx ou um Lenine, ou qualquer outro grande ideólogo, mas é simplesmente uma parte necessária da luta. Confesso que não conhecíamos suficientemente bem estes teóricos quando começámos. Nós não os conhecíamos nem metade do que os conhecemos agora! Nós tivemos necessidade de conhecê-los, como disse, a fim de julgarmos em que medida podíamos aproveitar a sua experiência para ajudar a nossa situação – mas não necessariamente para aplicar a ideologia cegamente, só porque ela é uma ideologia muito boa. Este é o nosso ponto de vista. Mas a ideologia é importante na Guiné. (...) Não queremos que o nosso povo seja mais explorado. O nosso desejo de desenvolver o nosso país com justiça social e com o poder nas mãos do povo é a nossa base ideológica. Nunca mais queremos ver um grupo ou uma classe de pessoas explorar ou dominar o trabalho do nosso povo. Esta é a nossa base. Se se quiser chamar a isso marxismo, chame-se marxismo”.
A geração Cabral
O anticolonialismo foi um processo gradual. As futuras elites dirigentes africanas foram educadas em Portugal, onde eram reforçados os valores e os costumes próprios do “modo de ser português”, como refere Paulo Campbell.
A viragem dá-se quanto à uma tomada de consciência a favor do homem africano, já no final dos anos 40, ou seja, “a causa da emancipação dos homens negros, servindo assim a humanidade”. É a assumpção dessa responsabilidade histórica que une os estudantes africanos, das mais diversas colónias, à volta de um objectivo comum – a independência dos seus países.
A própria intransigência do estado novo português, acaba por espoletar o sentimento de libertação, do nacionalismo anticolonialista. Foi neste contexto que a geração de Cabral denunciou as fomes, a exploração, e todo o tipo de violências praticadas sobre os africanos.
Os próprios estudos agrários de Cabral, ajudam-no a compreender o mundo rural. O conhecimento dos territórios que percorreu e os aspectos económicos, políticos, sociais e culturais, das gentes do campo marcam as suas ideias culturais e políticas.
Para África, o legado político de Amílcar Cabral continua vivo. Os avisos que deixou, que a libertação não faria sentido se o povo libertado não tivesse acesso às necessidades básicas continuam actuais. Já as suas reflexões, sobre o continuar da luta revolucionária para impedir a passagem do colonialismo ao neocolonialismo, não vingaram. Se Cabral tinha essa sede de protagonismo para o futuro, não se sabe, mas como o mesmo afirmou, “sou um simples africano, que quis saldar a sua dívida para com o seu povo e viver a sua época”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1103 de 18 de Janeiro de 2023.