Uma viagem literária de Madalena Neves no tempo

PorCésar Monteiro,4 dez 2023 7:46

César Monteiro - Sociólogo e investigador
César Monteiro - Sociólogo e investigador

A literatura, independentemente da forma que assuma, é expressão do social, isto é, permite aproximar-se do social, captá-lo, capturá-lo e lê-lo, através das manifestações escritas em poesia ou em prosa, socorrendo-se de instrumentos analíticos adequados.

No entanto, nem toda a literatura é portadora dessa dimensão sociológica tão interessante e rica, que permite perspetivar a sociedade através dos relatos e das narrações, dos rumores do quotidiano, da ritualidade, dos enigmas, das ambivalências, das cenas banais e da “rotina” que se constroem à volta da realidade social, produto das interações recíprocas entre os indivíduos. Prenhe de simbolismo e “fio condutor do conhecimento da sociedade”, na perspetiva de José Machado Pais (2002), renomado sociólogo, investigador e docente português, o quotidiano, sob o olhar atento da literatura, não deve ser tomado como uma categoria distinta do social, nem tão pouco considerado uma parcela isolável do social. Seja como for, uma leitura de fontes literárias, tanto na sua expressão de poesia como de prosa, aponta, do ponto de vista estritamente da interpretação, para uma hermenêutica sociológica e, sendo assim, a literatura ganha uma potência mais instrumental, ou seja, ela é um recurso para a interpretação do social. Contudo, se essa hermenêutica, ao invés, se circunscrever ao texto, então estar-se-á perante uma hermenêutica mais de natureza linguística, isto é, uma semiótica mais ligada ao universo literário propriamente dito, diferente da perspetiva sociológica.

Necessariamente, todo o texto que implique relações sociais reporta-se aos contextos de análise dos indivíduos, isto é, aos elementos do meio social relevantes para os indivíduos como as normas, as regras, os mapas de significação e as representações sociais, que regulam distintas condutas comportamentais, bem como aos contextos sociológicos, a despeito da sua natureza literária ou social. Daí que o texto literário, em particular, deva, no essencial, ser lido, entendido, compreendido e interpretado nos seus sentidos, que se interconetam. De facto, no interesse de qualquer hermenêutica de análise interpretativa, é preciso conetar os sentidos e, em especial, na análise de conteúdo, fazê-lo pela via da fragmentação do discurso em unidades de sentido, tendo em mira alcançar, em última análise, um sentido mais amplo, a partir dessa articulação de sentidos, mas de uma forma sequencial e coerente. Do ponto de vista interpretativo, a procura de sentido ou sentidos das narrações literárias, por exemplo, implica a seleção daqueles aspetos sociológicos mais relevantes, numa interação interessante e complementar entre a área da literatura e a das ciências sociais. Os contextos, que estão associados às instituições e às estruturas sociais mais ou menos diferenciadas reguladoras das condutas dos indivíduos, que, de resto, se entrecruzam e se complementam, inscrevem-se no chamado tempo do quotidiano, ou tempo social, e, também, no espaço, onde se localizam práticas sociais com significados simbólicos e uma panóplia diversificada de expressões musicais e literárias. Partindo da poesia, que, aliás, considera a sua matriz de escrita, Madalena Neves, numa viagem fantástica no tempo, inaugura, dentro do campo literário cabo-verdiano, um estilo de escrita inovador e híbrido, na linha do género literário poema em prosa de Louis Jacques Napoleón Bertrand, poeta, dramaturgo, jornalista romântico francês e precursor do movimento de renovação, a busca de novos meios de expressão. Fá-lo a escritora num caminho absolutamente natural e autónomo, marcado por vivências e experiências de vida intensas e profundas nos períodos da infância e da adolescência, particularmente nas ilhas do Sal e S. Nicolau, onde os seus processos de socialização primária terão sido mais acentuados e decisivos. No pressuposto de que o verso rimado não é condição indispensável à poesia, Madalena Neves, através de uma escrita leve, diáfana, prazerosa, desenvolta e elegante, do ponto de vista estético, dá asas à sua fértil imaginação suportada, de resto, por marcas gravadas na sua memória, a partir de diversos lugares e não-lugares antropológicos (Marc Augé,1998) que percorreu ao longo do seu diversificado e rico percurso biográfico.

Curiosamente, quando chega a São Vicente, aos nove anos de idade, procedente da ilha do Sal, donde é natural, Madalena é confrontada com uma realidade urbana cosmopolita, mais dinâmica e mais diversa, que a marca profundamente e reforça a sua capacidade de observação, a partir do leque de contatos que estabelece e amplia com gentes de todas ilhas e de todos os extratos e condições sociais. É certo que, pela sua vocação geoestratégica e por causa do seu Aeroporto internacional, o Sal, na década de 60 do século XX, era um importante ponto de chegada de pessoas de todos os lados do mundo, o que conferia à ilha, já na altura, um lugar de destaque e uma dimensão urbana relativamente considerável, do ponto de vista dos contatos, das dinâmicas e das relações sociais. Aliás, é nessa ilha que despertou em Madalena Brito Neves o bichinho da escrita, a partir de algumas recordações, lembranças e marcas importantes da sua primeira infância construídas no seio de uma família relativamente numerosa da então classe média salense, numa sociedade dita de interconhecimento pouco diferenciada, do ponto de vista estrutural, onde convergiam e se mesclavam tradições, manifestações e sensibilidades rurais e urbanas. Constituído por três cadernos de poemas prosados e ficcionados, na sua esmagadora maioria, o livro, editado pela Rosa de Porcelana, insere-se no contexto maior de um país insular marcado pela presença do mar, por intensos movimentos migratórios, internos e internacionais, pela seca e, ainda, por profundas assimetrias estruturais, que condicionam, à partida, as condições e a qualidade de vida das populações.

Afora o quadro genérico onde se encaixam perfeitamente, os contos poéticos criados a partir do imaginário da autora da obra nas ilhas do Sal, S. Nicolau, Boa Vista e S. Vicente, inscrevem-se em contextos específicos e particulares e são portadores, através das vozes dos personagens envolvidos, de uma mensagem, cujo conteúdo e força se associam, de forma explícita ou não, ao chão de Cabo Verde, ao “torrão di meu”, como canta o conceituado compositor salense Nhelas Spencer. A obra literária em análise, que potencia o empoderamento feminino, valoriza, na sua generalidade, a memória coletiva e as tradições do arquipélago e, ainda, contribui para o reforço da sua dinâmica identidade cultural, é, também, portadora, de mensagens sociais fortes centradas em personagens típicos das ilhas, à volta dos quais se desenrolam as cenas construídas, através de um discurso coerente, sequencial, com sentidos e significação. Dotada de um olhar acentuadamente feminino, que assume de forma consciente e sem complexos, Madalena Brito Neves, sem ser feminista nem tão-pouco perder a dimensão transversal dos factos literários, enquanto “factos sociais”, dá voz à mulher, através das suas representações sociais, das suas vivências quotidianas e das suas mundivências singulares, evidenciadas através de práticas e cenas carregadas de simbolismo, significação e sentidos. Numa engenhosa combinação da língua portuguesa com a oralidade da língua cabo-verdiana conhecida pela sua plasticidade, Madalena Neves, através dos seus poemas contados, valoriza a dimensão linguística, a partir de um vocabulário, que, pacientemente, foi construindo, enriquecendo e consolidando, no âmbito de uma fecunda elaboração cultural marcada particularmente pela música das ilhas. Aliás, a presença da música cabo-verdiana, em especial através da sua expressão tradicional, e de outras manifestações culturais nacionais e regionais de relevo, é transversal a este “livro de memórias”, como lhe chamou o escritor Daniel Medina nas suas elucidativas “Notas de leitura finais”, uma obra literária cheia de sentidos e recheada de simbolismo, o que lhe confere, para lá do aspeto meramente lúdico e estético, uma dimensão identitária e antropológica interessante e um valor inestimável. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1148 de 29 de Novembro de 2023.

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Autoria:César Monteiro,4 dez 2023 7:46

Editado porAndre Amaral  em  27 ago 2024 23:25

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