Recordar o passado ligado às drogas é sempre um momento emocional para Christian Lima, antigo interno da Comunidade Terapêutica da Granja de São Filipe.
“Se fechar os olhos consigo lembrar-me daquela espécie de transe vertiginosa que senti após a primeira baforada, o primeiro fumo”, recorda Christian lembrando um passado recente ligado a drogas duras como a cocaína e o crack.
Adicto em recuperação, como se designa, Christian diz que a sensação que obteve quando se iniciou nas drogas duras era algo de “inebriante, tóxico e fluido” que se impunha “de forma automática”.
Perdeu a conta às vezes que entrou no que chama de “viagem de prazer proibido, viciante”, mas também “mórbido e decadente”.
Passava o efeito das drogas e tudo se transformava. “Vi o inferno. Um inferno resultante da escolha de criar uma realidade dormente, de degradação moral e física, de desequilíbrio emocional e mental”.
A toxicodependência, explica Christian, assemelha-se a “estar num rio profundo, um rio de forte correnteza em que estamos constantemente a nadar contra a corrente. Quanto mais esforço fazemos para lutar contra essa corrente mais exaustos e perdidos ficamos”.
Christian não tem dúvidas. “As maiores vítimas da minha dependência fui eu e a minha mãe. O psíquico dela ficou muito alterado durante os meus anos de consumo. Há uma diferença enorme da pessoa que ela é hoje para o que era antes”.
O consumo de drogas “é uma doença espiritual, mas física também. Eu não conseguia reagir. Eu tenho muitas potencialidades, mas eu não conseguia pôr nada em prática. Eu andava cem passos em frente para depois dar milhares para trás” por causa do consumo de drogas, conta Christian. “Eu não conseguia criar nada, não conseguia fazer nada. Nada era permanente na minha vida. Até ao momento que senti que o meu corpo também queria ‘ir-se embora’”.
O suicídio foi uma ideia que passou pela cabeça de Christian. Só uma coisa o impediu: “Não tive coragem”.
Amigos que morreram
Christian refere-se à sua dependência das drogas como “a doença” que se manifestou em São Vicente e as mortes sempre andaram associadas ao consumo de drogas.
“Em São Vicente perdi quatro amigos”, lamenta recordando, no entanto, que “às vezes as mortes não são directamente provocadas pelo consumo, mas por associações e outras doenças”.
No Sal, recorda, “tive pelo menos um amigo que morreu de overdose e aqui na Praia também, um amigo que faleceu recentemente”.
“Um outro amigo meu suicidou-se aqui na Praia já depois de ter saído da Comunidade Terapêutica”. “Há pessoas que simplesmente não conseguem lidar com o dia-a-dia. Foi muito difícil para ele e ele simplesmente decidiu que devia ir-se embora”, relata Christian.
Cocaína
Tabaco, padjinha, cocaína, crack... Costuma dizer-se que quem consome drogas começa sempre pelas mais leves e que a necessidade de mais e maiores sensações leva a que se vá progressivamente entrando nas drogas mais pesadas.
Com Christian não foi assim.
“A minha droga de eleição era a cocaína fosse fumada ou snifada. Comecei bem cedo. Comecei com o tabaco aos 13 anos, aos 16 passei para a cocaína snifada e entre 2014 e 2018 consumia crack. Mas a minha preferida era a cocaína”.
Christian viveu em diversas ilhas do país. Sal, Boa Vista, São Vicente e Santiago foram ilhas que sempre disponibilizaram o que Christian precisava para satisfazer o seu vício. “Quando não havia uma [droga] eu voltava-me para outra”. Tudo dependia das possibilidades financeiras disponíveis no momento. No entanto, depois de uma certa altura “o crack tornou-se permanente”, na vida de Christian. “Daí a destruição que trouxe” à sua vida.
Christian não consegue dizer quantas vezes por dia fumava crack. “É difícil. Há uma constante busca por formas de consumir e a degradação é tanta que se torna difícil conseguir dinheiro” para alimentar o vício.
Drogas sintéticas
Sobre a presença de drogas sintéticas como o MDMA ou o Ecstasy em Cabo Verde, Christian garante que tem conhecimento de elas serem vendidas no país. “Eu frequentei ambientes em que... Eu consumi, mas não muito. Nunca consumi muitas sintéticas, porque a cocaína foi tão invasiva que eu não migrei. Mas elas existem. No Sal sei que havia um consumo elevado dessas drogas, na Boa Vista também, em alguns circuitos”.
S. pede anonimato.
“Escolhe uma letra qualquer, mas não escrevas o meu nome”, pede.
Noctívago assegura que “as drogas sintéticas circulam em grande quantidade nos bares e discotecas da capital”.
O MDMA e o Ecstasy são agora a droga de eleição dos mais jovens, assegura. “Um comprimido custa entre 300 e 500$00. Eles juntam-se e cada um contribui para que o possam comprar. Depois compram uma garrafinha de grogue onde dissolvem o comprimido e já estão ‘servidos’ para a noite toda”, revela.
As noites são passadas a partilhar o grogue.
“Os comprimidos são uma droga que não dá trabalho. Ninguém faz uma linha de cocaína em cima da mesa do café ou do bar… Não se fuma padjinha ou crack num sítio onde o risco de se ser apanhado é grande. Com os comprimidos ninguém dá conta. Deita-se na garrafa e ele desaparece. Ninguém sabe o que estás a consumir”, conta S.
Pela sua forma de ver, o baixo preço de mercado da padjinha (50$00 por um taco) contribui para o aumento do consumo das drogas sintéticas. “Na Praia não se consegue comprar padjinha depois das 23h00. Ninguém vende. Não vale a pena a chatice. Correr riscos por causa de 50$00 quando se pode ganhar muito mais dinheiro a vender comprimidos?”
S. reforça: “nos bairros periféricos da cidade da Praia a droga dominante entre a população mais nova é o MDMA”.
“Tenho conhecimento da circulação de algumas drogas sintéticas. O ecstasy, o MD e os anabolizantes usados nos ginásios. Ao meu ver, o MD tem uma maior predominância principalmente nas actividades a noite, podemos dizer que é um estimulante para relaxar e curtir melhor nas festas. Agora, o que prevalece é o uso da Marijuana. O resto sempre fez parte das noitadas assim como os anabolizantes nas academias”, refere ainda uma fonte policial ouvida pelo Expresso das Ilhas.
Violência
De uma coisa este nosso interlocutor não tem dúvidas. “Os assaltos violentos, as cenas de pancadaria… Muitas vezes quem está envolvido consumiu alguma droga sintética”.
Christian também suporta esta ideia. “Conheci casos de pessoas” que cometeram crimes para alimentar o vício. “Há uma progressão” nesse sentido. “Não aconteceu comigo. Há estádios a que eu não cheguei, mas sei de pessoas que chegaram aí. Criminalidade, agressões... Talvez por eu ter tido uma educação muito severa, tive bons valores familiares”.
E mais. “Em muitos vídeos íntimos sexuais que circulam na internet as mulheres foram drogadas sem se aperceberem”, assegura S.
Os efeitos destas drogas são intensos, mas também efémeros.
“Quando o efeito passa as pessoas não se lembram do que fizeram”, diz S..
Uma visão que é corroborada por José Maria Rebelo, especialista em segurança ouvido pelo Expresso das Ilhas.
“Quando a pessoa consome esse tipo de drogas tem atitudes que, a nível psicológico, se alteram e depois quando o efeito passa não se recordam de nada. São comportamentos que se identificam em muitas das festas que se realizam e até em ambientes liceais”.
Este tipo de drogas, defende ainda José Maria Rebelo, “é preparado em laboratório para desviar toda a atenção na pesquisa de evidências. Os marcadores laboratoriais usados para fazer o despiste de drogas não servem para identificar o ecstasy”.
Nova rota no tráfico?
“As tendências mostram claramente que, nos últimos anos, tem havido uma evolução daquilo que se conhecia das noções de rede para Cabo Verde. Sempre se trabalhou a ideia de que Cabo Verde era um mercado de passagem. Hoje vê-se claramente pela quantidade de apreensões de droga vindas do aeroporto de Lisboa, sobretudo para a Praia e São Vicente, que há uma tendência de experimentação na criação de uma nova rota”, diz José Maria Rebelo.
Este especialista defende que “há mais drogas a circular no país do que as apreendidas”.
Cabo Verde, refere José Maria Rebelo, nunca tinha sido tido como um mercado para a cocaína, “mas a tendência muda e é preciso estar consciente que Cabo Verde, com esse ritmo, está a transformar-se num mercado atractivo influenciado não só pela cocaína. Tenho firmes convicções, e pelas informações e alertas que tenho recebido, que há drogas sintéticas em circulação no mercado nacional. Sobretudo para a camada jovem entre os 14 e os 35 anos”.
José Maria rebelo não hesita. Este tipo de drogas está a entrar no país “através das pequenas encomendas” que chegam ao país. São drogas desenvolvidas em laboratórios e que driblam como o Ecstasy ou o LSD. Drogas que circulam nos mercados internacionais e que se nota que hoje já estarão presentes em Cabo Verde por causa de alguns comportamentos associados” ao seu consumo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1126 de 28 de Junho de 2023.