As regras de convivência estão, pois, presentes em todo os locais, a começar em casa de cada um, definindo como o exercício dos direitos pode e deve ser feito sem perturbar o exercício dos direitos dos outros. Na família, desde cedo, a criança começa o contato com essas regras e com a noção de prioridades. Aprende-se a saudar uns aos outros, o lugar de cada um à mesa, a prioridade na fala, quando se deve falar e quando tem de se escutar. Um infindável rol de regras que, naturalmente, vamos aprendendo e praticando e que servem para que todos os membros se sintam bem e respeitados. Cada país e cada cultura tem as suas próprias regras de convivência e de organização da sociedade e dos eventos públicos. Essas regras são praticadas pelos seus nacionais e devem ser respeitadas e cumpridas pelos estrangeiros que estejam no país.
Com o desenvolvimento das sociedades e o aperfeiçoamento permanente de conteúdos essenciais sobre o ser, muitas regras vão sofrendo alterações, conformando-se à ideia da dignidade da pessoa humana. As crianças deixaram de ser tratadas com objeto do poder dos pais ou de quem as tem ao seu cuidado para serem pessoas, sujeitos de direitos. Na família e em qualquer espaço têm direito a se exprimirem e a reivindicar sem que isso seja considerado uma violação da regra de respeito aos pais! Já podem falar à mesa.
Na organização do trabalho, no desporto, nas atividades lúdicas, nos locais de culto, em todo lado há um conjunto de regras, designadas de protocolo ou de cerimonial, que organizam o funcionamento das atividades, definindo os lugares e o tratamento devido a cada participante e interveniente no ato.
Quando comecei a minha vida forense, íamos para os tribunais para aprender como e quando intervir, como se dirigir aos magistrados e aos advogados da parte contrária, quando usar a toga, enfim, um cerimonial necessário e adequado à nobreza da justiça.
A aprendizagem das regras sociais é continua. Estamos sempre a aprender, a aperfeiçoar e muitas vezes vamos adquirindo a competência para propor mudanças. Por exemplo, uma das coisas que muito me chocou quando o meu marido exerceu o cargo de PR era não ser tratada pelo meu nome, mas como senhora de Jorge Carlos Fonseca. Foi difícil fazer perceber ao protocolo de Estado que esse tratamento era indigno e que vinha de um tempo em que a mulher casada não tinha autonomia e estava debaixo do poder do marido. Não fui bem entendida porque mudar mentalidades não é fácil, mas mantive-me firme e não aceitei que se referissem à minha pessoa dessa forma.
A organização do Estado também se submete a regras, designadamente de precedência e, por isso, os estados democráticos aprovam leis onde definem as precedências protocolares, para que sejam respeitadas por todas as entidades, públicas e privadas. Estas regras têm a ver com as competências dos órgãos, com a forma da sua composição (se por designação se por escolha direta ou indireta do povo). É por isso que o Presidente da República tem, em qualquer situação, precedência sobre todas outras entidades. Desde logo porque é o representante da nação e, no nosso caso, porque é eleito diretamente pelo povo.
Em 2014, Cabo Verde aprovou a Lei 54/VIII/2014 (22/01) que estabelece a ordem de precedências e o tratamento protocolar das entidades do Estado de Cabo Verde e outras entidades. São regras que se aplicam obrigatoriamente nos atos oficiais, mas que servem também para orientação nos demais atos e cerimónias públicas.
Sendo uma lei (e não uma mera regra de cortesia institucional), aprovada pela Assembleia Nacional e promulgada pelo Presidente da República, deve ser cumprida por todos, especialmente pelos seus destinatários primeiros: os responsáveis pela organização dos eventos oficiais e pelas entidades que presidem os mesmos. Infelizmente, também esta lei sofre de um mal como muitas outras leis: é ignorada por quem tem obrigação de a respeitar.
O desconhecimento da lei não aproveita ao intérprete, conforme determina o Código Civil no seu art. 6º). Mas, mais grave, é não desconhecer e optar por não aplicar, quem sabe por entender que devia ser outra a solução legal. Este comportamento viola os princípios do Estado de Direito Democrático e conduz a soluções absurdas e de desprestígio dos órgãos do Estado.
É confrangedor estar numa cerimónia presidida por um ministro, pelo Presidente da República ou por um presidente da câmara e notar que os mesmos não conhecem ou ignoram as precedências protocolares estabelecidas na lei e, no seu discurso, cumprimentam todas entidades presentes e, no fim, ou quase no fim, lá se lembram dos antigos presidentes da república.
De acordo com a lei das precedências, a ordenação protocolar privilegia os cargos resultantes de eleição popular, sem prejuízo pela compaginação de outros princípios da prática internacional, e as entidades do Estado ordenam-se, do ponto de vista protocolar, pela ordem de precedências constante de uma lista anexa ao diploma. Nessa lista, os antigos presidentes da república, ocupam o 7º lugar na hierarquia e estão acima dos ministros, dos deputados nacionais, dos secretários de estado e de outras entidades constantes de uma longa lista de 68 posições. O que se compreende com facilidade e é, aliás, prática e lei em boa parte dos países, sobretudo os democráticos.
As leis devem ser respeitadas por todos no país. Pelas entidades nacionais e, igualmente, pelas representações diplomáticas. Temos um serviço no Ministério dos Negócios Estrangeiros designado de «Protocolo de Estado» presidido por um Diretor Nacional. Penso que cabe a esta entidade promover o conhecimento das regras de precedência e cuidar que as mesmas sejam cumpridas nos precisos termos legais. Sugiro, pois, que esta entidade distribua pelas instituições públicas, pelo corpo diplomático e pelas empresas de organização de eventos oficiais, exemplares desta lei, para que todos aprendam o seu conteúdo e não cometam a indignidade institucional de não respeitar as precedências protocolares instituídas no país.
Interessante é que estas regras estabelecidas na lei são sentidas pelo cidadão comum e por já muitas vezes ouvi pessoas comentar desagradadas com o não respeito das regras protocolares relativamente aos antigos presidentes da república. Ainda há dias isso aconteceu quando a cônjuge do Presidente da República José Maria Neves sobe ao palco para discursar e começa por cumprimentar o corpo diplomático presente e, no fim, refere o antigo Presidente da República, nem se lembrando de dizer o nome deste!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1172 de 15 de Maio de 2024.