Nas democracias liberal e constitucional o equilíbrio dos poderes é fundamental para a estabilidade do sistema político. Contudo, devido à sua própria natureza, não agem com a mesma rapidez. Do governo espera-se capacidade de reacção rápida perante novas situações e perante imprevistos e mesmo crises. O legislativo tem o seu tempo próprio na feitura das leis, recorrendo ao contraditório. Os tribunais então são ainda mais lentos em dirimir conflitos, a defender a legalidade e a proteger direitos. Se não houver um acordo de todos os actores políticos e da sociedade civil para salvaguardar a integridade do sistema, a diferença de velocidade dos poderes pode ser explorada para o desequilibrar numa deriva autoritária, como aparentemente está a acontecer nos Estados Unidos, mas que já se notava, por exemplo, na Hungria, na Turquia, na Tunísia e na Índia.
Por razões óbvias, o protagonista principal nesses processos é normalmente o poder executivo. Quando, porém, o sistema político prevê um presidente da república eleito directamente, mas sem poder executivo e função governamental, abre-se a possibilidade, de sérias consequências com impacto geral no sistema, na eventualidade de um desajuste pronunciado na velocidade de actuação do PR e do Governo. Em Portugal, com um presidente hiperactivo eleito nesse quadro até se assistiu recentemente à dissolução de uma maioria absoluta. Cabo Verde, num quadro constitucional similar, depara-se actualmente com uma intensa actuação interventiva do PR na área governativa, com consequências que claramente não são positivas para a estabilidade do sistema político, nem para o país no seu todo.
Só nos últimos dias pôde-se constatar vários momentos desses. Em visita às câmaras municipais, o PR aparece a pedir a reconfiguração da relação entre o Estado e os municípios no que respeita à transferência de poderes e recursos num momento em que a proposta de lei do novo estatuto dos municípios está para aprovação no parlamento. A sua interferência nas negociações entre sindicatos e o governo já atingiu tal magnitude que sindicalistas em declarações à imprensa referem-se ao PR como parceiro. Em matéria de revisão constitucional, que é de exclusiva competência dos deputados, permite-se fazer propostas e indicar datas e, ainda, agir como activista numa matéria que os apoiantes, por razões de lutas identitárias, querem manter fracturante. Coloca-se na primeira linha na denúncia pública da perseguição dos jornalistas no país simplesmente porque o Ministério Público, perante indícios de violação do segredo de justiça, abre instrução para averiguar factos puníveis e responsabilizar agentes.
Um dos problemas neste tipo de intervenção, que claramente extravasa as competências do PR enquanto árbitro e moderador do sistema político, é que o governo é fiscalizado e pode ser censurado e até derrubado no parlamento pela condução das suas políticas. E na Assembleia Nacional os deputados dos diferentes partidos exercem o contraditório e fiscalizam-se. O PR, pelo contrário, não responde a ninguém. Não há mecanismo constitucional para o censurar ou destituir e até pode ignorar a censura pública. Claro que todas essas as prerrogativas constituem uma responsabilidade grande e deviam ser um incentivo para um exercício de mandato em linha com a preocupação central do presidente da república de garantir o regular funcionamento das instituições.
Fazer o papel de activista, de facilitador de negociação sindical, de indignado a favor de posturas corporativas é que não é próprio. Nem tão-pouco pretender ser colegislador, ou apresentar-se como champion das câmaras municipais e permitir que partidos cortejam ou alinhem pelas suas posições políticas arriscando-se a ser visto no papel de oposição ao governo que a Constituição não lhe confere. Muito pouco razoável é insistir em ver como diminuído em legitimidade o exercício de cargos públicos com mandatos já caducados, mas que são essenciais para o equilíbrio do sistema e o funcionamento pleno do Estado de Direito democrático. Pior se isso for visto como uma espécie de pressão sobre quem cuida da legalidade, arbitra os conflitos e protege direitos. A verdade é que uma das razões pela qual não há abandono de lugar no exercício de cargos públicos é o reconhecimento que o tempo dos diferentes órgãos de soberania não é o mesmo e tudo deve-se fazer para garantir a continuidade do regular funcionamento do poder judicial.
Não deixa, porém, de causar estranheza o facto do protagonismo do PR estar aparentemente a marcar a agenda política, quando o normal devia ser o governo que, enquanto executivo, tem os recursos, a máquina administrativa e o mandato para fazer as coisas acontecerem. A postura omissa do governo e a clara falta de liderança nos dois meses após as autárquicas têm deixado um vazio que num ambiente de excessiva politização é naturalmente preenchido por vários actores entre os quais o PR. A remodelação ministerial tardia parece que visa só mais eficácia governativa e não mudanças na agenda e postura. A falta de uma visão energeticamente promovida pelo governo nesta nova fase pós-autárquica acaba por garantir que a corrida para as legislativas, e já agora para as presidenciais, se inicie prematuramente, tirando ao país a possibilidade de pensar aprofundadamente sobre os tempos conturbados que se está a viver no mundo.
No MpD, o cerrar de fileiras à volta do chefe, numa lógica defensiva, irá limitar o debate e prejudicar a sintonia com o tempo actual e os anseios da sociedade. Já no PAICV, a corrida à liderança mais parece configurar um processo de captura do partido no qual o ingresso de 3.000 novos militantes em condições pouco claras, segundo a comissão de fiscalização do partido, relembra manobras clássicas de assalto aos partidos. Acompanhado do discurso anti- elite que, como é a regra, vai procurar mobilizar todos os ressentimentos para conseguir resultados eleitorais, certamente que os seus efeitos negativos sobre o partido e o país serão sentidos. No rescaldo da crescente crispação, a ostensiva partidarização das comemorações dos 50 anos de independência também irá afectar o PAICV nesta nova fase, em que aparentemente prefere identificar-se com o legado da luta na Guiné e do governo dos primeiros quinze anos do que com os quinze anos do seu governo neste século, como se viu na discussão à volta da NATO. É mais provável que da conjugação da atitude dos dois partidos saia uma maior polarização política da sociedade.
Nos Estados Unidos, a rapidez com que o executivo marca a agenda, procura criar um Estado mais receptivo à visão e aos objectivos dos vencedores das eleições. Tem os seus riscos, mas não há dúvidas de quem tem responsabilidade em caso de fracasso. Em Cabo Verde, falhas na liderança do governo e omissões em momentos-chave deixam todos expostos a uma politização extrema em que ninguém se sente responsável pela perda de confiança nas instituições e quebra de esperança no futuro.
Pelo contrário, depois de se acusarem mutuamente pelos tais resultados, os partidos e outros actores políticos voltam ao mesmo comportamento que anteriormente os provocou. De alguma forma há quem acredita que no caos ou no mal-estar criado acabará por sair vencedor. A conquista do poder parece suplantar quaisquer outros objetivos. Se para isso é necessário recorrer à demagogia e ao populismo, com o seu lado de autoritarismo, de arbitrariedade e de negação de direitos, que assim seja.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1211 de 12 de Fevereiro de 2025.