Se num ano há uma ida às urnas, o tema tem de merecer o destaque de abertura. Foi o que aconteceu neste ano de 2024, a 1 de Dezembro, quando as eleições autárquicas mudaram o mapa político municipal com a vitória estrondosa do PAICV: conquistou 15 das 22 câmaras em disputa.
Do total de 351.935 eleitores inscritos, 176.756 foram votar – uma taxa de participação de 50,23%. Destaque para a vitória do PAICV em municípios como Santa Catarina (Santiago), Maio, Brava, Ribeira Brava, Santa Catarina do Fogo, Porto Novo e, com diferença de um voto, São Lourenço dos Órgãos, que até aqui eram dirigidos pelo MpD. Na capital, Praia, câmara sempre emblemática, Francisco Carvalho foi reeleito com uma votação superior à que tinha tido em 2020.
São Vicente era um dos municípios onde as expectativas eram mais altas. A instabilidade constante vivida nos últimos quatro anos levantava a expectativa de que desta vez houvesse uma solução. Tal acabou por não acontecer. Augusto Neves venceu as eleições, mas novamente sem maioria. Na Câmara o MpD elegeu quatro vereadores contra três do PAICV e dois da UCID. Na Assembleia Municipal, o MpD conquistou 9 mandatos enquanto PAICV e UCID conquistaram 6 mandatos cada o que volta a levantar o ‘fantasma’ da instabilidade na governação na ilha de Monte Cara.
O vice-presidente do MpD, depois da reunião da Comissão Política Nacional no pós-eleições, reconheceu as dificuldades enfrentadas e os desafios que surgem a partir desse cenário. “Cabo Verde é um país plural, é um país heterogêneo, é um país de várias vontades, de vários quereres e de diversidade. Por isso mesmo, as causas podem ser várias. O importante é termos a humildade, a capacidade de perceber o caminho que temos que percorrer para voltarmos a ganhar”, disse Fernando Elísio Freire.
Já o PAICV considerou que os resultados das eleições autárquicas configuram uma “grande censura ao governo”, manifestando o descontentamento da população em relação ao rumo do país. “Esta vitória é uma mensagem clara de que o poder é do povo e não de detentores eternos”, disse o líder do partido, Rui Semedo.
A Direcção Nacional do MpD vai reunir no dia 11 de Janeiro. A reunião vai servir para “definir orientações estratégicas para reposicionar o partido e reforçar sua acção política”, destacou o vice-presidente do MpD, Elísio Freire. No PAICV, o actual presidente, Rui Semedo, não esclarece se é candidato à própria sucessão no Congresso que se realizará em Abril.
Primeira-dama
Foi, provavelmente, a maior polémica do ano: o salário pago à Primeira-dama. Como o Expresso das Ilhas avançou em Janeiro, uma directiva assinada por Jorge Tolentino, Chefe da Casa Civil da Presidência da República, estabeleceu o salário da Primeira Dama justificado pelo facto de esta ter “funções a tempo inteiro”. Jorge Tolentino acabou por ser substituído por Avelino Bonifácio em Outubro.
Mas voltamos ao primeiro mês do ano, na directiva era referido que o Orçamento da Presidência da República para 2023 já integrava na rubrica de Pessoal “as despesas referentes à remuneração da Senhora Primeira Dama, no termo das devidas articulações, fundamentação e arbitragem com o Ministério das Finanças” e que após o Presidente da República ter declarado “publicamente a Senhora Debora Katisa Morais Brazão Carvalho como a Primeira Dama” se desencadeou “o processo da sua requisição no quadro de origem, na CV Telecom, o que se concretizou com a sua colocação em comissão especial nos termos das normas vigentes nessa instituição de molde a que assumisse integralmente a condição de Primeira Dama”.
Alegando que a Primeira Dama tem “funções a tempo inteiro”, a directiva dizia que se justificava “o recebimento de remuneração mensal igual ao percebido no cargo no quadro de origem” no valor de 310.606$00 “não sendo, pois, a cidadã e profissional em causa prejudicada nos seus direitos pelo facto de ser Primeira Dama”. O problema é que em Cabo Verde não existe o estatuto de Primeira-dama nem qualquer regulação para a função.
Por isso mesmo, em Agosto, a Inspecção-Geral das Finanças concluía que o salário pago à primeira-dama “é irregular” e “não tem suporte na legislação” – relatório IGF
A Inspecção-Geral das Finanças deu por concluída a “Inspecção às Despesas com Pessoal da Presidência da República” e considerou que o montante pago à primeira-dama como vencimento mensal era “irregular” e não tinha “suporte na legislação em vigor”.
A acção de inspecção, centrada nas despesas com o pessoal, tinha como objectivo a verificação da legalidade e regularidade das “Depesas com Pessoal da Presidência da República” no período compreendido entre 9 de Novembro de 2021, data da tomada de posse do Presidente da República, até Janeiro de 2024.
A IGF recomendou a reposição do montante total de 5.396.352 escudos, correspondente a 24 meses de remuneração líquida pagos a título de remuneração no período em causa.
No final desse mês, o Expresso das Ilhas ouviu especialistas e Casimiro de Pina, advogado, jurisconsulto, escritor e académico chamou-lhe “o pior escândalo a envolver um chefe de Estado em Cabo Verde desde 1975. Isso nem no tempo da ditadura aconteceu. José Maria Neves desonrou o Estado cabo-verdiano, pura e simplesmente. Inventar, à margem da lei e da Constituição, um salário de 310 contos mensais só para agradar a namorada é, realmente, algo inaudito numa República”.
Na altura, Casimiro de Pina chegou a defender a renúncia do Presidente da República. “É óbvio que um PR tão fragilizado e com manchas tão graves, que põem em causa, de resto, as fundações da República e do próprio Estado de direito, não pode, de forma alguma, continuar no cargo. Seria de todo incompreensível. Onde fica a magistratura cívica, que se impõe pelo exemplo? JMN quebrou o juramento solene que prestou em 2021 perante a Assembleia Nacional. É alguém que não merece, pois, nenhum crédito e já não consegue funcionar como o guardião da Constituição”.
Na mesma altura, o constitucionalista Wladimir Brito defendeu que neste processo toda a gente errou. “Penso que há falhas recíprocas. O Presidente da República mandou um pedido de regulamentação da matéria e o governo meteu aquilo na gaveta. Por outro lado, o Presidente da República não tinha base legal para atribuir um salário à mulher, porque nada estava regulamentado”.
“A primeira-dama não é uma figura constitucional. Não existe”, sublinhou Wladimir Brito. “Nos outros países, há primeiras damas que têm assumido uma função auxiliar do respectivo marido. Não tem qualquer nomeação, estatuto constitucional, nem sequer legal”.
Também em Agosto o Presidente da República reagiu, em conferência de imprensa sem direito a perguntas, para dizer que a Primeira-dama já estava a trabalhar numa empresa nacional e que as remunerações recebidas tinham sido devolvidas, na íntegra, aos cofres do Estado. Na mesma comunicação, José Maria Neves atacou o governo, que coresponsabilizou por toda a situação.
Em Novembro, quando assinalou os três anos como Presidente da República, José Maria Neves defendeu a necessidade de rever a Lei Orgânica da Presidência da República e que há “constrangimentos orçamentais” que condicionam a sua actuação.
Cabo-verdianos desconfiam das instituições
A confiança dos cabo-verdianos nas principais instituições políticas e sociais registou uma queda significativa, conforme os resultados do mais recente estudo do Afrobarómetro, realizado entre os finais de Agosto e início de Setembro deste ano e publicado perto do final do ano.
O estudo abrangeu temas como qualidade da democracia, governação, corrupção, desempenho do Governo e as relações entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro e constata-se uma queda na confiança em todas as instituições: desde o Presidente da República, passando pelo Primeiro-Ministro, pela Assembleia Nacional, inclusive pela Comissão Nacional das Eleições, até mesmo as Forças Armadas, instituição que tradicionalmente regista o maior nível de confiança, caiu de 74%, em 2022, para 54% em 2024.
No seguimento, o presidente da Assembleia Nacional, Austelino Correia, pediu os políticos para considerarem o estudo que revelou esta “queda de confiança” em todas as instituições do país. “Uma coisa é o que os políticos pensam, outra bem diferente é o que os cidadãos percepcionam no dia-a-dia. A minha primeira impressão é que os políticos devem levar em consideração esses dados com imparcialidade, objectividade e racionalidade, para melhorarmos a percepção dos cabo-verdianos em relação à política”.
O antigo Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, também reagiu ao estudo, afirmando que a democracia em Cabo Verde é “irreversível”, destacando que a consolidação depende de “instituições fortes” que geram confiança nos destinatários do poder, para garantir seu avanço e modernização.
Trocas e saídas
Em Agosto, houve mudanças ministeriais: Augusto Veiga assumiu a Cultura, Jorge Santos ficou com o ministério do Mar, Evandro Monteiro deixou a secretaria de Estado da Saúde. A saída de Abraão Vicente do governo para se candidatar à câmara da Praia ‘obrigou’ às mudanças. Evandro Monteiro também saiu do governo para se candidatar à Câmara Municipal de Santa Catarina do Fogo.
Em Outubro foi a vez de José Filomeno Monteiro assumir o Ministério dos Negócios estrangeiros. “O que Cabo Verde pode esperar é o meu engajamento total, a energia que ainda me resta enquanto pessoa e a experiência acumulada ao longo da minha carreira diplomática e política”, declarou na tomada de posse. Rui Figueiredo, anterior ministro da tutela, saiu alegando razões pessoais. Miryan Vieira foi reconduzida no cargo de secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação.
Um mês antes, houve alterações na liderança da bancada parlamentar do MpD, com Celso Ribeiro a suceder a Paulo Veiga. Problemas de articulação entre o grupo parlamentar do MpD e o governo estiveram na base da decisão de Paulo Veiga se demitir.
Bater a porta com estrépito
Mas a saída mais estrondosa de todas foi a do histórico do PAICV, Júlio Correia, que bateu com a porta e saiu do partido em Julho. Na carta enviada ao presidente do partido – e tornada pública na sua página do Facebook – Júlio Correia refere o “desconforto cidadão perante o dirigismo político crescente em contramão à democracia interna outrora existente”. A partir do Fogo, o antigo secretário-geral, ministro, deputado e autarca do PAICV explicou ao Expresso das Ilhas o que o levou a tomar esta decisão. “Não há respeito por ninguém. Não há respeito pelo percurso de ninguém. Há um rebaixamento dos valores pela desvalorização da própria democracia interna. (…) Não aceito que me mandem calar e fazer parte de um partido que passa o tempo todo a mandar calar, um partido que hostiliza a reflexão”.
“Não posso consentir, porque nunca consenti, a falta de respeito, que fez escola com aquela direcção que assumiu em 2016. Foi a pior direcção que o partido teve ao longo da sua vida. Recuperou o centralismo democrático, uma coisa que o PAICV havia abandonado há muito tempo”. Disse ainda.
“No PAICV precisávamos de mais cabralólogos e menos cabralistas. Porque vejo que as pessoas citam Amílcar Cabral a descaso. Citam Amílcar Cabral e praticam exactamente o inverso daquilo que propõe Amílcar Cabral”, é outra das frases dessa entrevista.
Júlio Correia reiterou ainda que um possível regresso de Janira Hopffer Almada à liderança do PAICV não será bom para o partido. “Quem é que há-de querer ver isso com bons olhos? Nestas coisas nada melhor do que os factos. Vejo slogans pomposos, frases tremendas, que dizem que aquele mandato fez maravilhas, mas alguém consegue apontar alguma coisa que aquela direcção fez? Eu consigo e vários de nós conseguimos apontar: muitas maldades, muitas crueldades, muita falta de democracia, um arrivismo retrógrado que regressou ao partido a partir de 2016”.
O presidente do PAICV lamentou a decisão da saída do “camarada e amigo” Júlio Correia, mas Rui Semedo escusou-se a comentar as razões apresentadas.
Rankings
Gostamos de rankings em Cabo Verde. Em 2024, o arquipélago manteve o 3.º lugar no Índice Ibrahim de Governação Africana (IIAG) e destacou-se por investir mais de 10% do seu PIB em saúde e educação.
Outro ranking mostrou que Cabo Verde, em primeiro, e São Tomé e Príncipe, em terceiro, estão entre os países mais bem classificados em África no respeito pelos direitos políticos e liberdades civis, surgindo Angola como “não livre”, no relatório divulgado pela Freedom House.
Um último ranking indicou que a democracia cabo-verdiana ficou em terceiro lugar no continente africano e alcançou a 35.ª posição no panorama global, segundo o relatório de 2023 do Democracy Index organizado pelo The Economist Intelligence Unit. Dentro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Cabo Verde se posiciona logo atrás de Portugal, sendo o segundo país melhor classificado no índice.
O relatório, organizado pela Economist Intelligence Unit, faz um retrato anual do estado das democracias em 165 países e territórios, revelou ainda que o número de países com democracias (plenas ou com defeitos) subiu de 72 para 74 no último ano.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1205 de 31 de Dezembro de 2024.