Transição energética, será desta?

PorA Direcção,31 mai 2024 8:23

​A começar no dia 1º de Junho a Electra, SA será separada (unbundled) em três empresas, uma dirigida para a produção de electricidade, outra para a comercialização e a outra ainda de gestão da rede pública e também de compra, transporte e distribuição da electricidade. As mudanças segundo o governo visam conseguir ganhos de eficiência na produção e distribuição de energia e criar as condições para a transição energética, limitando a produção térmica e privilegiando as energias renováveis. Nesse sentido, as metas já estabelecidas são de atingir 30% de penetração das renováveis, solar e eólica, até 2025 e de 54% em 2030. Em 2040 espera-se chegar aos 100% com o apoio de parceiros internacionais.

Curiosamente, há mais de dez anos atrás, em 2010, também se dividiu a Electra em Electra Norte e Electra Sul com a perspectiva de aumentar a penetração das energias renováveis e diminuir a dependência dos combustíveis fósseis. As metas a atingir então, segundo a Resolução nº 19/2010 de 16 de Abril, eram de assegurar até 2020 a cobertura de 100 % das necessidades de energia eléctrica de, pelo menos, uma ilha, e de 50% do país com energias renováveis. Infelizmente, mais de uma década depois ainda se estava pelos 17% de penetração das renováveis, com uma empresa de electricidade a braços com ineficiências várias, perdas comerciais enormes e limitada na sua capacidade de investimento por um capital social negativo de cerca de 7 milhões de contos.

Metas ambiciosas foram estabelecidas nos dois momentos referidos. No primeiro, já se sabe que não se realizaram. No caso actual, também não há certezas. O FMI no relatório de avaliação técnica recentemente publicado (17 de Maio) mostra dúvidas quanto ao atingir as metas seja em 2025 seja em 2030. De facto, para se concretizar o pretendido muitos obstáculos terão que ser ultrapassados, entre eles o do enorme investimento na produção de energia, cerca de 252 MW em renováveis até 2030, e fundamentalmente na rede pública e na armazenagem de energia em baterias. Calcula-se, segundo o referido relatório, que o investimento na rede chegue a 108 milhões de dólares para estar à altura de incorporar energia de fornecedores com produção intermitente e variável, de ser gerida como um smart grid e cumprir com todas as metas estabelecidas.

É verdade que desta vez se veio com uma outra concepção na desagregação da Electra que resultou na criação de empresas por áreas funcionais de gestão de rede, produção e comercialização ao invés de uma perspectiva simplesmente geográfica de Electra Norte e Electra Sul como da primeira vez, em 2010. Na época tinha-se aflorado uma reorganização da Electra em moldes próximos da adoptada actualmente — mais próxima do que existe noutras paragens e em que há múltiplos produtores e é central uma rede moderna e bem gerida — mas foi rejeitada. Provavelmente perdeu-se tempo e oportunidades e agora há que fazer uma caminhada contra o tempo quando os efeitos das alterações climáticas se fazem sentir cada vez mais e todos clamam pela descarbonização da economia.

Por resolver, e em qualquer configuração de gestão empresarial do sistema eléctrico, fica o proverbial elefante no meio da sala: as enormes perdas comerciais por falta de pagamento e por furto de electricidade. Na generalidade das ilhas a média dessas perdas é de 14%, mas na ilha de Santiago com cerca de 55,4% da produção nacional é de 35%, o que torna complicado a situação das empresas no sector, sejam elas públicas ou privadas. Quando se prevê privatizações para atrair capitais para o sector e suportar o grosso dos investimentos necessários para se fazer a transição energética e contribuir para a descarbonização da economia, essencial se torna encontrar uma solução para essas perdas não técnicas. Aliás, também para as perdas técnicas que, para serem debeladas, também carecem de investimentos substanciais de melhoria da eficiência na rede eléctrica.

De facto, quem investe quer retorno do seu capital aplicado e espera que haja um ambiente de negócios favorável e previsível. Por outro lado, os consumidores não querem arcar com os custos dessas perdas técnicas e não técnicas suportando tarifas altas para manter viáveis as empresas de electricidade. Já por si essa situação contribui para aumentar os custos de produção com impacto em todas as empresas. Afecta ainda negativamente a competitividade nacional desincentivando investimentos que podiam contribuir para o crescimento e diversificação da economia nacional. Como combater esse mal é a questão que se tem de colocar antes das privatizações para não se ter o Estado a arcar com compensações extraordinárias a privados para garantir bens públicos (utilities) de electricidade.

Algo similar acontece com o sector de abastecimento de água à população e às empresas. Também exige enormes investimentos na rede para se limitar as perdas desmesuradas (60%) a que está sujeito. Sofre, entretanto, dos mesmos males de furtos e não pagamento de facturas numa escala igual ou superior à da electricidade. O facto da quantidade de água potável disponível no país depender cada vez mais da produção via dessalinização torna ainda mais forte e complexa a ligação entre água e energia. Os investimentos que se mostrarem necessários e a gestão cuidada a dedicar tanto ao sector eléctrico como ao sector de produção e distribuição de água, evitando custos proibitivos para os consumidores, devem ter isso em devida conta.

Anuncia-se para o dia 1º de Junho uma nova largada em sectores como energia e égua que são fundamentais para o futuro do país num momento em que a humanidade vive na iminência de assistir a profundas alterações climáticas potencialmente criadoras de escassez desses bens preciosos. Cabo Verde pela sua história devia estar melhor preparado com uma cultura de poupança de água e energia e com uma sensibilidade especial em procurar dar uso eficiente a esses factores. Infelizmente assim não aconteceu e o país nem conseguiu se antecipar ao que já se sabia que vinha à frente e adaptar-se a tempo. Nem muito menos soube recorrer à sua experiência de resiliente climático de séculos para oferecer algo inovador em bens, serviços ou experiência. Agora tem que acertar o passo com as mudanças que se estão a verificar a nível global e é importante que saiba focar-se no que é importante para não ficar para trás.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1174 de 29 de Maio de 2024.

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Autoria:A Direcção,31 mai 2024 8:23

Editado porAndre Amaral  em  20 nov 2024 23:25

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