A condição de país arquipelágico, remoto e a sofrer durante séculos as agruras de um clima hostil e imprevisível devia ter sido incentivo suficiente para uma actuação estratégica dos sucessivos governos no sentido de uso criativo das tecnologias existentes e desenvolvimento das melhores práticas de eficiência energética e de mobilização, produção e utilização da água. De facto, há muito que deviam ter sido feitas as apostas certas para responder aos desafios que Cabo Verde sempre enfrentou e que tendencialmente são similares aos que muitos outros países passaram a enfrentar actualmente.
Se essa tivesse sido a via escolhida, hoje o conhecimento e as competências adquiridos e os serviços criados podiam constituir vantagem no intercâmbio com os outros países, com ganhos para Cabo Verde. Não se estaria a debater com a possibilidade de não se puder fazer com sustentabilidade a transição energética em caso de não se resolver os casos de perdas, de roubo de energia e de actuação criminal de forma organizada no sector, como foi sublinhado em dois momentos na comunicação social pelo ministro da indústria, comércio e energia e pelo PCA da Electra.
Devia pesar sobre a necessidade de políticas consistentes e de uma visão mais larga no sector um factor de urgência que é a questão do custo dos factores energia e água na actividade económica e do seu impacto na competitividade do país. O facto de se pagar preços de energia dos mais altos do mundo não foi, porém, suficiente incentivo para se focar na resolução de um problema central da economia que levado a bom porto implicaria a exploração de recursos em energias renováveis abundantes no país. Deixou-se, pelo contrário, que ineficiências aumentassem progressivamente e atingissem valores de cerca de 114 Gigawatts-hora em perdas de energia correspondente a 24,6% da produção nacional. Para isso terá contribuído a falta de um plano de investimento consistente na produção e na rede de transporte e distribuição acompanhado de dificuldades de cobrança e acções deliberadas de roubo de energia para venda e para consumo.
A complicar as coisas veio uma outra constatação. Ao reconhecer que as perdas maiores verificam-se na Praia e na ilha de Santiago (34,5%) e que os prejuízos nos resultados globais da empresa situam-se na Electra Sul, não obstante as várias equipas de fiscalização organizadas para tentar combater os problemas de roubo e fraude, acabou-se por chamar a atenção para situação social grave que se vive na ilha e na capital. De facto, há por um lado um problema da autoridade do Estado em que mesmo com leis punitivas não se consegue impedir nem dissuadir o roubo de energia. Por outro lado, como é reconhecido pela Electra, não se rouba energia só por falta de rendimento ou por falha da empresa em estabelecer ligações, mas também como acto deliberado de pessoas com rendimento e estatuto social e de unidades produtivas com grande consumo de energia.
Como diz o PCA da Electra “é um crime cada vez mais organizado, as pessoas estão a revender energia roubada, é um crime que lesa não só a ELECTRA, mas toda a economia. Temos operadores económicos, padarias, hotéis, empresas de frio, temos a classe média em Palmarejo”. Aparentemente nesses casos os mecanismos de pressão e dissuasão social não parecem funcionar. Não se nota qualquer sanção para quem assim se comporta, sobrecarregando todos os consumidores com tarifas mais altas por incorporarem as perdas na rede pública. Mas quando se conjuga essa constatação com a percepção de ausência de autoridade, traduzida numa presença menos perceptível da polícia, no aumento de actividades não licenciadas e mesmo ilegais ou clandestinas na frente de todos, começa a indiciar uma degenerescência social e cívica que acaba por manifestar-se de várias formas.
Entre outras consequências, afecta as relações interpessoais ao minar a confiança, potencia o uso de violência na resolução dos problemas, incentiva a criação de pequenas comunidades ou gangs onde particularmente os mais novos procuram obter um sentimento de pertença e abre caminho para delinquência aberta e violenta. A presença de ilícitos perigosos como drogas “pesadas” e o acesso a armas de fogo podem tornar explosiva um ambiente desses. Os vários surtos de crime no país e em particular na capital e os exemplos de criminalidade violenta que já se estão a espalhar também para outras ilhas deviam ser vistos como sinais de alerta para uma situação social que só tende a piorar, afectando tudo e todos. O que se pode já notar é que tem o potencial de tirar tranquilidade às pessoas, mexer com a economia, afastar turismo e investidores, aumentar custos em particular com a segurança e os serviços de saúde e afectar os jovens no seu crescimento e desempenho escolar.
Por isso mesmo ninguém devia procurar alhear-se do que está a passar. A extrema violência nos assaltos e o roubo descarado de energia denunciado pela Electra são sintomas claros do mesmo mal social que grassa pelo país. É uma realidade que interpela a todos e que para ser ultrapassada deverá exigir a mobilização da sociedade e um esforço concertado para se manter o país unido à volta de um sistema de valores consensual, inspirado na Constituição da República, e de uma visão compreensiva do futuro que potencie os recursos do país e as oportunidades emergentes. Em causa está o próprio futuro do país e a sua capacidade de vencer perante a adversidade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1122 de 31 de Maio de 2023.