Agora o sentimento é de que se deve esperar tempos difíceis enquanto o mundo procura equilibrar-se num sistema de poder multipolar e as nações poderosas confrontam-se para assegurar zonas de influência, com prejuízo para a solidariedade internacional e para a dinâmica de crescimento mundial.
Em Cabo Verde a pressão nos últimos anos da década de oitenta de um mundo em mudança, em que regimes totalitários e autoritários caiam em todos os continentes com destaque para a queda do Muro de Berlim, em Novembro de 1989, levou à abertura política de 19 de Fevereiro de 1990. O gesto do regime era realmente uma tentativa de fuga em frente de um partido com quinze anos de poder ditatorial que queria adaptar-se aos novos tempos, mas conservando a sua hegemonia. Suportado por sondagens realizadas pouco antes, que lhe dava ampla aceitação popular, o seu plano estratégico só previa eleições pluripartidárias em 1995, criando, entretanto, no âmbito da abertura, a possibilidade de grupos de cidadãos concorrerem nas eleições em Dezembro de 1990.
O surgimento menos de um mês depois da declaração política de 14 de Março a constituir um Movimento para a Democracia com reivindicações muito claras de mudança de regime e da instituição de uma democracia liberal alterou-lhe completamente os planos. Percebeu-se que afinal o regime de partido único não gozava de suporte alargado e que na sociedade havia uma vontade de liberdade e de autonomia para escolher governantes. O efeito da declaração do MpD não se limitou ao exterior do partido. Também provocou movimentos no seu interior, levando a novos desenvolvimentos que puseram em causa todo o plano inicial da abertura.
Rapidamente o então presidente da república recuperou a iniciativa política e mostrou-se favorável à eleição do PR por sufrágio directo e universal e disponibilizou-se para deixar o cargo de secretário-geral do PAICV para ser candidato suprapartidário nas eleições presidenciais de 1990-91. Com o calendário previsto e as condições para as eleições completamente alterados, o PAICV teve que se ajustar rapidamente, procurando renovar a sua direcção e a sua imagem pública. Nas ruas e em todas as ilhas, porém, a movimentação popular engrossava e quase imediatamente encontrou o seu líder no conceituado jurista e figura pública Carlos Wahnon Veiga que se tinha colocado à frente do MpD como seu coordenador provisório.
Com a declaração política de 14 de Março, a abertura política ganhou uma outra natureza e dinâmica e deixava de ser uma tentativa de fuga em frente para manter o PAICV no poder. Pela primeira vez a acção política no arquipélago passou a ser feita no sentido da promoção dos ideais de liberdade, pluralismo e justiça e com vista a uma cidadania plena e a uma prosperidade compartilhada e não com o objectivo de manter um único partido indefinidamente no poder. Diferentemente do que foi a actividade política em anos passados, a mobilização das populações desenrolou-se sem coacção ou intimidação das pessoas.
Ciente do espaço de liberdade já conquistado pela rapidez dos acontecimentos nesse extraordinário ano de 1990, os cidadãos puderam reunir e manifestar e, à sua escolha, assistir aos eventos políticos promovidos por grupos políticos e proto-partidos emergentes. A independência ou soberania, que na sua essência significa tanto autodeterminação e autonomia em relação a governos estrangeiros como fundamentalmente a possibilidade de democraticamente os membros da comunidade política criarem as suas próprias leis e escolher os seus governantes, finalmente acontecia. Quando nas eleições de 13 de Janeiro mais de dois terços votaram, o sentido maioritário do voto não era o de simples preferência de um partido sobre outro numa nova legislatura, mas de rejeição profunda de um regime político ditatorial.
O mandato recebido foi histórico no seu alcance e abrangência. Tratava-se primeiro de construir uma democracia liberal e constitucional e consolidar as suas instituições. Para isso caminhou-se seguramente para a adopção da Constituição de 1992 e a criação do poder local democrático, de forças armadas subordinadas ao poder democraticamente legitimado e de garantias para a existência de imprensa livre e de poder judicial independente. O outro mandato tinha a ver com a necessidade de ultrapassar a estagnação económica dos finais dos anos oitenta, à semelhança do que acontecia com outras economias estatizadas. Reformas profundas nos domínios da política monetária, financeira, fiscal deviam ser acompanhadas de liberalização da economia e de privatizações para se criar uma economia de mercado e aumentar o potencial de crescimento.
Trinta e cinco anos depois de se ter iniciado a caminhada para a adopção dos princípios civilizacionais de respeito pela dignidade humana e se ter feito a aposta na modernidade com vista à construção de prosperidade na liberdade e na paz, sinais complicados sugerem alguma tendência para se reverter o processo. É verdade que tudo indica que o país não está a crescer suficientemente, que a produtividade é baixa e que não é suficientemente competitivo. Mas o mais preocupante é o que as sondagens indiciam da perda tendencial de confiança nas instituições, nos actores políticos e no futuro do país. Algo em que são os próprios os principais responsáveis na luta vã para tirar dividendos pela via de culpar os outros e de se entregarem a tacticismos infantis que segundo António Guerreiro do jornal Público faz “da vida política uma competição de recreio ou um cenário de desenho animado pueril e regressivo”.
O que parece faltar é a ousadia para se interrogar sobre os constrangimentos que impedem que o país cresça mais, crie mais empregos e melhore os salários existentes. Diferentemente do que aconteceu há trinta e cinco anos, quando um regime monolítico abriu uma fresta e rapidamente da sociedade civil surgiu uma declaração política e pessoas dispostas a explorar as novas possibilidades, Cabo Verde parece um país de autocensurados. Já há muito que regularmente se trazia à baila a questão da autocensura na comunicação social. Recentemente no programa de Carlos Santos na RCV fez-se referência a economistas que se autocensuram e não aceitam comentar o estado da economia. É de se perguntar se é um caso isolado ou se abrange outras classes profissionais, o que seria um sinal do fraco retorno do enorme investimento feito ao longo dos anos no capital humano do país.
Sem essa vitalidade crítica na sociedade civil e no interior dos partidos para visionar, questionar e para propor fica difícil o país encontrar um caminho para sair dos bloqueios actuais. Com o mundo a mudar rapidamente no sentido de maiores incertezas, a tentação geral, infelizmente, não tem sido o de procurar soluções criativas que promovam a cooperação e a confiança entre pessoas. Vai-se pela aposta no discurso anti-elites, alimenta-se o ressentimento e a inveja e apresenta-se, como solução para os problemas das pessoas, a redistribuição de rendimentos. Esquece-se que fórmulas similares já foram aplicadas em Cabo Verde nos primeiros anos de independência. Hostilidade a elites, apelos a luta de classes, e acusações de exploração só fizeram o país perder oportunidades e chegar a 1990 com uma economia estagnada e rendimento per capita de 817,4 dólares.
A grande questão não é porque há pobreza no mundo, mas sim como se cria riqueza que pode tirar as populações da miséria e permitir-lhes uma vida livre e próspera com autonomia. Para isso é preciso ousar como se fez em 1990 em todos os cantos do país para que Cabo Verde fosse hoje um país da liberdade e da democracia.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1215 de 12 de Março de 2025.