É notório que a colonização e a posterior edificação social, permeadas por severos preceitos jurídicos e reminiscências de um direito romano, encontraram em São Vicente um microcosmo singular, marcado pela dificuldade de povoamento decorrente da escassez de recursos naturais, fato que instaurou, de forma inexorável, uma condição de passividade e resiliência entre os seus habitantes. Tal cenário forjou indivíduos que, entre a resignação e a esperança, aprenderam a aguardar o abastecimento oriundo das ilhas produtoras, num exercício paradoxal de serenidade e adaptação. No limiar da construção educacional cabo-verdiana, São Vicente destaca-se por ter abrigado o primeiro liceu do país.
Em 8 de outubro de 1917, pelo decreto n.º 3:435, oLiceuNacional fixou-se no Mindelo, mais tarde, em 15 de janeiro de 1926, a instituiçãofora denominada deLiceuCentral Infante D. Henrique, após publicação do diploma legislativo colonial n.º 92. A instituição que, sob o manto da erudição e da civilidade, serviu de berço para grandes intelectuais que viram na escrita e nas artes a emancipação social. Assim, num paradoxo quase quixotesco, a ilha demonstrou, de um lado, uma vocação para a excelência acadêmica e, de outro, um relaxamento existencial imposto pela carência dos recursos, que determinava a espera pacífica e fatalista pela reposição dos insumos essenciais. Na contemporaneidade, a população de São Vicente, embora revestida de uma educação refinada, comportamento civilizado e espírito artístico, desdobra-se em duas classes bem distintas: uma composta por profissionais comprometidos com o futuro e outra por indivíduos que vivem o presente, imersos em uma rotina hedonista – pautada no consumo de drogas, álcool e na prostituição –, configurando um cenário de desequilíbrio moral que contrasta com a imagem de anfitriões relaxados e meigos. Este dualismo social é, quiçá, a manifestação mais pungente de um liberalismo intrínseco aos soncentinos, fruto da importação da cultura brasileira, denotando, satiricamente a adoção do carnaval à moda brasileira, consolidando também a alcunha de “brasileiros” para os soncentinos, notórios por sua passividade e relaxamento perante as vicissitudes da existência. Em notória contradição, enquanto São Vicente tenta manter o legado dos grandes intelectuais e da tradição escolar, a cidade da Praia por ter maior volume populacional, continua sendo a ilha com o maior índice delituoso. Nesta, o luar e as estrelas parecem ser os confidentes dos criminosos, das autoridades e dos entusiastas das noitadas, de modo que, para transitar pelas ruas após o crepúsculo, o cidadão deve demonstrar coragem heróica, dada a constância dos assaltos. Recentemente, São Vicente tem sido inundada por assaltantes, vendedores de entorpecentes, disputas territoriais em quebradas, brigas entre grupos rivais e jovens que utilizam motas como meio para perpetrar delitos. Saques em residências – sobretudo as dos emigrantes – e episódios de vandalismo reiteram a complexa conjuntura criminal. Não obstante, São Vicente emerge como exemplo paradigmático nas reivindicações por uma sociedade mais justa em Cabo Verde, sendo a única ilha onde os cidadãos se reúnem para manifestar desagrados e exigir reformas. Entretanto, a condição de Regionalista que caracteriza muitos soncentinos, os quais por anos ocultaram a verdadeira magnitude dos males sociais, alcançou proporções tão críticas que, hoje, a criminalidade se revela de forma insofismável. Neste contexto, os soncentinos, exaustos de verem o ordenamento jurídico e social em ruínas, unem esforços com as autoridades competentes, promovendo manifestações, sensibilizações e apoiando iniciativas que visam à reabilitação dos imersos no submundo delinquente. São Vicente, com sua postura exemplar, ensina às demais ilhas a verdadeira cidadania, demonstrando um compromisso intransigente com o bem-estar coletivo e a restauração da ordem. Em contrapartida, outras ilhas, notadamente a cidade da Praia, deveriam adotar medidas similares para reverter o quadro de alta criminalidade que as aflige. A projeção para um futuro em que a criminalidade seja erradicada em São Vicente – e, por extensão, em todo Cabo Verde – repousa na conjugação de rigorosas medidas preventivas, na mobilização cívica e na implementação de um arcabouço jurídico que promova a justiça e a equidade. Assim, é plausível vislumbrar um horizonte em que o sossego social se sobreponha à delinquência, permitindo que a nação caminhe para um destino de paz e prosperidade.
Súplica
Soncente inxnam oia luz de sol,
Soncente inxnam dzê mãe um crê,
El inxnam pecá perdoá e crê nha cretchêu,
Ess terra levam ma el ca tcham fcá lá,
El mandam um ultimato el tchemam pa sê coro,
Ta lamentá um m’uvil dzê,
Oiá nha fidje um mestê d’bô,
Bem pa bô terra,
Bem crial um czinha,
Dá um alento a sê sofrer,
Vra se aurora colorid, (Djoya, 2018).
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1219 de 9 de Abril de 2025.