Uma Visão pelo Oceano - Um Despertar Global, uma Missão Nacional

PorPaulo Veiga,23 jun 2025 8:41

Da UNOC3 à visão estratégica de Cabo Verde como Big Ocean State

Terminada que está a Conferência dos Oceanos das Nações Unidas 2025 (UNOC3), é importante fazer, não apenas, um balanço, mas um caminho que nos mostre o que nos trouxe até aqui e nos projete um futuro sustentável para o nosso oceano. Entre Lisboa, que acolheu em 2022 a segunda Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos, e Nice, anfitriã em 2025 da terceira edição, o mundo deu sinais claros de que o tempo de marginalizar o oceano nas grandes decisões globais está a chegar ao fim.

Chegamos a Nice num momento crítico para a saúde dos oceanos. Mais de 90% das populações de peixes estão sobre-exploradas ou no limite da sustentabilidade, cerca de 50% dos recifes de coral já desapareceram nas últimas décadas, e o oceano absorve atualmente mais de 25% das emissões globais de dióxido de carbono, tornando-se mais ácido e menos propício à vida. A poluição marinha, sobretudo por plásticos, ameaça milhares de espécies e compromete a segurança alimentar de centenas de milhões de pessoas. E mesmo assim, apenas 8% da superfície oceânica está formalmente protegida. Estes números, apresentados por diversas organizações e painéis científicos internacionais, estiveram na base do apelo que levou líderes, cientistas e sociedade civil a reunirem-se na UNOC3. Porque a verdade é simples: salvar os oceanos é salvar-nos a nós próprios.

Estive presente em Nice com esse espírito, o de quem vem de um país que é feito de mar, e que não pode estar ausente de nenhum debate sobre o futuro do oceano. Cabo Verde, arquipélago atlântico com uma longa história de ligação ao mar, tem agora a oportunidade, e o dever, de se afirmar como um Big Ocean State, com voz, Visão e vontade, e participar nesta batalha que, não é apenas sobre o oceano, mas sobre o planeta e a Vida.

O Oceano no centro da agenda internacional

O que antes era um tema apenas para cientistas, ambientalistas ou diplomatas de nicho, tornou-se finalmente uma urgência política e civilizacional. O oceano não é apenas um regulador climático, é um espaço vital para a vida, para a segurança alimentar, para a economia e para o equilíbrio do planeta. Durante a UNOC3, ficou claro que a comunidade internacional compreende hoje que não haverá transição ecológica, nem desenvolvimento sustentável, sem uma profunda mudança na forma como vemos e tratamos o nosso oceano.

Nesse sentido, a aprovação do novo Tratado de Proteção da Biodiversidade Marinha em Águas Além da Jurisdição Nacional (BBNJ), conhecido como “Tratado dos Oceanos”, foi um marco histórico. Pela primeira vez, há um enquadramento jurídico robusto para proteger os bens comuns da humanidade em alto-mar, onde se concentram mais de 60% dos oceanos do mundo. Este tratado é muito mais do que uma mera ferramenta jurídica, é uma declaração moral de que o oceano pertence a todos, e que todos temos de agir na sua defesa.

Como resposta a este foco prioritário foram feitos avanços significativos. Entre as várias propostas que ganharam destaque na UNOC3, há uma que merece especial atenção: a ideia de organizar, já em 2026, uma COP dedicada exclusivamente aos oceanos. Esta proposta tem vindo a ganhar força, e surge como resposta à sensação generalizada de que, apesar dos avanços, o oceano continua a ser o parente pobre nas COPs sobre o clima.

Uma COP dos Oceanos permitiria concentrar esforços, fundos e compromissos numa agenda própria e urgente. Seria também uma oportunidade de maior inclusão dos países insulares e costeiros, dos cientistas, da juventude e das comunidades pesqueiras. Uma COP centrada no oceano daria um novo impulso à literacia oceânica, à investigação científica, à cooperação entre países e à mobilização global por um novo pacto azul.

Cabo Verde, um Grande País Oceânico

Entre centenas de discursos, apresentações e eventos, há um caso que vale a pena destacar: o dos Açores. A região autónoma portuguesa tem demonstrado como é possível ser pequeno em escala, mas grande em ambição oceânica. Com políticas de conservação marinha exemplares, reservas naturais bem geridas, apoio à e da ciência internacional e uma diplomacia regional ativa, os Açores tornaram-se um laboratório vivo do futuro azul.

Mais do que boas práticas, os Açores oferecem um modelo de governação que alia sustentabilidade, conhecimento e visão territorial. Mostram que a insularidade não é limitação, mas posição estratégica. Cabo Verde, que partilha com os Açores tantas características geográficas e culturais, tem muito a ganhar ao aprofundar o diálogo e a cooperação com esta região atlântica.

E por isso é tempo de dizê-lo com clareza: Cabo Verde não é um país pequeno. É um país arquipelágico, sim, mas com uma Zona Económica Exclusiva de quase 800 mil km², uma nação onde o seu território terrestre é inferior a 1% e a sua alma e grandeza está no seu mar. Este mar é parte do nosso património, da nossa economia e da nossa identidade. Ignorá-lo ou subvalorizá-lo seria abdicar de uma riqueza imensa, não apenas em recursos, mas em possibilidades. Este é o momento de valorizarmos uma das nossas bandeiras: “Cabo Verde 99% Mar”.

A designação de Big Ocean State deve ser mais do que um slogan político. Deve ser assumida como uma linha estratégica de desenvolvimento. A nossa diplomacia tem de ser azul. A nossa economia tem de ser azul. A nossa educação tem de ser azul. O mar não é apenas um meio que nos separa, é a grande avenida que pode ligar Cabo Verde ao futuro, ao investimento, ao conhecimento e ao progresso.

Uma Visão para uma política azul

O que fazer então? A primeira medida é simbólica e estrutural: precisamos de uma Estratégia Nacional para o Oceano, que seja transversal, ambiciosa e pragmática. Esta estratégia deve começar nas escolas, com programas de literacia oceânica que ajudem a formar uma geração que compreenda o valor do mar para além da praia e da pesca. Uma Estratégia que possa nascer na sociedade civil, envolvendo todos, desde pescadores, cientistas, fundações, universidades e empresas. Sem a presença e contributo de todos não iremos conseguir alcançar uma mudança social que nos coloque no caminho do desenvolvimento em torno da economia azul.

Em segundo lugar, é essencial reforçar a aposta na ciência oceânica, criando parcerias com universidades, centros de investigação e entidades internacionais que queiram estudar o nosso mar em colaboração com o país. Cabo Verde pode e deve tornar-se uma plataforma regional de ciência e inovação marinha. A iniciativa de um Centro de Excelência Oceânico em Cabo Verde é um excelente ponto de partida, mas, mais uma vez, esta é uma estratégia que deve unir a sociedade e ser muito maior que uma mera ação governativa, deve ser um desígnio suprapartidário e global.

Em terceiro lugar, é urgente acelerar a transição para uma economia azul inclusiva e sustentável: pescas com base científica e valor local, turismo náutico de qualidade, biotecnologia marinha e energias renováveis oceânicas. Tudo isto deve ser acompanhado por uma diplomacia azul, que nos projete como parceiro credível nos fóruns internacionais. E, também aqui, a diplomacia azul não será só da responsabilidade exclusiva dos atores políticos. Todos podemos e devemos fazer a nossa parte.

“Porque é que devo preocupar-me com o oceano? Porque o oceano é a pedra basilar do sistema de suporte de vida da Terra... É o coração azul do planeta — e devemos cuidar do nosso coração.” - Sylvia A. Earle

A presença na UNOC3 reforçou-me esta convicção: Cabo Verde tem tudo para ser um líder regional no novo tempo do oceano. Mas para isso, precisamos de vontade política, visão estratégica e uma cultura pública que valorize o mar como activo nacional. O futuro não está apenas à nossa frente, está à nossa volta, a cada onda, a cada porto, a cada jovem que olha o horizonte à procura de uma oportunidade.

O oceano é o nosso maior recurso, a nossa maior responsabilidade e, talvez, a nossa maior promessa. Enquanto político, cidadão e cabo-verdiano, saio de Nice com a certeza de que não podemos esperar porque o mundo começa, precisamente, no nosso mar. É tempo de agir. Cabo Verde é um país insular, mas não isolado. Cabo Verde é um Big Ocean State.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1229 de 18 de Junho de 2025.

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Autoria:Paulo Veiga,23 jun 2025 8:41

Editado porAndre Amaral  em  24 jun 2025 23:22

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