Na perspetiva de Canotilho, tutela jurisdicional efetiva significa assegurar não apenas a abertura formal dos tribunais, mas também a existência de meios processuais idóneos, decisões tempestivas e garantias eficazes contra o arbítrio do Estado. Assim, tutela é, em essência, Poder-Jurisdição ao alcance do indivíduo.
Em Cabo Verde, tal garantia ganha densidade constitucional através de uma plêiade de normativos, designadamente os artigos 12.º/2, 20.º, 22.º, 36.º, 245.º/e e 281.º da Constituição da República. Estes dispositivos consagram o acesso ao direito, o acesso aos tribunais, o controlo jurisdicional da Administração Pública e os mecanismos de fiscalização da constitucionalidade, configurando um sistema que, em teoria, assegura ao cidadão meios suficientes para reagir contra ilegalidades administrativas e violações normativas.
O Contencioso Administrativo de 1983: A Lei que o Tempo Esqueceu
Todavia, a realização plena da tutela jurisdicional efetiva esbarra numa ironia histórica e jurídica: o contencioso administrativo cabo-verdiano ainda é regulado pela Lei n.º 14-A/1983, diploma aprovado num momento em que o país vivia sob um sistema político distinto do vigente. Após a independência e ao longo de todo o período democrático, nenhum líderes/legislador se mostrou verdadeiramente empenhado em reformar esta lei obsoleta, revelando o que se pode denominar, com propriedade, uma hipocrisia política estrutural, o discurso da modernização do Estado nunca alcançou a necessária atualização da jurisdição administrativa.
Não obstante a ultrapassagem histórica da lei, o intérprete atual, munido dos princípios constitucionais pós-2010, pode e deve proceder a uma interpretação atualista e conforme à Constituição. A força normativa da Constituição, particularmente no domínio dos direitos, liberdades e garantias, impõe a aplicação imediata dos princípios constitucionais. O artigo constitucional sob o epígrafe “Força Jurídica” estabelece que tais normas “vinculam todas as entidades públicas e privadas e são diretamente aplicáveis”. Assim, mesmo sem um novo código de processo administrativo, o cidadão não fica desamparado, pois a Constituição funciona como fonte direta de proteção jurídica.
Garantias dos Particulares Contra a Administração
O sistema constitucional cabo-verdiano consagra diversas garantias fundamentais dos particulares, entre as quais se destacam:
- Direito de ação e recurso base da tutela jurisdicional (art. 20.º).
- Recurso contencioso de anulação – previsto no art. 245.º/e, verdadeiro instrumento de controlo da legalidade administrativa.
- Fiscalização concreta da constitucionalidade permitindo ao cidadão atacar normas inconstitucionais aplicadas no seu caso.
- Direito à informação jurídica e patrocínio judiciário/oficioso consagrados nos artigos 22.º e 212.º.
A consolidação destas garantias é reforçada por estruturas como as Casas de Direito, que asseguram consultas jurídicas gratuitas, e pela Ordem dos Advogados de Cabo Verde, que garante defesa e patrocínio oficioso a quem deles carece. Trata-se de mecanismos essenciais para materializar o princípio da igualdade de armas e assegurar que a insuficiência económica não constitua obstáculo ao acesso aos tribunais.
O Paradoxo Legislativo: Omissões e a Criação do Código do Procedimento Administrativo
Apesar da clara obsolescência do regime do contencioso administrativo, o legislador aprovou mais recentemente um Código do Procedimento Administrativo, demonstrando a ironia de modernizar o procedimento administrativo sem modernizar o processo contencioso, que constitui o verdadeiro instrumento de controlo da Administração. Verifica-se, portanto, uma omissão legislativa parcial, no sentido defendido por autores como Vital Moreira, segundo os quais a omissão existe quando faltam medidas legislativas necessárias ou estas são inadequadas.
Ainda que a Constituição cabo-verdiana não preveja expressamente a figura da inconstitucionalidade por omissão, diferentemente de Portugal ou Brasil, a doutrina admite que, por via interpretativa, se possa contornar a lacuna, mediante aplicação reforçada dos princípios constitucionais e da fiscalização concreta da constitucionalidade.
Modelos Alternativos de Organização do Contencioso Administrativo e a sua Aplicabilidade no Direito Cabo-verdiano
Os modelos objetivo e subjetivo de contencioso administrativo revelam distintas formas de conceber a justiça administrativa, mas ambos fornecem elementos úteis para uma evolução coerente do sistema cabo-verdiano. Num modelo objetivo, o processo centra-se no interesse público e no controlo da legalidade, conferindo ao juiz poderes essencialmente cassatórios. Já o modelo subjetivo privilegia a tutela dos direitos individuais, exigindo juízes independentes, dotados de poderes de plena jurisdição e aptos a apreciar a relação jurídica entre Administração e particular.
No contexto cabo-verdiano, onde a Constituição consagra um modelo predominantemente subjetivo, impõe-se uma leitura integradora destes modelos, reforçando o papel do juiz como garante da efetividade dos direitos e como guardião da Constituição. O juiz não se limita a anular atos: deve assegurar que a Administração respeita posições jurídicas dos cidadãos, impondo a execução das sentenças e desaplicando normas inconstitucionais. Assim, a aplicabilidade prática destes modelos no Direito cabo-verdiano depende da capacidade do julgador de harmonizar legalidade e proteção subjetiva, tornando efetiva a tutela jurisdicional num sistema ainda condicionado por legislação desfasada.
O Sistema de Recursos e a Fiscalização da Constitucionalidade
No quadro do controlo jurisdicional, importa destacar os mecanismos processuais aplicáveis quando tribunais de comarca aplicam normas alegadamente inconstitucionais:
- Tribunais judiciais têm a prerrogativa de se pronunciar sobre a aplicação do direito ordinário.
- O Tribunal Constitucional intervém apenas quando a questão foi previamente suscitada e decidida pelas instâncias ordinárias, esgotando-se todos os recursos.
- Decisões das comarcas que apliquem normas tidas como inconstitucionais são impugnáveis para os tribunais judiciais superiores, no âmbito de recurso ordinário.
- Apenas depois de pronunciamento do Supremo Tribunal, e havendo persistência na aplicação da norma inconstitucional, pode o processo ascender ao Tribunal Constitucional, nos termos do art. 281.º, n.º 1/a, art. 282.º, n.º 2 da Constituição e art. 77.º/2 da LTC.
Este sistema assegura que o cidadão tenha meios eficazes de controlo tanto da Administração Pública como das normas legais que lhe sejam aplicadas.
5. A Tutela Jurisdicional Efetiva Como Síntese do Sistema
Os textos apresentados sintetizam a essência da tutela jurisdicional: o direito de exercer controlo judicial sobre atos e normas, de iniciar processos contra qualquer entidade e de conhecer e utilizar meios jurídicos adequados. A informação jurídica (art. 22.º) desempenha função preventiva, enquanto a assistência judiciária garante que a pobreza não seja causa de denegação de justiça.
Assim, mesmo com lacunas legislativas e leis obsoletas, o sistema constitucional cabo-verdiano permite, mediante interpretação conforme, assegurar uma tutela jurisdicional efetiva, garantindo que nenhum direito fique sem juiz e que a Administração Pública permaneça vinculada à legalidade e ao escrutínio democrático.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1251 de 19 de Novembro de 2025.
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