A Tutela Jurisdicional Efetiva em Cabo Verde: Entre a Constituição, a Omissão Legislativa e a Ironia do Contencioso Administrativo de 1983

PorJosé Mendonça Monteiro,24 nov 2025 7:46

José Mendonça Monteiro - Licenciado em Direito; Técnico da Segurança Pública Pós-graduando em Direito Penal e Direito Processo Penal Militar
José Mendonça Monteiro - Licenciado em Direito; Técnico da Segurança Pública Pós-graduando em Direito Penal e Direito Processo Penal Militar

​A tutela jurisdicional efetiva constitui um dos pilares fundamentais do Estado de Direito Democrático. A doutrina clássica, representada por Cappelletti e Garth, identifica-a como o “direito de acesso à justiça e à proteção jurisdicional adequada”, isto é, o poder conferido ao cidadão de provocar o aparelho judicial para defesa de direitos subjetivos violados ou ameaçados.

Na perspetiva de Canotilho, tutela jurisdicional efetiva significa assegurar não apenas a abertura formal dos tribunais, mas também a existência de meios processuais idóneos, decisões tempestivas e garantias eficazes contra o arbítrio do Estado. Assim, tutela é, em essência, Poder-Jurisdição ao alcance do indivíduo.

Em Cabo Verde, tal garantia ganha densidade constitucional através de uma plêiade de normativos, designadamente os artigos 12.º/2, 20.º, 22.º, 36.º, 245.º/e e 281.º da Constituição da República. Estes dispositivos consagram o acesso ao direito, o acesso aos tribunais, o controlo jurisdicional da Administração Pública e os mecanismos de fiscalização da constitucionalidade, configurando um sistema que, em teoria, assegura ao cidadão meios suficientes para reagir contra ilegalidades administrativas e violações normativas.

O Contencioso Administrativo de 1983: A Lei que o Tempo Esqueceu

Todavia, a realização plena da tutela jurisdicional efetiva esbarra numa ironia histórica e jurídica: o contencioso administrativo cabo-verdiano ainda é regulado pela Lei n.º 14-A/1983, diploma aprovado num momento em que o país vivia sob um sistema político distinto do vigente. Após a independência e ao longo de todo o período democrático, nenhum líderes/legislador se mostrou verdadeiramente empenhado em reformar esta lei obsoleta, revelando o que se pode denominar, com propriedade, uma hipocrisia política estrutural, o discurso da modernização do Estado nunca alcançou a necessária atualização da jurisdição administrativa.

Não obstante a ultrapassagem histórica da lei, o intérprete atual, munido dos princípios constitucionais pós-2010, pode e deve proceder a uma interpretação atualista e conforme à Constituição. A força normativa da Constituição, particularmente no domínio dos direitos, liberdades e garantias, impõe a aplicação imediata dos princípios constitucionais. O artigo constitucional sob o epígrafe “Força Jurídica” estabelece que tais normas “vinculam todas as entidades públicas e privadas e são diretamente aplicáveis”. Assim, mesmo sem um novo código de processo administrativo, o cidadão não fica desamparado, pois a Constituição funciona como fonte direta de proteção jurídica.

Garantias dos Particulares Contra a Administração

O sistema constitucional cabo-verdiano consagra diversas garantias fundamentais dos particulares, entre as quais se destacam:

  • Direito de ação e recurso base da tutela jurisdicional (art. 20.º).
  • Recurso contencioso de anulação – previsto no art. 245.º/e, verdadeiro instrumento de controlo da legalidade administrativa.
  • Fiscalização concreta da constitucionalidade permitindo ao cidadão atacar normas inconstitucionais aplicadas no seu caso.
  • Direito à informação jurídica e patrocínio judiciário/oficioso consagrados nos artigos 22.º e 212.º.

A consolidação destas garantias é reforçada por estruturas como as Casas de Direito, que asseguram consultas jurídicas gratuitas, e pela Ordem dos Advogados de Cabo Verde, que garante defesa e patrocínio oficioso a quem deles carece. Trata-se de mecanismos essenciais para materializar o princípio da igualdade de armas e assegurar que a insuficiência económica não constitua obstáculo ao acesso aos tribunais.

O Paradoxo Legislativo: Omissões e a Criação do Código do Procedimento Administrativo

Apesar da clara obsolescência do regime do contencioso administrativo, o legislador aprovou mais recentemente um Código do Procedimento Administrativo, demonstrando a ironia de modernizar o procedimento administrativo sem modernizar o processo contencioso, que constitui o verdadeiro instrumento de controlo da Administração. Verifica-se, portanto, uma omissão legislativa parcial, no sentido defendido por autores como Vital Moreira, segundo os quais a omissão existe quando faltam medidas legislativas necessárias ou estas são inadequadas.

Ainda que a Constituição cabo-verdiana não preveja expressamente a figura da inconstitucionalidade por omissão, diferentemente de Portugal ou Brasil, a doutrina admite que, por via interpretativa, se possa contornar a lacuna, mediante aplicação reforçada dos princípios constitucionais e da fiscalização concreta da constitucionalidade.

Modelos Alternativos de Organização do Contencioso Administrativo e a sua Aplicabilidade no Direito Cabo-verdiano

Os modelos objetivo e subjetivo de contencioso administrativo revelam distintas formas de conceber a justiça administrativa, mas ambos fornecem elementos úteis para uma evolução coerente do sistema cabo-verdiano. Num modelo objetivo, o processo centra-se no interesse público e no controlo da legalidade, conferindo ao juiz poderes essencialmente cassatórios. Já o modelo subjetivo privilegia a tutela dos direitos individuais, exigindo juízes independentes, dotados de poderes de plena jurisdição e aptos a apreciar a relação jurídica entre Administração e particular.

No contexto cabo-verdiano, onde a Constituição consagra um modelo predominantemente subjetivo, impõe-se uma leitura integradora destes modelos, reforçando o papel do juiz como garante da efetividade dos direitos e como guardião da Constituição. O juiz não se limita a anular atos: deve assegurar que a Administração respeita posições jurídicas dos cidadãos, impondo a execução das sentenças e desaplicando normas inconstitucionais. Assim, a aplicabilidade prática destes modelos no Direito cabo-verdiano depende da capacidade do julgador de harmonizar legalidade e proteção subjetiva, tornando efetiva a tutela jurisdicional num sistema ainda condicionado por legislação desfasada.

O Sistema de Recursos e a Fiscalização da Constitucionalidade

No quadro do controlo jurisdicional, importa destacar os mecanismos processuais aplicáveis quando tribunais de comarca aplicam normas alegadamente inconstitucionais:

  1. Tribunais judiciais têm a prerrogativa de se pronunciar sobre a aplicação do direito ordinário.
  2. O Tribunal Constitucional intervém apenas quando a questão foi previamente suscitada e decidida pelas instâncias ordinárias, esgotando-se todos os recursos.
  3. Decisões das comarcas que apliquem normas tidas como inconstitucionais são impugnáveis para os tribunais judiciais superiores, no âmbito de recurso ordinário.
  4. Apenas depois de pronunciamento do Supremo Tribunal, e havendo persistência na aplicação da norma inconstitucional, pode o processo ascender ao Tribunal Constitucional, nos termos do art. 281.º, n.º 1/a, art. 282.º, n.º 2 da Constituição e art. 77.º/2 da LTC.

Este sistema assegura que o cidadão tenha meios eficazes de controlo tanto da Administração Pública como das normas legais que lhe sejam aplicadas.

5. A Tutela Jurisdicional Efetiva Como Síntese do Sistema

Os textos apresentados sintetizam a essência da tutela jurisdicional: o direito de exercer controlo judicial sobre atos e normas, de iniciar processos contra qualquer entidade e de conhecer e utilizar meios jurídicos adequados. A informação jurídica (art. 22.º) desempenha função preventiva, enquanto a assistência judiciária garante que a pobreza não seja causa de denegação de justiça.

Assim, mesmo com lacunas legislativas e leis obsoletas, o sistema constitucional cabo-verdiano permite, mediante interpretação conforme, assegurar uma tutela jurisdicional efetiva, garantindo que nenhum direito fique sem juiz e que a Administração Pública permaneça vinculada à legalidade e ao escrutínio democrático.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1251 de 19 de Novembro de 2025.

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Autoria:José Mendonça Monteiro,24 nov 2025 7:46

Editado porAndre Amaral  em  24 nov 2025 7:46

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