Em ano marcado pela pandemia, que causou forte impacto nas pescas e outros sectores marítimos, as boas notícias são os vários projectos e iniciativas que avançam, por exemplo a nível da fiscalização, e ver que o coronavírus não prejudicou o interesse por Cabo Verde, enquanto porto seguro de investimentos e centro marítimo de importância emergente no Atlântico médio.
Arranca na segunda-feira a III edição da CVOW, a primeira a que preside enquanto ministro da economia marítima, mas que tinha acompanhado como secretário de estado. Depois de duas edições, o que o evento trouxe para Cabo Verde? A sociedade cabo-verdiana é hoje mais zelosa do seu mar?
Penso que CVOW é uma das principais responsáveis por virar a sociedade cabo-verdiana para os oceanos e para a sua conservação. Hoje temos a nível nacional várias ONGs, e mesmo a sociedade civil, em várias ilhas, a fazer limpezas de praias, a chamar a atenção, a alertar [para eventuais problemas], a apanhar lixo no fundo do mar, e isto terá muito a ver com o trabalho pedagógico que a Ocean Week também tem feito, junto às escolas e não só. Este é um ganho que o país conseguiu e este evento, com certeza, contribuiu para isso. E a CVOW fez também com que Cabo Verde estivesse nos palcos internacionais. Em edições passadas tivemos cá o representante máximo das Nações Unidas a nível dos Oceanos [Peter Thomson], tivemos a representação de Seychelles, que é considerado um país pioneiro da economia azul,.. A CVOW permitiu-nos criar redes de cooperação das nossas universidades com universidades no Canadá, na Irlanda, China, Japão, o que não seria possível sem o evento e sem conhecerem Cabo Verde. A nível da investigação, estamos agora com um projecto com o Canadá que quer instalar um polo de formação na área tecnológica para os oceanos, no centro oceanográfico [do Mindelo]. Ajudou a divulgar Cabo Verde aos investidores, que ficaram a conhecer as ilhas e o potencial dos nossos oceanos através também da CVOW. Portanto, a análise é muito positiva.
E na edição deste ano, o que destacaria?
As duas edições anteriores foram eventos internacionais. Esta III edição acontece dentro desta pandemia e, portanto, vai ser voltada para os assuntos internos de Cabo Verde, para os desafios e problemáticas do sector no país. Até porque precisamos melhorar rapidamente, para que implementação da zona económica especial possa ser um sucesso. Assim, os oradores, na sua maioria, vão ser nacionais. Vamos ter uma mesa redonda onde vamos discutir o sector marítimo, a realidade do nosso sector marítimo e os caminhos que deveremos seguir. Veremos as dificuldades que temos neste momento, e como ultrapassá-las, iremos discutir as pescas, as espécies que pescamos, que pesca é que temos. Vamos, não só apresentar, mas também mostrar os caminhos que a formação irá ter através do Campus do Mar. Como se sabe, já nomeámos os corpos gerentes da Escola do Mar e do Instituto do Mar, para além da reitoria da Universidade Técnica do Atlântico (UTA) [as 3 estruturas que compõem o Campus do Mar]. Entretanto, desde Outubro que estamos a discutir, com o sector das pescas o Plano Nacional das Pescas para 2021, que iremos aprovar na CVOW, para além de fixar os objectivos até 2024. Portanto, vamos apresentar diplomas e discutir com o sector, antes de os levar à aprovação. Temos várias apresentações de projectos e investimentos, de ONGs e investidores nacionais e externos, que estão em andamento e em fase de implementação. E vários side events, das ONGs e da sociedade civil, onde irão apresentar o trabalho que têm feito para conhecimento da população toda e também para vermos como podemos apoiar.
Mas qual a óptica desta edição? Será um evento mais no âmbito da economia marítima ou de economia azul, como tem sido?
A economia azul é sempre o chapéu da Ocean Week. O objectivo é sensibilizar: o nosso oceano tem de ser cuidado por cada um de nós, pelas ONGs, pelo governo, por todos. Então essa sensibilização é muito importante. Portanto, a óptica é sempre a preservação dos oceanos, é a economia azul, a economia sustentável, se assim podemos dizer.
A pesca é um dos temas fortes desta CVOW. E aqui um dos grandes desafios do país é a fiscalização da enorme zona marítima. Na anterior Ocean Week destacou-se que Cabo Verde estava preparado para fazer parte da Transparência nas Pescas. Em que pé estamos e, na prática, como está a funcionar a fiscalização?
A Iniciativa Transparência na Pesca (Fisheries Transparency Initiative - FiTI) é uma organização internacional da qual já somos membros e, como tal, devemos fazer a apresentação dos objectivos da FitI para os próximos anos. E estamos a trabalhar com o apoio da FitI na evolução do nosso sector das pescas para que as pessoas possam ter acesso a todos os dados dos recursos haliêuticos das nossas águas. A nível da fiscalização, com a União Europeia e com parceiros, temos feito a fiscalização. Já conseguimos ter imagens de satélite para ver e analisar as embarcações de pesca nas nossas águas. Através de parcerias com outras marinhas, temos feito a fiscalização, e quando passam nas nossas águas, com os nossos fiscais. Entretanto, já deveríamos ter observadores de bordo, mas infelizmente com a pandemia a formação não foi para frente. Mas iremos ter em 2021, a bordo das embarcações que pescam nas nossas águas, observadores nacionais. Portanto, houve um desenvolvimento muito grande na fiscalização, para além da sensibilização dos nossos cidadãos que hoje já fazem denúncias, já chamam para a linha verde [criada este ano]. Temos agido nesse sentido com mais fiscais, e é de referir também a nova legislação que permite que fotografias e vídeos sejam considerados como prova, o que facilita a nossa acção de fiscalização. Continua a ser uma tarefa difícil, de facto, mas com o apoio dos parceiros e dos países com que temos cooperação temos de ano para ano melhorado a fiscalização. Neste momento estamos, na Comissão Sub-regional das Pescas, da qual fazem parte, além de Cabo Verde, o Senegal, a Mauritânia, Gâmbia, Guiné-Bissau, Serra Leoa e Guiné, a trabalhar num acordo de fiscalização. Tivemos uma reunião agora em Outubro, teremos outra em Dezembro para fechar esse convénio que tem financiamento e apoio da União Europeia para podermos fazer a fiscalização das nossas águas, a nível das pescas.
Falava há pouco da Lei das pescas, aprovada este ano, que contempla medidas para alguma dinamização dos sectores em volta do mar, nomeadamente obrigando as embarcações a descarregar nos portos nacionais. Depois veio a pandemia. Como afectou essas iniciativas?
Podemos dizer que a pandemia afectou significativamente a pesca a nível industrial. Temos muito menos embarcações a pescar. Mas a lei está em vigor e temos estado a descarregar os barcos aqui. Empresas do sector, querendo, conseguem fazer a aquisição do produto para a nossa transformação [de pescado]. Temos essa indústria principalmente em São Vicente mas também uma fábrica, com mais de 80 anos, em São Nicolau [a SUCLA], que tinha o problema de escassez de matéria prima, e hoje já tem acesso à mesma. A pandemia realmente não ajudou, mas a nível das pescas, as descargas continuaram sempre a ser feitas, cumprindo as regras sanitárias.
Ainda sobre a indústria da transformação de pescado. Com a pandemia a destacar a evidente necessidade de diversificação da economia, esta pode ser uma oportunidade? O que está a ser feito para atrair empresários para esta área?
Acabamos de aprovar a zona económica especial que tem incidido nesse aspecto e tem um baixo índice de fiscalidade exactamente para atrair esse sector. Temos um grande projecto de aquacultura de uma empresa da Noruega, a Nortuna, que logo que começar a sua operação vai empregar pelo menos 400 pessoas e exportar cerca de 20 toneladas de atum fresco via aérea por semana. É o investimento que está mais avançado. Estamos a atrair investidores, temos manifestações de interesse de investidores da Suécia, que já marcaram duas vezes para vir a Cabo Verde, mas, devido à pandemia e encerramento das fronteiras, ainda não vieram. É um investimento de 15 milhões de euros no sector da transformação de pescado. Temos empresas americanas que até já compraram embarcações para que possam fazer pesca a nível industrial e transformar o pescado aqui, para poder exportar para os Estados Unidos, para a União Europeia e também para a região. Temos agora o acordo do livre comércio da nossa região. Portanto, penso que estamos no bom caminho, há manifestação de interesse, e, felizmente, não posso dizer que a COVID prejudicou o interesse por Cabo Verde. Temos tido muito mais manifestações do que anteriormente. E também a nível de marinas. Há uma empresa belga que quer investir numa marina para a corrida de oceanos [Ocean Race 2021], que dá a volta ao mundo e que devido à pandemia foi adiada para 2022.
Fala de IDE, mas a nível dos nacionais? Que investimentos e apoios têm sido feitos para, por exemplo, melhorar as condições da pesca?
Temos apoiado. Recentemente foi criada uma cooperativa dos armadores da pesca industrial e estamos a apoiar no processo de compra de um navio industrial, para eles também poderem ter capacidade para concorrer aos recursos que temos na nossa ZEE, lá onde ainda não temos embarcações com capacidades para chegar. Em São Nicolau, o governo, Câmara Municipal de Tarrafal e uma empresa privada, temos investimentos de cerca de 100 mil contos no cais de pesca. A Enapor tem em andamento as obras do porto de pesca de Ponta do Sol, Santo Antão. Temos o porto de pesca da zona norte de Santiago, o porto de pesca para a zona dos Mosteiros, e o projecto do porto do Maio que já contempla também uma área para as pescas...
E ajuda em contexto da pandemia?
A nível da pandemia temos, entre outras coisas, trabalhado em prol das associações de pescadores e de vendedores de peixe tentando minimizar o impacto nesse sentido. Vamos, por exemplo, manter a isenção de pagamento das licenças. A licença tem de ser tirada não terão que pagar.
Voltando aos portos. Como está o projecto do porto de águas profundas?
Até meados de Dezembro serão nomeados os orgãos sociais da Zona Económica Especial [Marítima em São Vicente]. O planeamento, que foi feito com o apoio do governo chinês identificou o lugar para termos uma nova zona portuária em São Vicente, mas também prevê São Nicolau. Esses projectos estão a ser feitos em parceria público-privada e assim que os orgãos sociais forem empossados, haverá desenvolvimentos. Contamos ter mais novidades em 2021.
Entretanto, com a situação pandémica, privatizações e concessões ficaram suspensas. Qual o ponto de situação do dossier de subconcessão dos portos?
Tivemos uma consultoria da Holanda, através do Banco Mundial que estava a finalizar um modelo de subconcessão e tinha contemplado um trabalho até ao fim, até à privatização. A pandemia veio impedir a oportunidade de os interessados visitarem os nossos portos, mas também, agora, está-se a analisar qual vai ser o melhor modelo, se irá ou não haver um novo modelo de negócio dos portos, pós-pandemia. O impacto na economia mundial é enorme e, por isso, suspendemos processos, para depois retomar.
Processo Cabnave também suspenso...
Sim. Temos uma consultoria do Banco Mundial para nos ajudar a recomeçar a Cabnave e ver o que é necessário para tornar interessante o sector, mas, como disse, os pressupostos alteraram-se todos e ficamos em standby.
Um dos projectos que continua a avançar apesar da quebra no turismo, é o terminal de cruzeiros do Porto Grande (Mindelo). Já cortaram 25% no investimento, mas está previsto arrancar em Dezembro, certo?
Aqui também estamos com um atraso. As 5 empresas que passaram a primeira fase já estão prontas para vir visitar [o local onde será construído] o porto. Infelizmente só vêm na próxima semana porque o encerramento das fronteiras e a pandemia não permitiram que isto fosse feito durante o mês de Setembro e Outubro. Não só nós tínhamos as fronteiras fechadas, mas também vários outros países e há empresas da França, da Alemanha... Agora, está prevista a visita em Novembro e a nossa ideia é que apresentem até ao final deste mês o projecto e a proposta financeira para se escolher a melhor proposta e as obras arrancarem em Janeiro. Portanto, há aqui uma décalage de cerca de 30 dias.
Tendo em conta como o turismo está e o que se perspectiva para os próximos tempos, continua a ser um investimento que faz sentido?
Nós acreditamos que sim e os financiadores também. O concurso tem de seguir os seus trâmites. Mas basta lembrar que este é um projecto cuja construção são 2,5 anos ou quase 3 anos. A perspectiva é começar em 2021 para estar terminada em 2023, 2024. Pensamos que nessa altura já haverá a retoma desse sector, ou alguma retoma. Prevê-se ainda que o turismo de cruzeiro seja de curta duração e com retorno mais expresso. Cabo Verde tendo um terminal de cruzeiros pode receber, as pessoas embarcarem aqui para fazerem cruzeiros de curta duração e para desembarcar também. Isto irá permitir ao turismo de cruzeiro, a nível internacional, ter mais um ponto de paragem, que não existe na nossa região. O último ponto que existe é nas Canárias, e depois é o outro lado do oceano. Nós iremos complementar, o que também vai de acordo com o nosso projecto e o nosso programa de governo que é transformar Cabo Verde numa plataforma logística do Atlântico Médio.
Outra aposta, que também tem a ver com a criação dessa plataforma, e de que falou aqui, é a formação. O que se pretende com a criação do Campus do Mar e as estruturas integrantes? Mão de obra e cérebros para exportação? Porque o mercado interno é relativamente reduzido...
Claro. Nunca se poderia criar o Campus do Mar só para o mercado interno. Queremos criar competências e ter capacidade interna, mas também é para exportação. O sector marítimo, antes da pandemia, era dos sectores que mais crescia a nível de empregos e da procura. Portanto, é uma oportunidade, e Cabo Verde tem as condições ideais para ocupar um lugar importante nessa área e poder também exportar. Já o fazemos, mas precisamos incentivar. Mas o campus do mar também tem uma valência interna. Para nós sermos um centro logístico do Atlântico Médio, no sector marítimo, temos de ter pessoas preparadas para este tipo de actividade e para todo o sector, que é vasto. Então a formação nesta área é muito importante, A outra competência, que é muito importante nós termos, é conhecer os nossos Oceanos, conhecer os recursos que temos, estudá-los e temos de ter também investigadores a este nível: biólogos, cientistas ... e teremos de formar. A ideia do Campus do Mar – da UTA, da Escola do Mar, do Instituto do mar – é ser uma referência a nível regional e mundial.
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CVOW - 2020
Devido à pandemia, a Cabo Verde Ocean Week será essencialmente realizada nas plataformas digitais - via Zoom, Facebook e Youtube.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 989 de 11 de Novembro de 2020.