Sabemos que o Natal é essencialmente uma data simbólica. Para si, o que simboliza o Natal?
No Natal celebramos o nascimento de Jesus Cristo, que é um Deus que se faz um de nós. Recordo um teólogo que diz que um Deus assim, que prefere nascer num curral de animal e morrer numa cruz como um criminoso, não pode ser uma invenção humana. Então Natal é isso mesmo. Este mistério que nós humanos não compreendemos, de um Deus que nos ama incondicionalmente e que toma a forma humana para estar connosco, para habitar no meio de nós.
E quais os valores que devemos ter presentes?
Posso contar uma experiência que tive na minha infância. O meu pai e um vizinho não se entendiam bem. Mas recordo que, um dia antes do Natal, os dois fizeram as pazes, e deram um abraço tão forte, tão sincero que aquilo me marcou pela vida fora. E lembro-me que juntávamos outras famílias que tinham menos condições económicas, com quem não tínhamos nenhuma ligação de sangue, para celebrar o Natal. Então, Natal é ternura, é paz, é união. Fui bebendo esses valores da minha própria família.
O modelo de família cristã, inclusive representado no presépio, é um modelo biológico. Falta inovar no Natal, o conceito de família, até tendo em conta que em Cabo Verde a maior parte é monoparental?
O cristianismo veicula sempre, na família, o pai e a mãe. A referência do pai é extremamente importante e na Sagrada Escritura vemos que mesmo Jesus Cristo tem pai. É um pai adoptivo, mas sempre importante. Nós frisamos a importância do pai e a mãe na família, e o cristianismo não prescinde disso. Agora, tudo o que sucede na sociedade, a escola sente, porque desemboca tudo aqui e é certo que a família cabo-verdiana continua a ser monoparental. Não diria que é uma tradição, mas nem a Igreja ainda conseguiu que se tenha presente o sacramento do matrimónio, se bem que temos vindo a constatar melhorias neste aspecto. Mas ainda verificamos muitos pais separados, e a mãe é que tem de assumir toda a responsabilidade dos filhos. Temos tido experiências, no nosso ambiente educativo, dolorosas para os filhos quando os pais se separam e vemos muitas consequências daí derivadas. Por isso é que temos o apoio, temos as psicólogas para acompanhar não só a criança, mas a própria família.
A paterenidade continua a ser irresponsável, por exemplo, no pagamento de pensões, ou a nível afectivo?
Hoje em dia há outras instâncias a que as mães podem recorrer se a pensão não for paga. Digo isso porque aqui na escola, na parte administrativa, quando algum pai ou mãe tem alguma dívida, reportamos e normalmente assumem. Assim, neste sentido, a meu ver há uma melhoria considerável da responsabilidade paterna. A nível afectivo há muitas falhas. Muitas vezes os próprios pais não sabem resolver os próprios problemas pessoais e acabam por dirigi-los para os filhos. Então, os filhos ficam muitas vezes confusos, com feridas profundas, e crescem sem uma referência da família. Temos tido vários casos em que os pais estão separados e os filhos é que acabam por pagar.
Em termos educativos, além da família e da escola, temos os colegas, as redes sociais, enfim, um conjunto de outros elementos que fazem também a educação da criança. Que avaliação faz desses outros elementos actualmente?
Primeiramente, eu diria que há que ter uma orientação, o que não há. Porque digo isso? Porque uma criança, de uns 12 anos, que passa todo o tempo nas redes sociais – agora é o tik tok - e que vê tudo e mais alguma coisa, obviamente que ainda não tem consciência para separar as coisas. Então há que ter uma orientação. O que se nota, principalmente este ano, depois de um tempo de pandemia e mais tempo nas redes sociais, é uma grande poluição mental. Digo poluição porque ingerem tudo, não conseguem separar. Isto demonstra-se nas próprias atitudes de violência, nos vocabulários que usam, etc. Então, os pais têm um papel importantíssimo que é orientar, seguir e mostrar o que devem ver e o que não devem ver. Não se pode colocar uma criança de 12 anos com um telemóvel ou um tablet com internet [na mão] e não a orientar. Infelizmente, na maioria dos casos não há orientação. Obviamente que as redes sociais têm uma mais valia, e vemos também isso nos nossos jovens: têm muito mais informações. Mas [as redes] não têm formação, mesmo a nível de valores. Nós sabemos que nem tudo o que recebemos nas redes sociais transmite um valor para os nossos alunos. Então, é isso que falta, uma certa orientação por parte dos pais, e a escola está consciente também dessa falta. Vamos procurando orientá-los, chamá-los à atenção para ver se conseguimos, juntos, colmatar estas situações.
Entretanto, na sociedade temos visto várias situações, em maior ou menor grau, de violência sexual. Como vê este fenómeno?
Obviamente que não há nenhuma situação que justifique os abusos sexuais. Há que preparar as pessoas para uma postura social de prevenção. Mas quando falamos da questão das redes sociais não é só as crianças. Também nós adultos, estamos constantemente ligados. Há, em Cabo Verde, uma grande evolução tecnológica, a nível de acesso à internet. Mas temos de a saber usar, também nós, porque todos somos influenciados. E creio que há hoje uma hipersensualidade. Mesmo na questão das mulheres, estamos muito expostas. Temos de nos valorizar a nós próprias, para que o outro também nos valorize. Muitas vezes, na publicidade, a mulher aparece semi-nua e creio que isso leva muitas vezes a esta ideia do sexo oposto não respeitar a mulher.
Há uma objectificação. Mas, a nível infantil/juvenil haverá a persistência de uma cultura do ‘quero e tenho’, ou das ‘catorzinhas’?
Em geral, no mundo de hoje, não estamos preparados para a espera. Por exemplo, temos aqui pré-adolescentes, que estão a queimar etapas. Já têm uma postura de 15, 16 anos. A sociedade está a evoluir consideravelmente neste sentido de queimar etapas e também os adultos, com estas influências, acabam por não ter capacidade de esperar. Se eu agora quero uma coisa, tenho de a adquirir. Então, obviamente que não estamos a educar as nossas crianças no sentido de esperar. E estamos a ver isso nos nossos adolescentes. Agora, o namoro não começa com uns beijinhos e apertar as mãos, começa logo pela questão da vida sexual activa. Temos de educar-nos e educar as nossas crianças para a questão da espera e do respeito pelo outro.
Faltará nos curricula uma educação sexual assertiva?
Esta questão é um pouco ambígua, porque há quem defenda que quem deve ou poderá fazer isso são os próprios pais em casa. E há quem diga que se houver na escola há que ter uma pessoa preparada para isso, mas tendo uma perspectiva, diria eu, cristã, e também uma outra perspectiva, para que haja um equilíbrio. A educação sexual não se restringe somente à actividade sexual. Mesmo assim, há que sentar e estudar bem como transmitir, sem perder este ponto de vista que é a auto-valorização da pessoa, o respeito, etc, porque é necessário.
Uma outra questão muito presente na nossa sociedade é a violência juvenil. Um aspecto que a irmã realça na sua tese de mestrado é que os jovens precisam de ser escutados. A sociedade está a escutar?
Eu faço parte de uma congregação religiosa e, no início do ano lectivo, recebemos uma convocatória para participar num pacto educativo global, em que o próprio Papa Francisco convocou todas as escolas católicas. Foi via zoom. Éramos 400 e tal participantes a nível mundial, e neste seminário frisaram muito a questão de ‘Ouvir’, principalmente os jovens. Ouvir e também trazer as famílias à escola, porque, com esta pandemia, nota-se que muitos jovens, e muitos de nós, tivemos de enfrentar o isolamento e os efeitos que tem gerado esta pandemia. Então é importante ouvir. Estamos a tentar, aqui na escola, ter presente esta dinâmica do Papa Francisco. Inclusive, este ano, além do nosso gabinete de entendimento psicológico, temos a parte espiritual. Temos um frei, capuchinho, que vem todas as quartas-feiras dar assistência não só aos alunos, como também às famílias, porque vimos que com esta pandemia as famílias estão a ser muito afectadas, em vários sentidos. Sabemos que o índice de suicídio aumentou, a separação e divórcios também aumentaram, então há que ouvir. É isso que temos tentado fazer, sabemos que, da dinâmica da escola, é um pouco complexo, mas estamos a fazer todo o esforço para que isso efectivamente se cumpra.
Há professores que dizem que os alunos têm expectativas irrealistas, querem ser youtubers, etc, e ganhar muito dinheiro “fácil”. Aqui também sentem isso?
Como disse, as nossas crianças estão a queimar etapas. Temos alunos do 5º ano com essa ideia, de que podem ser ricos sem fazer o mínimo de esforço. Inclusive há os que já são youtubers. Tivemos de alertar os pais, porque são muito pequenos para ter esta ideia e para navegarem desta forma nas redes sociais. Portanto, sim, nota-se já no 5º ano esta ideia dos alunos.
Ainda a violência. Temos constantes picos de violência juvenil, na Praia. O que acha que está a falhar na promoção da paz?
A nível da educação, há que ter uma disciplina que trabalhe isso. Já existiu, mas neste momento não. As escolas católicas têm a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica precisamente para ver se transmitimos os valores, mas isso tem de ser em concertação com a própria família. Só a escola não funciona. E creio que o próprio ministério terá que repensar o seu currículo para introduzir estas disciplinas que ensinam aos alunos a primar pelo valor da paz e não pela violência.
E fora da escola, que outras maneiras de promoção da paz?
Temos a igreja, por exemplo. Falo, concretamente, da experiência da Igreja Católica, que promove muitas actividades para os jovens, para evitar que eles enveredem pela violência.
Mas não está a haver um afastamento dos jovens em relação à Igreja?
Em Cabo Verde, a Igreja tem conseguido [evitar isso] com várias dinâmicas, porque o clero também é muito jovem. Então consegue cativar jovens e está muito estruturado. Mesmo a nível das organizações internas temos secretariado da Juventude em que apoiamos a juventude. Infelizmente, com a pandemia tivemos de fazer restrições. Mas mesmo o clero já mais maduro, tem feito um excelente trabalho neste sentido. Temos por exemplo, na Achada Santo António, o padre Constantina que tem feito um excelente trabalho. Creio que a Igreja tem um papel fundamental neste sentido, e tem feito.
Voltando ao Natal, Cristo vem redimir a humanidade, e Maria também vem redimir a figura de Eva. Neste momento qual o papel que a mulher na Igreja católica deve ter?
A Igreja tem dado um salto significativo. Não é só a Igreja. Ao longo da História, a mulher não tinha tanto peso nem, desculpe a expressão, valor na sociedade. Nem no contexto bíblico, porque ao lermos a Sagrada Escritura temos de contextualizar-nos na época em que foi escrita. Entretanto, a mulher foi ganhando peso, mesmo na Igreja. Dou um exemplo concreto: recentemente iniciamos a preparação, para o sínodo dos bispos, em que algumas mulheres foram destacadas também para estarem presentes. Normalmente as mulheres estão nos bastidores, mas neste momento, o nosso Papa Francisco, que é muito sensível a estas questões, fez questão de colocar mulheres à frente, inclusive, de cargos que até agora eram só para homens. Assim, com a abertura que temos do Papa Francisco, e também dos outros Papas que foram fazendo o trabalho, vamos paulatinamente tendo um lugar de destaque na Igreja.
Não necessariamente ordenadas sacerdotisas, mas com mais voz pública.
Não como sacerdotes, mas com mais peso e voz, porque também se reconhece o trabalho que a mulher tem desempenhado na Igreja. Inclusive, a maior percentagem das pessoas que frequentam a Igreja são mulheres.
Um tema que tem merecido preocupação de todos nós e também da Igreja Católica é a questão do ambiente. Estamos no Natal que é uma época consumista. Que mensagem teria sobre essa questão?
Já estamos a sentir os efeitos na pele das alterações climáticas. Temos, por exemplo, um Santo que é o padroeiro da ecologia, São Francisco de Assis, que desde sempre valorizou e respeitou o ambiente, e o próprio Papa Francisco, lançou uma encíclica “Laudato Si”, que fala precisamente da conservação e do cuidado da casa comum. Nesta época natalícia, temos o outro lado, do consumismo e, neste sentido, é apelar a que tenhamos a consciência do verdadeiro sentido do Natal, que a partilha não é só o dar coisas, mas também é o dar o meu tempo, estar com o outro, ouvir, isto é o verdadeiro espírito do Natal. Isso para que também possamos cuidar da nossa casa comum.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1047 de 22 de Dezembro de 2021.