Em conversa com o Expresso das Ilhas, a antiga professora e autora de vários artigos sobre a problemática linguística em Cabo Verde analisa os vários discursos proferidos por experts, académicos e políticos durante estes dias para concluir que houve uma certa babelização do debate.“Enquanto cidadã, a minha percepção é que sistematicamente é-nos apresentada uma opção binaria: a favor ou contra a (co-)oficialização da língua cabo-verdiana, o alfabeto cabo-verdiano, a língua cabo-verdiana como língua de ensino, etc”. Na sua opinião, um tal debate é redutor e impede-nos de levar em conta toda a complexidade da realidade linguística. “O próprio vocabulário, utilizado por entidades políticas ou académicas, mas também pelo público, é um indicador: luta ou combate”, aponta.
Aquando das celebrações de mais um Dia Internacional da Língua Materna, foram feitas várias declarações. Destacaria alguma delas em particular?
Autorizo-me um trocadilho para lhe responder que o que mais reteve a minha atenção foi uma certa babelização do debate. Enquanto cidadã, a minha percepção é que, sistematicamente, é-nos apresentada uma opção binaria: a favor ou contra a (co-)oficialização da língua cabo-verdiana, o alfabeto cabo-verdiano, a língua cabo-verdiana como língua de ensino, etc. Um tal debate é redutor e impede-nos de levar em conta toda a complexidade da realidade linguística. Aliás, parece que esta problemática serve, muitas vezes, de alibi para a defesa de modelos culturais não necessariamente partilhados pelo conjunto da população. O próprio vocabulário, utilizado por entidades políticas ou académicas, mas também pelo público, é um indicador: “luta” ou “combate”; referências a “raças” diferentes, que corresponderiam às línguas cabo-verdiana e portuguesa e, até, uma surpreendente e anacrónica ideia de “consolidação da independência de Cabo Verde”. Acabo por perguntar, afinal, o que é que esta em discussão, realmente?
Mas pensa que a oficialização do crioulo irá resolver todos os problemas ligados à língua materna?
Eu não falaria de problemas ligados à língua materna porque esta goza de boa saúde e não tem problemas. Penso que haverá problemas ligados, sim, à (co-) oficialização da língua cabo-verdiana. Para que esta ocorra, é necessário que ela seja considerada e assumida como parte integrante de um projecto político mais vasto. Este, por sua vez, deve poder contar com uma expertise plural e multidisciplinar e com pontos de vista divergentes, que possam esclarecer o poder político para a tomadas de decisões. Isto é importante porque a política é um espaço onde se tomam decisões a serem partilhadas por todos e não pode ser transformada num espaço onde se aplica, diretamente, a ciência. Relativamente à língua materna, eu penso, ainda, na questão da escrita, ou melhor, no papel central que ela ocupa no nosso sistema político e cultural. A norma escrita é, não só o modo de comunicação privilegiado da administração pública, mas, também, é um dos fundamentos da república. Logo, passar de um Estado unilingue para um estado bilingue é uma transformação profunda, que diz respeito aos alicerces de todo o edifício. E o que, a meu ver, subjaz ao artigo 9° da Constituição da República: o processo tem que ser encaminhado de modo a que todos, o aparelho do Estado e os cidadãos partilhem o mesmo sistema linguístico, constituído este por duas línguas. O processo encontra-se, ainda, num estádio em que a LCV não dispõe de uma “ortografia estável”, o que não poderá deixar de ser feito.
Então, a oficialização pressupõe a padronização da língua cabo-verdiana. Esta poderá ser um factor de divisão?
Bem, eu não vou entrar em questões técnicas, dado que estas dispõem do seu espaço próprio. Mas vou considerar a situação em que cada um de nós fala e continuará a falar a sua variante própria e em que não é de todo viável que cada um escreva “como fala”. Um exemplo simples: qual é a forma correcta de escrever o nome dos numerais 2, 3 ou 24? Ora, não produzimos os mesmos sons quando pronunciamos tais palavras e se escrevermos como pronunciamos, o resultado será uma grande diversidade de formas. Pode-se imaginar que as crianças aprendam a escrever conforme a variante utilizada? Ou que a declaração de impostos seja escrita de formas diferentes, conforme a variante que o contribuinte utiliza?
Trata-se de uma fraqueza do alfabeto fonológico?
Não propriamente do alfabeto fonológico, mas uma fraqueza, creio, da forma como o processo tem decorrido. Faltam esclarecimentos e pedagogia. É indispensável saber o que se vai fazer e como se vai fazer; com que meios; quais os objectivos e que resultados se podem esperar. Penso que existe um desfasamento entre a retórica e as decisões políticas, o que acaba por confundir as pessoas. E o que me leva a questionar se o problema não tem que ver com a incapacidade das instituições em responder às demandas da sociedade e às exigências de uma sociedade mais harmoniosa.
O ministro da Cultura considera que a problemática das variantes do crioulo é uma falsa questão. Podia comentar?
A partir do momento em que a população tem dúvidas sobre o que está a ser feito e carece de esclarecimentos, parece-me que que se trata de uma verdadeira questão. Aliás, é o próprio Ministério da Cultura que publica um texto com a seguinte afirmação nu tem nove variantes pa nove ilhas pamodi sima nu ta papia na nôs ilha é si ki nu ta skrebi. Deve-se compreender que é a variante do Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas a utilizada na redacção? A pergunta que se seguira, provavelmente, será “Então, e a variante da minha ilha?” Temos, aqui, a demonstração de como se alimentam dúvidas e tensões no seio da população.
O Presidente da República numa entrevista a esta jornal, na semana passada, refere-se, repetidamente, às “nossas duas línguas nacionais”. Que sinais estará a emitir?
Interpreto a afirmação do Presidente da República como uma tomada de posição, tanto mais importante que ela não é condicente com a Constituição da República, a qual determina que É língua oficial o Português. Ora, a não-coincidência entre o que defende o Presidente da República e a Constituição da República, na melhor das hipóteses, causa perplexidade.Mas leio também um paradoxo, o qual se tem manifestado de forma cada vez mais visível: a partir do momento em que a Língua Cabo-verdiana é constitucionalizada, em 1999, é quando se ouvem as maiores reivindicações e denúncias de uma suposta “falta de dignificação” e da sua “inferiorização”. Quando ela não era sequer considerada juridicamente, ou seja, nos primeiros 25 anos da República, não se ouvia esse tipo de acusações.Talvez seja o sentido da declaração que o PR fez em Novembro, quando disse que estará “na linha da frente no combate para a língua materna” (cito de memória). Creio que os contornos desse “combate deveriam ser melhor definidos, pois é um desafio democrático, o de partilharmos os mesmos princípios e valores fundadores da Nação.Aqui, eu recordaria que, em 1985, por altura da mesa redonda “Identidade Cultural Cabo-verdiana”, o então ministro da Educação e Cultura, Corsino Tolentino, defendia a utilização do “instrumento (a língua portuguesa) que temos e que é tão nosso como o crioulo”. Por altura do 10° aniversario da independência, e quando ainda se podia esperar uma maior necessidade de afirmação cultural, a questão parecia resolvida, com o mesmo ministro a admitir “a existência de uma identidade cultural sem se fazer uso de uma língua exclusiva”.Que, hoje, voltemos a essas questões, levam-me a perguntar em que momento nos desviamos do caminho e se não se impõe uma “recaboverdianização dos espíritos”, como forma de superar essa tensão que se quer instalar.Quanto à ideia de “o crioulo ser a forma de expressarmos melhor os nossos afectos” defendida pelo PR, eu concluiria parafraseando a cantora Diva, pois cada um sabe como há-de dizer I love you, sem que tal determine o grau de cabo-verdianidade das pessoas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1056 de 23 de Fevereiro de 2022.