Casos de violência entre menores são motivos de preocupação em Cabo Verde

PorSheilla Ribeiro,12 mar 2023 10:09

Em apenas uma semana, o país registou dois casos mediáticos de violência entre menores. Na cidade da Praia uma criança de sete anos foi assassinada por um adolescente de 13 e, na Ilha Brava, um adolescente de 15 anos de idade, foi evacuado para a Praia após ter sido agredido por três adolescentes com idades compreendidas entre os 11 e os 13 anos. Os casos chamam a atenção para a saúde mental de crianças e adolescentes, mas também para a necessidade de mecanismos de punição em situações mais graves.

Na passada segunda-feira, 27, um adolescente de 13 anos matou a facada uma criança de sete no bairro da Jamaica, bairro periférico da cidade da Praia. Em seguida, o adolescente, com a arma do crime na mão, entregou-se à Polícia Judiciária que o colocou na viatura, para os guiar ao local onde se encontrava o corpo da criança, já sem vida.

“Eles não eram muito amigos, mas o meu filho frequentava a casa deles. Esse rapaz era sossegado, embora agressivo. Há cerca de três meses agrediu uma outra criança com uma garrafa de cerveja na cabeça e quase acertou os olhos. Ninguém foi à polícia e nada foi feito”, conta ao Expresso das Ilhas o pai do David, Adelino dos Santos.

Conforme relata, a família do adolescente sempre soube que ele era agressivo, mas faziam ”vista grossa”, o que resultou na morte do seu filho.

O filho, conta, regressou da escola, quando foi chamado pelo adolescente. Mas, ninguém estranhou e nem imaginava o desfecho da história.

“Amarrou-lhes as mãos, os pés e a boca e diferiu-lhe três facadas. Havia uma outra criança que conseguiu escapar por ser maior que o meu filho. Eu fiquei desesperado, cego e com sangue nos olhos. Se em Cabo Verde nunca a Justiça foi feita, no caso do meu filho há-de se fazer o que ele fez, foi de ‘barriga cheia’”, afirma.

Segundo Adelino dos Santos, David nunca insultou o agressor que considera ser um “assassino frio”.

“Assim que sair do centro Orlando Pantera, tem de ir para o Tribunal e ser condenado, se ele não for condenado então eu serei condenado. Não foi um acidente, foi algo premeditado e vou seguir este caso até o fim para que a justiça pelo meu filho seja feita”, assevera.

Pai pede medidas para atenuar casos de agressão entre adolescentes

Outro caso de agressão, com desfecho não tão grave, mas igualmente sério. Na passada quarta-feira, dois dias após a morte de David, um adolescente de 15 anos foi agredido por três adolescentes a 20 metros do complexo educativo de Nova Sintra, Brava.

Ao Expresso das Ilhas, o pai do adolescente, Jorge Freitas, adiantou que o jovem já tinha sido agredido, por outro colega, três vezes e que nada foi feito nem pela escola, nem pelas autoridades judiciais.

“Nas três primeiras vezes foi um único agressor e numa dessas três vezes levei o agressor ao Tribunal pensando que a justiça seria feita. Mas não foi feita. Pensava que a Justiça fosse fazer com que os pais sentissem o peso da responsabilidade porque os pais estão irresponsáveis, apoiam os seus filhos com desvio de comportamento”, critica.

Jorge Freitas narra que numa dessas três agressões, o filho foi evacuado de emergência para Fogo porque a veia principal do braço esquerdo ficou prejudicada e que hoje o menor não tem força nesse membro.

“Quando fomos ao Tribunal mostrei à Procuradora fotos do braço do meu filho e mesmo assim a Justiça decretou que o agressor pagasse quatro mil escudos de indemnização ao meu filho. Essa é a Justiça? Quatro mil escudos?”, questiona.

“Por este motivo, vai continuar a haver casos de menores agressores porque nenhuma medida é tomada. Porque as medidas das escolas não são duras o suficiente para resolver a agressão entre menores”, acrescenta.

Para este pai, cujo filho é vítima de bullying na escola, o Ministério da Educação tem de arranjar outra forma de minimizar os casos de agressão nas escolas.

“Nessa, que foi a quarta agressão, o acto foi consumado por outros três menores, todos mais novos do que o meu filho, com idades compreendidas entre 11 e 13 anos de idade e estudam o 6º ano. O meu filho chegou a participar num programa de escola que fala sobre bullying onde ele mesmo foi pedir aos colegas que parassem de o perseguir”, aponta.

Jorge Freitas acredita que o castigo previsto no estatuto do aluno não surte efeito nos alunos nem nos pais e, que por isso, continuam com essas práticas. Alerta que, se medidas adequadas não forem tomadas, as vidas de alguns estudantes poderão estar em risco.

“O meu filho teve a vida em risco e só não foi pior porque alguém interveio durante a agressão. Foi mandado para o chão, bateram-lhe a cabeça na calçada, perdeu os sentidos e, ainda assim, os agressores continuaram a dar socos e pontapés como se de um animal se tratasse”, descreve.

O filho foi encaminhado para a Delegacia de Saúde da ilha, contudo, a gravidade das lesões fez com que fosse evacuado para o Hospital Universitário Agostinho Neto (HUAN), na Praia.

Jorge Freitas garante que após a alta, o próximo passo será procurar um advogado e lutar para que a Justiça seja feita, antes que se instaure uma “guerra” e a “selvageria prevaleça”.

Adolescente deu entrada no HUAN com traumatismo craniano

Contactado por este jornal, o director Clínico do Hospital Agostinho Neto, Vítor Costa, confirma que o adolescente de 15 anos deu entrada no serviço de emergência do HUAN, onde recebeu atendimento médico e ficou internado e recebeu alta esta terça-feira, 07.

“Entrou com traumatismo craniano, mas o exame que fez, tomografia, não revelou nenhuma alteração. Considerou-se, portanto, trauma ligeiro e a evolução clínica foi bastante favorável e o adolescente já está em condições de voltar para casa”, prognostica.

Questionado sobre a regularidade de casos de agressão entre menores, o director precisou que naquela instituição não há entrada de muitos incidentes.

“São casos esporádicos que dão entrada no Hospital”, avança.

De salientar que o Expresso das Ilhas tentou, junto ao HUAN, saber quantos casos de agressão entre menores dão entrada na instituição e a gravidade dos ferimentos, mas a mesma admitiu que não dispõe desses dados.

Crianças de Cabo Verde vivem inundadas de violência - jurista

Para o jurista João Santos, a criminalidade, por si, é um problema e quando se junta à prática desses mesmos hábitos por jovens, o fenómeno torna-se mais grave. Nesse sentido, diz que é preciso questionar seriamente, não a idade da imputabilidade, se deve ou não ser mais baixo do que 16 anos de idade, mas sim, o porquê deste fenómeno na sociedade.

“Porquê termos o problema da criminalidade praticada por jovens? E, o que pode ser feito para reduzir a probabilidade de outros jovens entrarem no mundo do crime? Eu diria que o crime, a delinquência, é um sintoma, de entre outros sintomas, de problemas sociais”, declara.

João Gomes acredita que os dois casos citados nesta reportagem são sintomas “graves” de problemas sociais.

“Porque as crianças de Cabo Verde vivem inundadas de violência. Violência familiar, violência nas escolas, violência nos centros de acolhimento como Orlando Pantera, nas prisões, nas relações interpessoais. Portanto, essas crianças foram, de certa forma, retiradas da sua condição de criança. Não são indivíduos que sonham”, observa.

As crianças, prossegue, estão obrigadas a ter um comportamento de adulto, quando são elas que têm de prover ao invés de receber, quando são elas que têm de dar de comer em casa, que cuidam dos seus irmãos mais novos.

Conforme argumenta, uma criança que é transformada em adulto, que tem histórias de violência no seu seio, não pode sonhar e tem o seu futuro comprometido.

“Ao invés de andarmos a procurar formas de punição cada vez mais graves, temos é que procurar formas de resolver os problemas que essas crianças enfrentam e que não lhes deixa alternativa senão o mundo da delinquência. O problema não são as crianças, os adultos é que são problema”, frisa.

Psicóloga alerta pais a serem mais rígidos

A psicóloga infantil e especialista em inteligência emocional da criança, Rosana Tavares, explica que para entender a razão de crianças e adolescentes serem agressivos, é preciso entender o contexto familiar, escolar e a comunidade onde vive.

Se nesses ambientes a criança se depara constantemente com situações de agressividade, provavelmente pode, algum dia, em alguma situação semelhante, reagir de forma agressiva a uma situação que lhe aconteceu.

“Os pais, desde o início, devem-se preocupar com a educação das suas crianças, independentemente da sua faixa etária. Ensinar as regras básicas de que devemos ter uma outra forma de lidar com as situações sem ser de forma agressiva, ensinar o certo e o errado para que a criança ou adolescente tenha a noção do que é correcto e o que não é”, explana.

Se a criança souber o que é correcto, vai fazer o correcto. Por outro lado, se ao fazer o errado, não for corrigido pelos pais, encara o errado como algo normal.

Nesta linha, Rosana Tavares sugere aos pais que chamem a atenção dos filhos quando fazem algo errado e que expliquem o porquê de ser considerado errado.

“Não é só dizer que simplesmente não pode fazer algo. Quando a criança é mais pequena pode ser explicado o motivo e não compreender, mas os adolescentes compreendem e é preciso explicar o porquê. É preciso incentivar a criança a se colocar no lugar do outro”, sugere.

A profissional que trabalha com adolescentes e crianças em algumas escolas, mas também faz atendimento numa clínica, afirma que o número de crianças com problemas em lidar com a raiva, às vezes, é um bocado significativo.

“Não posso dizer a dimensão porque teria de atender a maioria das crianças e adolescentes na Praia. Diria que esse número significativo veio depois da pandemia e também devido a uma nova fase que passamos a viver em que os pais estão a trabalhar com a esperança de dar aos filhos melhores condições”, fundamenta.

Ao trabalhar muito para dar melhores condições aos filhos, a psicóloga entende que os pais acabam por não se aprofundar nas explicações que dão aos mesmos, quando deveriam ser claros que hoje não podem dar algo ao filho, mas que estão a trabalhar para que seja possível.

“Mas, quando não falamos, não somos sinceros e não explicamos a situação a criança pode pensar que os pais não dão porque o mundo é injusto e que por isso deve ficar contra o mundo. Ou ainda que o colega tem mais do que, se calhar, tem de fazer algo para conseguir ter”, ilustra, indicando que muitas vezes, para conseguir algo, as crianças fazem coisas erradas.

Quanto aos relatos de agressão entre menores, Rosana Tavares menciona que muitos pais passam a questionar se os filhos seriam capazes de ter o mesmo comportamento, já que podem não conhecer bem os adolescentes e do que são capazes de fazer.

Conforme assegura, o importante é que os pais dialoguem e observem os filhos, ouvirem o que as pessoas à volta que convivem com os seus filhos dizem.

“Porque às vezes dizem algo que pode não ser mentira. Então, é preciso que os pais se aproximem dos filhos para saberem o que se está a passar, se algo está fora do normal. Saber se a agitação da criança está dentro da normalidade, ou se é mais activo pela negativa ao ponto de atirar pedras, agredir crianças ou até mesmo adultos”.

“Se o seu filho estiver com esse comportamento não é normal. Os pais devem ser mais rígidos na sua educação, não no sentido de bater por tudo e por nada, mas rígido de mais conversa e mostrar o que é certo ou errado e que o errado não leva a lugar nenhum”, pontua. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1110 de 8 de Março de 2023. 

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Autoria:Sheilla Ribeiro,12 mar 2023 10:09

Editado porAntónio Monteiro  em  29 nov 2023 23:28

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