O relatório da comissão de inquérito à morte de bebés no HBS fala de “parco cumprimento do protocolo nacional de tratamento e seguimento de recém-nascidos prematuros”. O que determinam estes protocolos, como é que eles devem ser implementados e o que pode condicionar essa implementação?
Os protocolos são linhas de conduta. Cada serviço, de cada especialidade, tem protocolos que regem o trabalho diário do médico. Os protocolos, habitualmente, são nacionais, adaptados a cada situação, e devem ser seguidos. Não podem é ter um seguimento cego, têm de ser adaptados, revistos regularmente, porque a área médica, felizmente, desenvolve-se numa velocidade tal, que é preciso rever e adequá-los ao conhecimento científico à data. Os protocolos têm de ser discutidos entre quem propõe e os profissionais de saúde, têm de ser aceites, tem de haver subsídios de quem os vai aplicar.
Que factores podem condicionar a implementação dos protocolos?
Vamos supor que a Neonatalogia do Hospital Baptista de Sousa (HBS) tem menos condições do que a Neonatalogia do Hospital Agostinho Neto (HAN). Neste caso, o protocolo não se pode aplicar no HBS com a mesma severidade com que se aplica no HAN. Imagine-se que as condições materiais e humanas que existem num serviço são completamente diferentes das que existem no outro. Ou seja, o protocolo é cumprido mediante semelhança de condições. Eu diria que o comunicado [do Ministério da Saúde, com as conclusões do inquérito] é um bocado lacónico, baseando na gravidade da situação. São duas páginas que abordam tudo um bocado pela rama.
O documento também aborda a questão da comunicação dos profissionais de saúde com os doentes ou, neste caso, com as mães dos bebés. Que importância tem a comunicação profissional de saúde-paciente?
Isto é uma coisa cada vez mais actual, principalmente a comunicação de más notícias. Quando se comunica que tudo correu bem, toda a gente está feliz, mesmo que a comunicação tenha sido feita de forma lacónica. Outra coisa é quando se vai dar uma má notícia. Há quem defenda que isso deve ser feito por uma equipa especializada, de profissionais não médicos ou por algum médico especializado em fazê-lo, e não pela equipa que tratou o paciente, porque já há uma animosidade, principalmente dos familiares que perderam alguém importante na sua vida.
Como é que a comunicação pode ser melhorada?
Devemos ser o mais honesto possível, deve dizer-se tudo, preparar a pessoa para tudo, deve dizer-se aos familiares que a situação é grave, que o prognóstico é reservado ou que é mau. Isso deve ser feito com clareza. Tem de se informar a família de como é o prognóstico à entrada, que a probabilidade de correr mal é esta. Há estudos internacionais que dizem que, mediante determinadas situações, a probabilidade de morte é X. Portanto, há scores que se devem aplicar.
O comunicado divulgado com as conclusões do inquérito parece tratar todos os casos por igual. Contudo, clinicamente, cada caso será um caso, não é assim?
Eles vão um bocado pela rama. Separam, mas não aprofundam a investigação. Também tiveram [apenas] três dias para fazer isso. Acho que três dias [N.R.: a comissão de inquérito reuniu-se pela primeira vez a 22 de Maio e visitou o HBS a 25 e 26 do mesmo mês] é manifestamente pouco para uma observação num hospital, audição dos envolvidos… Sei que houve muita pressão politica para o fazer, mas deveria ter sido feito um relatório mais aprofundado, pedindo [apoio] a uma unidade de Neonatalogia de um hospital de um país de língua oficial portuguesa, se calhar Portugal ou Brasil, que têm mais experiência. Não é para apontar o dedo, é para perceber o que correu mal e o que se pode fazer para melhorar. Como sociedade, temos que exigir uma saúde de qualidade, a saúde de qualidade custa, é cara. É preciso que os cabo-verdianos exijam uma saúde de qualidade e, para o fazer, têm que exigir aos políticos. A saúde que temos é responsabilidade dos políticos. Os médicos de Cabo Verde devem começar a dizer a sua verdade, não podem ficar calados, a fugir nos ‘pingos da chuva’. Têm que dizer a verdade, as condições de trabalho que têm para exercer a profissão. Se não, serão responsabilizados por coisas em que, provavelmente, não têm responsabilidade nenhuma.
Voltemos ao relatório. O que é uma sepse neonatal tardia?
Uma sepse é uma infecção generalizada, provavelmente de origem bacteriana, que leva depois a choque séptico e falência multiorgânica. No relatório, dizem que os bebés poderão ter morrido [de sepse], é uma hipótese avançada.
Como é que se percebe que todos os casos tenham tido a mesma causa da morte provável?
Isso pode acontecer, de facto, daí o problema. Há um problema no isolamento do recém-nascido, ou na assepsia das pessoas que contactam o recém-nascido que está numa unidade de cuidados intensivos, e isso não pode acontecer. Isto é uma coisa que não deveria ter acontecido e que, acontecendo, têm de se tirar ilações. Essas ilações são a melhoria das condições de acesso às crianças, se calhar até restrição, para que não volte a acontecer. A principal forma de combater as infecções hospitalares é evitar a transmissão. Uma das coisas é lavar as mãos. Depois, é o uso muito criterioso dos antibióticos. Na unidade de cuidados intensivos há protocolos muito restritos para que não haja essa transmissão.
De que outros elementos precisaríamos para uma análise mais detalhada e criteriosa das circunstâncias?
Este relatório foi uma exigência da sociedade e dos políticos e aí fizeram o relatório em ‘dois dias’. De facto, em ‘dois dias’, não dá para fazer mais do que isto. É manifestamente impossível avaliar sete processos de morte, avaliar as condições do serviço de Neonatalogia, e elaborar um relatório [num espaço de tempo tão curto]. Seria bom que o hospital ou o Ministério da Saúde conseguisse que alguém de fora fizesse uma avaliação do serviço, não neste contexto, mas para melhorias futuras.
*com Lourdes Fortes
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1124 de 14 de Junho de 2023.