O potencial só tem valor se for transformado em desenvolvimento

PorJorge Montezinho,3 set 2023 7:47

João Carlos Silva, Associação Roça Mundo
João Carlos Silva, Associação Roça Mundo

Ficou conhecido por ser o rosto do programa Na Roça com os Tachos, transmitido pela RTP-África, sempre gravado em diferentes roças de São Tomé e Príncipe e onde se apresentava receitas feitas com ingredientes da terra. Famosa é também a frase com que terminava sempre: “Façam o favor de ser felizes” – Mas João Carlos Silva é muito mais, é empreendedor, é artista plástico e é um dos coordenadores da transformação que se espera na roça de Água Izé, juntamente com Leão Lopes, reitor do M_EIA. Partindo da realidade social e cultural de São Tomé e Príncipe e de Cabo Verde, foi criado o projecto Entreposto das Artes, traduzido num amplo programa de troca de saberes e de consolidação de práticas culturais geradoras de futuro e com renda sustentável para pessoas e comunidades, financiado pela União Europeia e gerido pelo Instituto Camões,

A iniciativa parte da vontade da Associação Roça Mundo (São Tomé) em consolidar a sua experiência no sector cultural e de se afirmar no contexto regional e sub-regional. Com esse objectivo, associou-se ao M_EIA (Cabo Verde), contando com o seu apoio no reforço da sua intervenção onde a arte, educação e cultura são assumidos como vetores para um desenvolvimento endógeno sustentado. 

João Carlos Silva é o responsável pela Associação Roça Mundo, uma organização voltada para a formação de artistas e pessoal técnico em ofícios e artes performativas, sediada na CACAU, Casa das Artes, Cultura, Ambiente e Utopias (São Tomé), polo unificador de um movimento cultural, social e cívico, com fortes implicações económicas, que promove, numa primeira linha, a participação dos mais jovens na promoção da cultura e, numa segunda instância, a interação de toda a população com a sua história e costumes, com vista a contribuir para o aumento da auto-estima e do orgulho em ser são-tomense. Irrequieto, desassossegado, inconstante por natureza, sempre à procura de melhorar alguma coisa, com muito atrevimento e com bastante ousadia, João Carlos Silva falou com o Expresso das Ilhas sobre o futuro com que sonha [a entrevista decorreu no início deste mês, durante o Seminário Internacional Reinventar as Roças – Água Izé, que decorreu em São Tomé]

A minha primeira questão tem de ser: e agora?

E agora; utopia, sempre, todos os dias; provocações, todos os dias, todas as horas, mas agora com maior responsabilidade ainda. Provocar, sim, mas e agora? E agora é, com a presença do primeiro-ministro começa-se esta causa/projecto [Patrice Trovoada, Chefe do Governo de São Tomé, esteve na exposição que encerrou os trabalhos desenvolvidos no terreno]. Nós tivemos um encontro com ele em Fevereiro, e agora vimos que o primeiro-ministro continua firme nesse compromisso de ver uma parte da sociedade civil organizada, de São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, junta para mudar, com base neste passado histórico e cultural e com base numa palavra que, por vezes, vai ficando cada vez menos sem sentido que é a palavra amizade.

A amizade, essencialmente, é que provocou tudo isto.

A amizade é que provocou tudo isto, é verdade. Nós, Roça Mundo, não tínhamos experiência nenhuma de trabalhar com comunidades. Trabalhamos na área das artes, da música, do teatro, da dança, vamos às comunidades, mas não trabalhamos com as comunidades como o Atelier Mar e o M_EIA trabalha há anos. Então, nada melhor do que encontrar o Leão Lopes e ainda por cima, somos amigos, damo-nos bem e conseguimos através de uma ideia e acção de cooperação Sul-Sul fazer este projecto – o Entreposto das Artes – e começamos a pensar: e quando acabar o projecto [Junho de 2024]? Bem, resolvemos que vamos trabalhar juntos noutras abordagens, noutras áreas. Temos este povão todo, que nasceu do cruzamento de cabo-verdianos e são-tomenses e outras geografias, uma boa parte deles sediados nas roças, portanto, reunimos, agrupámos um conjunto de amigos [professores universitários e especialistas diferenciados portugueses, espanhóis, cabo-verdianos e são-tomenses] e começámos a picar. Um pica-pica dos diabos, que o Leão Lopes é especialista em muita coisa, inclusive em picar, e começamos a descobrir onde é que nós, enquanto sociedade civil, podíamos exercer essa cidadania activa, participativa, de forma organizada.

No fundo, descobrir até onde podiam sonhar.

É. Nós temos de mostrar, antes de tudo, a nós próprios. Depois, aos nossos respectivos países, governos e autoridades, de hoje e de amanhã, que estamos preocupados com o problema dos nossos povos e, neste caso, do povo de São Tomé e Príncipe e com o futuro dessas pessoas, dessas comunidades, que foram roças, que são património hoje a vários níveis: humano, histórico, cultural, etc., mas que parece que estão sem esperança. E é essa constatação da desesperança de muita gente que nos fez unir esforços para provocar as pessoas que vieram das universidades, saíram das suas casas, deixaram os seus afazeres, podiam estar de férias, mas preferiram vir atrás deste louco Leão Lopes que lhes mostrou esse outro louco de São Tomé, que é o João Carlos Silva, e juntámos todas essas loucuras interessantes para conseguirmos uma mudança. E é isso que temos e foi isso que mostrámos ao primeiro-ministro e perguntámos se queria juntar-se a nós e ele disse que sim.

Agora a outra questão é: como?

Como? Parcerias público-privadas. Temos um documento que saiu deste exercício multidisciplinar, transversal, feito com a comunidade de Água Izé, com os professores, com o pessoal da saúde, e então estamos colados a essa responsabilidade. O como, como disse, será sempre através de parcerias público-privadas, mas também com o compromisso do governo junto de agências internacionais de cooperação, bilaterais e multilaterais, de encontrarmos forma de financiar uma boa parte daquilo que foi identificado em Água Izé e que tem de fazer parte da construção do futuro daquele território [No final do seminário, concluiu-se que para libertar e integrar todo o potencial de Água Izé, são necessárias iniciativas de desenvolvimento integrado e estratégico. O dossier final apresenta uma abordagem abrangente para enfrentar o desafio, identificando cinco áreas de intervenção sectorial: educação, social, cultural, económica e saúde, sendo o planeamento urbanístico uma ferramenta essencial para assegurar a sua integração].

Parcerias público-privadas, mas onde o governo não tem de entrar, necessariamente, com financiamento. Pelo que fui ouvindo, se o executivo não atrapalhar o trabalho dos privados já é um bom início.

Não atrapalhar é um grande apoio. Já tive um encontro com o primeiro-ministro e disse-lhe que às vezes o governo atrapalha. Portanto, só precisamos do aval para que a sociedade civil, ou se quisermos esta parte privada da sociedade, possa agir, fazer, inventar, reinventar, desde que os seus objectivos – e esses são sagrados – sejam trabalhar para as comunidades, dar-lhes condições melhores para viver, para estar, para produzir, inclusive para fazermos com que algumas pessoas que já deixaram Água Izé tenham vontade de regressar e de investir em Água Izé. Não queremos só investidores estrangeiros, queremos até ter uma discriminação positiva para originários de Água Izé.

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Nas nossas primeiras conversas informais, disse-me que São Tomé estava cansado de ser um país com potencial, que era preciso agora passar à próxima fase.

Sim. Há contentores e contentores de potencial guardado (risos). Ainda se pudéssemos exportar potencial (risos) para arrecadar algumas receitas. Mas não, ninguém quer o nosso potencial. O potencial é um estádio de ver com bons olhos o que cada território tem de bom para poder, depois, fazer do potencial economia e fazer da economia uma forma de desenvolvimento. E estamos numa encruzilhada. Quase 50 anos depois da independência, começamos a questionar-nos – ou devíamos começar – se temos condições para estar mais 50 anos independentes e com alguma alegria para viver e para sermos gente, mais ainda do que somos hoje. E essa é uma questão de fundo. Estamos em condições de a fazer, por parte das nossas autoridades, mas muito mais por nós próprios?

O João tem falado de cidadania activa e participativa, mas e as pessoas, estão com vontade?

Há muita gente sem vontade, por causa dessa desesperança que falei há pouco, mas isso também se educa, também se forma. Nas escolas, nos miúdos, pode ser uma coisa meio utópica, mas devíamos ter a disciplina de cidadania activa e participativa nas escolas desde tenra idade. O que é que o cidadão tem como dever, como direito, particularmente num país como o nosso, um micro-Estado insular, com um passado histórico complicado, com uma economia sempre deficitária e que agora com esta herança de monocultura se vê a braços com este grande problema que é: como encontrar forma de ter uma economia diversificada e, se possível, não dependente de uma eventual exploração de petróleo, que é outro problema que nos faria falar durante horas.

Ou uma economia não dependente só do turismo.

Ou não dependente só do turismo. Quando saímos da monocultura do cacau, havia quem dissesse que íamos entrar ou na monocultura do turismo ou na monocultura do petróleo. Acho quem nem uma coisa nem outra. Monocultura não é boa para ninguém. É evidente que 50 anos depois da independência, ou nos reinventamos ou então não temos grandes hipóteses de celebrar quase nada quando nos juntarmos no 12 de Julho daqui a meio século.

Última questão. Começa­mos a falar de utopia, de sonhos, e no futuro, daqui a uma década, o que gostava que fosse Água Izé?

Uma nova cidade, uma nova centralidade, com tudo o que uma cidade deve ter, mas onde as pessoas pensassem sempre que a felicidade pode morar na esquina de uma rua, na casa de um amigo e que todos pudessem ter orgulho de ter nas suas próprias mãos a construção do futuro que querem. Sei que esta juventude toda que está em Água Izé vai mostrar que é possível fazer acontecer este grande sonho que é transformar Água Izé num lugar digno, próspero e onde se pode viver. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1135 de 30 de Agosto de 2023.

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Autoria:Jorge Montezinho,3 set 2023 7:47

Editado pormaria Fortes  em  2 mai 2024 23:28

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