“Mais importante que o certificado, é manter a condição de país livre de paludismo” - Artur Correia

PorAndré Amaral,21 jan 2024 8:50

Artur Correia
Artur Correia

Cabo Verde recebeu, na passada sexta-feira, a certificação de país livre do paludismo juntando-se às ilhas Maurícias e à Argélia como os únicos países do continente africano onde não há registo de casos autóctones da doença.

“Temos de manter Cabo Verde sem paludismo”. As palavras são de Tedros Adhanom Ghebreyesus, Director Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) que esteve em Cabo Verde no passado fim de semana para entregar ao governo o certificado de país livre de paludismo.

No entanto, aquele responsável não deixou de alertar que agora o grande desafio que se coloca ao país é de como se manter livre desta doença.

Artur Correia, consultor da ONU que apoiou o processo de certificação e antigo Director Nacional de Saúde, concorda com esta ideia do Director Geral da OMS.

“Mais do que ter o certificado, [o importante] é manter a condição de país livre de paludismo”, aponta em conversa com o Expresso das Ilhas.

Cabo Verde já dispõe de um plano de prevenção da reintrodução da doença no país e, portanto, “estamos perante uma maior responsabilidade por parte das autoridades nacionais, não só o Ministério da Saúde, mas outros ministérios também que estão envolvidos nisso”.

Artur Correia defende mesmo que neste momento “já é a credibilidade do país que está em causa. Tem de se manter o status. Não há volta a dar”.

E por onde passa a manutenção desse estatuto de país livre do paludismo?

Artur Correia não tem dúvidas: “Temos que apostar num maior profissionalismo e na responsabilidade na gestão dos casos importados, que continuam sempre a aparecer. Todos os anos temos à volta de 25, 30 casos importados. Temos que estar vigilantes”.

A vigilância epidemiológica é, na opinião deste especialista, fundamental para detectar precocemente esses casos e actuar também precocemente.

“A luta anti-vectorial é uma componente fundamental também que temos que implementar, um maior profissionalismo, com uma maior motivação para os profissionais que estão nesta área. E esta motivação parte fundamentalmente do enquadramento, digamos, do vínculo profissional ao Ministério da Saúde”, defende.

Artur Correia entende igualmente que “nesta fase de manutenção da certificação, já não podemos continuar com alguns agentes em situação laboral indefinida. O Estado tem a obrigação de os enquadrar devidamente, dar-lhes um salário digno para que, de facto, possamos ter uma resposta a nível da vigilância epidemiológica, a nível da luta anti-vectorial”.

Mosquito (ainda) presente em várias ilhas

A certificação de Cabo Verde como país livre do paludismo prova que o trabalho de prevenção tem vindo a ser feito pelas autoridades de saúde. No entanto, o mosquito transmissor do paludismo, o anopheles gambiae, continua presente no país nomeadamente na ilha de Santiago, na ilha do Maio, na ilha da Boa Vista, na ilha de São Vicente, foi também recentemente detectado na ilha de São Nicolau, onde já esteve no passado, tendo também sido detectado uma zona muito isolada em Santo Antão, portanto, em Porto Novo.

A dispersão do mosquito transmissor do paludismo por várias das ilhas do país mostra que a luta contra o ressurgimento da doença no país ainda não terminou.

“Há luta anti-vectorial, quer contra mosquitos adultos, com a pulverização das casas, com insecticidas... E há também a luta anti-larvar, que é necessária para manter a densidade a um nível baixo, para evitar eventuais casos de retransmissão de casos importados. Em relação às ilhas há a questão da pulverização dos aviões, que partem das zonas onde existe o vector, para ilhas onde ele não existe, e quando se fala de aviões, fala-se também de barcos, que é uma actividade que ainda não está retomada. A eliminação [da doença] exige, portanto, essa responsabilidade do país na delimitação das zonas de detecção do mosquito vector”.

Outro desafio, refere Artur Correia, reside no diagnóstico precoce “que exige uma resposta célere a todos os níveis”.

Na luta contra a transmissão autóctone de paludismo há hoje uma “maior responsabilidade, maior profissionalismo, já não se coaduna com algum amadorismo em relação a isso. É o preço que o país tem que pagar para manter a certificação”.

Atenção a águas paradas

Mas não são apenas as autoridades de saúde que têm responsabilidades na luta contra o mosquito transmissor da doença.

Tal como aconteceu com a dengue ou a zika em que uma das formas de prevenção era evitar águas paradas, o mesmo aplica-se a estes mosquitos que transmitem o paludismo.

“As fases aquáticas do mosquito são importantes. É importante conhecer a bioecologia desses nossos dois vectores para podermos actuar de uma forma mais eficaz”, aponta o antigo Director Nacional de Saúde.

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“O mosquito vector do paludismo é um mosquito menos urbano do que o Aedes aegypti (transmissor da duengue e zika). O Aedes aegypti é um mosquito que até se desenvolve dentro das casas, nos jarros de plantas e também nos tanques de água a nível do domicílio. Mas o anopheles gambiae (transmissor do paludismo) não tem esse hábito de se desenvolver dentro de casa. Ele surge mais sobretudo quando chove em zonas com água, digamos sem grandes quantidades de matéria orgânica em decomposição e por isso tem uma bioecologia diferente do Aedes aegypti e as medidas de luta também são ligeiramente diferentes, mas podem, perfeitamente, ser integradas. Já pode haver uma luta anti-vectorial integrada que leve em consideração esses dois aspectos fundamentais”.

“Marco histórico”

Na sexta-feira, durante a cerimónia de certificação de Cabo Verde como um país livre de paludismo, o primeiro-ministro não hesitou em classificar o momento como “um marco histórico”.

Ulisses Correia e Silva lembrou que esta certificação é resultado de um percurso feito pelo país ao longo dos anos, mas que com esta certificação crescem, igualmente, as responsabilidades.

“Num país que tem no turismo a sua principal actividade económica, a erradicação do paludismo significa a eliminação de um constrangimento à mobilidade e o reforço da confiança sanitária”, lembrou Ulisses Correia e Silva.

Ulisses Correia e Silva destacou ainda que sectores como a Saúde e a Educação são dois pilares determinantes no combate à doença.

O primeiro-ministro assinalou igualmente que a certificação de Cabo Verde como país livre de malária tem um “enorme impacto” e foi preciso muito tempo para chegar a este ponto. Em termos de imagem externa do país, considerou que isso é “muito bom”, tanto para o turismo como para todos os outros sectores.

“O desafio que Cabo Verde superou no sistema de saúde está a ser reconhecido”, apontou Ulisses Correia Silva.

Com esta certificação, Cabo Verde junta-se ao grupo de países que a OMS concedeu esta certificação, sendo até agora 43 países e um território.

Além disso, destacou o primeiro-ministro, a certificação da eliminação do paludismo impulsionará um desenvolvimento positivo em muitas frentes para Cabo Verde. “Os sistemas e estruturas criados para a eliminação da malária reforçaram o sistema de saúde e serão utilizados para combater outras doenças transmitidas por mosquitos, como a dengue. Com esta distinção os viajantes de regiões não endémicas de malária podem agora viajar para as ilhas de Cabo Verde sem receio de infecções locais de malária e do inconveniente potencial das medidas de tratamento preventivo”, lembrou.

“Certifiquei Cabo Verde como livre de malária, felicito o Governo e o povo de Cabo Verde, e a todos parceiros, nesta conquista histórica”, referiu, por sua vez, o Director Geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, no discurso que fez durante a cerimónia de certificação.

O director-geral da OMS considerou Cabo Verde “um modelo em muitos aspectos” e destacou que o “forte compromisso político, vigilância, coordenação intersectorial, colaboração, parceria e investimentos” feitos, não só no sector da saúde, tornaram possível esta conquista.

O Director Geral da OMS avançou igualmente que o trabalho feito nos últimos dois anos para mostrar que não há mais casos de paludismo autóctone no país e garantir que nunca mais volte é um orgulho para a OMS, o Fundo Global e outros parceiros que apoiaram este processo em todas as etapas.

“Estas palavras ‘livre da malária’ são um som doce para aqueles de nós que vivem saúde pública, e especialmente para aqueles que se especializaram em malária”, ressaltou o director da OMS, que lamentou o facto de a malária continuar a ser “um dos maiores desafios” de saúde pública a nível mundial.

Entretanto, lembrou que a grande maioria desses casos e mortes ocorrem no continente africano e que quatro em cada cinco mortes relacionadas com a malária ocorrem entre crianças com menos de cinco anos de idade.

Apesar de existirem ainda “muitos desafios”, disse que foram alcançadas também “muitas conquistas importantes” para celebrar e que deixam esperança real para concretizar o sonho de um mundo livre de malária.

“Hoje, estamos a dar um passo em direcção à realização desse sonho, ao celebrar um Cabo Verde livre de malária, mas lembramos que este momento é realmente o fim de um começo, Cabo Verde estará sempre em risco de a malária voltar e o trabalho que nos trouxe até aqui deve continuar”, notou.

Para manter Cabo Verde livre da malária, Tedros Adhanom Ghebreyesus defendeu que será necessário continuar a apostar na formação e investimento contínuo em sistemas que protegem o país contra doenças transmissíveis e investimento sector primário do sistema de saúde, sem o qual a eliminação da malária não teria sido possível.

“Garantir a continuidade da vigilância da malária, diagnóstico de qualidade, a colaboração multi-sectorial e a alocação dos recursos necessários serão vitais para prevenir o restabelecimento da transmissão da malária”, acrescentou o director que se mostrou confiante que o Governo de Cabo Verde fará todos os esforços para manter o seu estatuto de livre de malária.

“Esta conquista envia uma mensagem clara ao mundo de que, com a vontade, parceria forte e o total empenho de cada parceiro é possível eliminar a malária em qualquer lugar”, finalizou Tedros Adhanom Ghebreyesus.

Paludismo em Cabo Verde

Apesar de só agora ter conseguido a certificação, já não é a primeira vez que Cabo Verde consegue evitar o surgimento de casos autóctones de paludismo.

“Em termos históricos, podemos dizer que no ano de 1950 foi quando começou a luta contra o paludismo no país. Nessa década o vector, o anopheles gambiae, já tinha sido erradicado de praticamente todas as ilhas do país, com excepção de Santiago. A partir dos anos 60, a luta contra o paludismo concentrou-se fundamentalmente aqui na Ilha de Santiago. E, em 1967, já não havia transmissão de casos autóctones no país”, recorda Artur Correia.

Entre 1967 e 1972 o país não teve nenhum caso autóctone.

“O que é que aconteceu? As autoridades desmantelaram todo o serviço que tinha sido montado. Como não havia casos, desmantelaram os serviços. Foi o grande erro que se cometeu nesse processo”, explica acrescentando que a partir de 1973 Cabo Verde enfrentou uma grande epidemia que levou, já depois da independência, em 1978, à criação da Brigada de Luta contra o Paludismo. “Um serviço direccionado para, especificamente, fazer esse serviço de prevenção, de prevenção e controle da doença, que deu os seus resultados”.

Entre 1983 e 1985 houve uma nova interrupção nos casos autóctones. “Entretanto baixou-se a guarda à prevenção e ao controlo, e começamos, a partir de 1986, a ter casos, todos os anos, a ter casos, 10 casos, 20 casos, 30 casos, e os casos foram aumentando, até que tivemos uma grande epidemia, em 2017”.

Depois dessa última epidemia a partir de Fevereiro de 2018 e até agora Cabo Verde não voltou a registar transmissões da doença em todo o território nacional. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1155 de 17 de Janeiro de 2024.

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Autoria:André Amaral,21 jan 2024 8:50

Editado porFretson Rocha  em  29 abr 2024 23:27

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