Formação Marítima: Do CFN ao ISECMAR. 40 anos de História

Instalações do ISECMAR em São Vicente
Instalações do ISECMAR em São VicentePágina de Facebook do ISECMAR

Pioneiros e actuais responsáveis lembram percurso de sucesso e desafios que persistem. País é referência na formação de oficiais de marinha mercante.

Cabo Verde assinala esta quinta-feira, 26 de Setembro, 40 anos de formação superior, profissional e profissionalizante no sector marítimo. A data é lembrada com um programa comemorativo, ao longo de todo o dia, em São Vicente (ver caixa).

A tradição de capacitar marítimos é antiga no país. A celebração desta quinta-feira remete especificamente para 1984, quando a formação passou a ser assegurada pelo Centro de Formação Náutica (CFN) e alinhada com os requisitos da Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês). Foi o momento alto de um processo iniciado anos antes, com o suporte técnico e financeiro da Noruega.

António Pedro Silva acompanhou os primeiros anos do CFN, do qual acabou por ser o segundo director. Assumiu funções num contexto de incerteza.

“Tive como desafios tentar organizar, e organizei, a parte administrativa, criar um corpo docente com quadros nacionais. Fui buscar jovens recém-formados na área náutica e marítima, formados quer nos Estados Unidos, quer no Brasil, Portugal e até União Soviética. Foi uma dificuldade enorme. Eu era director e professor, mas eles ganhavam quase o dobro do que eu ganhava”, recorda.

A aposta nos recursos humanos, a aprendizagem com os cooperantes estrangeiros que apoiaram o arranque do CFN, e a contínua procura por mais competências e experiência internacional, revelaram-se fundamentais.

“Eu disse-lhes [aos novos professores nacionais]: ‘a vossa missão é colarem-se aos cooperantes internacionais, ganharem experiência, conhecimento e aprenderem com eles’. Foi assim que, em pouco tempo, consegui ter 19 ou 20 quadros nacionais”, explica.

António Pedro Silva liderou a instituição até 1989 e deixou como principal legado, além do quadro docente, um centro de documentação e informação, novos cursos e o alargamento da cooperação.

Regressado da antiga União Soviética, onde estudou, Manuel Almeida tornou-se professor do CFN em 1987. Agora reformado, recorda o início de uma carreira de mais de três décadas ao serviço da formação marítima no arquipélago.

“O CFN foi criado como instituição internacional, de modo que tínhamos bons laboratórios, existiam todos os equipamentos necessários para a formação marítima. Laboratórios de navegação, laboratórios de máquinas, oficinas. Fomos criados com um nível internacional. Financiamento da Noruega, com todo o controle da parte da Organização Marítima Internacional, e a parte de Cabo Verde entrou com os edifícios”, sustenta.

Especialista em máquinas marítimas, mestre em Engenharia de Máquinas Marítimas e Administração da Segurança Marítima, Manuel Almeida foi director do departamento de Transportes Marítimos e coordenador do Sistema de Gestão da Qualidade, no ISECMAR. Também foi vice-presidente da Faculdade de Engenharia e Ciências do Mar (Uni-CV) e coordenador da secção de Formação Marítima. Nunca deixou de leccionar e mesmo agora continua a dedicar parte do seu tempo à capacitação de novas gerações de marítimos, na qualidade de consultor.

“A formação marítima requer uma atenção muito forte e não se vai parar por aqui. A ideia é continuar a investir na melhoria da formação”, promete.

Rádiotecnia, Máquinas Marítimas e Curso Geral de Pilotagem foram bandeiras inaugurais da oferta formativa do então CFN. Além de estudantes cabo-verdianos, as salas de aula contavam com alunos estrangeiros, incluindo de Moçambique, Angola e Guiné-Bissau.

Policarpo da Graça Almeida integrou a primeira turma de Pilotagem. O oficial de Marinha Mercante recorda esses tempos de novidade e lembra as boas condições existentes.

“Havia boa formação, existiam condições materiais, logísticas e pessoal bem qualificado. Tínhamos professores estrangeiros, mas também professores cabo-verdianos que nos ensinavam matemática física, inglês”, assinala.

Ao longo da carreira, Policarpo passou pelo longo-curso e pela cabotagem. Deu o seu contributo ao desenvolvimento da marinha nacional. Lamenta que a falta de competitividade tenha comprometido o sector, mas não tem dúvidas sobre as melhorias possibilitadas pelo CFN.

“Uma grande iniciativa [que teve] como consequência a formação de vários alunos, oficiais de ponte e oficiais de máquinas, que vieram colmatar algumas insuficiências em termos de pessoal de marinha mercante”, declara.

Desafios actuais

Em 1996, o CFN deu lugar ao Instituto Superior de Engenharia e Ciências do Mar (ISECMAR). De 2008 até 2020, enquanto parte da Universidade de Cabo Verde, a instituição foi denominada, primeiro, de Departamento de Engenharias e Ciências do Mar e, depois, de Faculdade de Engenharia e Ciências do Mar. A integração na Universidade Técnica do Atlântico, em 2020, recuperou o nome pelo qual é mais reconhecida – ISECMAR.

Quatro décadas depois do início da formação superior, profissional e profissionalizante no sector marítimo, uma das principais dificuldades é a atracção de oficiais interessados numa carreira no ensino, que permita renovar o quadro docente, em conformidade com as Normas de Treinamento, Certificação e Acompanhamento de Trabalhadores Marítimos (STCW), da IMO.

Robert Constantin Spencer, estudante da segunda turma de Máquinas Marítimas, no CFN, actual coordenador da licenciatura na mesma área, no ISECMAR, alerta que a questão salarial é um obstáculo.

“Regressar para ganhar três ou quatro vezes menos do que você ganha no mar… muito dificilmente vamos conseguir atrair pessoas. Corremos o risco de ir novamente buscar cooperantes”, antecipa.

“Se Cabo Verde pretende continuar com essa certificação [internacional], tem de mudar a tabela de vencimento para atrair docentes, antes que as pessoas com experiência se reformem”, reforça.

Atrair estudantes em número suficiente para o nível de procura dentro e fora de portas é outro desafio.

“O mercado internacional tem procurado e não temos podido dar resposta. Às vezes, nos cursos de engenharia, licenciatura em Ciências Náuticas, entram 25 [alunos], mas são 12 ou 13 que terminam”, contabiliza.

“Até parece que a formação marítima é só para pessoas de São Vicente. Antigamente, tínhamos gente de outras ilhas e de outros países”, conclui.

Para a UTA, “celebrar os 40 anos de Formação Náutica em Cabo Verde representa um marco significativo na trajectória educacional e marítima do país”, refere a universidade pública em nota de imprensa.

“Ao longo das últimas quatro décadas, a formação náutica feita em Cabo Verde tem contribuído para o desenvolvimento do sector em território nacional, mas também internacionalmente, devido à certificação internacional existente”, acrescenta.

António Varela, presidente do ISECMAR, considera que a formação de marítimos em Cabo Verde é não só uma referência, como parte essencial da consolidação da posição estratégica do arquipélago.

“A formação que nós damos aqui tem a valência internacional, portanto, segue aquilo que são as normas da IMO. Não formamos profissionais especificamente para Cabo Verde. Acreditamos que a maioria das pessoas que aqui foram formadas não se encontram a trabalhar em Cabo Verde”, enaltece.

O esforço contínuo de modernização das infra-estruturas e a actualização dos currículos, para atender às exigências da indústria, são chaves do sucesso.

“Os desafios acabam sempre por aparecer. O que temos vindo a fazer, é ter essa capacidade de adaptação, para poder responder àquilo que é expectável da nossa parte: formar marítimos que possam dar o seu contributo para a economia nacional e para a sua própria realização profissional”, afirma.

Apesar do sucesso reconhecido, o ISECMAR não deixa de se confrontar com os problemas financeiros transversais a todo o sistema de ensino superior.

“Os recursos, sobretudo financeiros, que estão à disposição não são suficientes ou, pelo menos, não acompanham a dinâmica que seria necessária para continuar a dar ‘conta do recado’, com mais tranquilidade.

O presidente do Instituto Superior de Engenharias e Ciências do Mar partilha da preocupação sobre a falta de docentes e concorda que a questão salarial diminui a capacidade de atrair novos quadros.

“Um oficial da marinha mercante, sobretudo a trabalhar no estrangeiro, os vencimentos nem sequer se comparam. Neste momento, é uma preocupação, porque os jovens, a menos que sejam criados incentivos, não estão muito virados para ficar em terra”, diz.

Com mais recursos, António Varela confia que o ISECMAR poderia alargar a sua oferta educativa, disponibilizando aos marítimos formações complementares que permitam a progressão até ao topo da carreira.

Programa dos 40 anos

As celebrações dos 40 anos de formação marítima superior, profissional e profissionalizante decorrem esta quinta-feira, 26, ao longo do dia.

O programa elaborado pelo ISECMAR contempla uma cerimónia protocolar, a partir das 08:30, que abrirá com um enquadramento histórico, com dados sobre o número de alunos, docentes, funcionários e cursos.

Em seguida, será exibido um vídeo com depoimentos de antigos docentes, estudantes e dirigentes da instituição.

Também durante a manhã, e antes da homenagem a parceiros nacionais e internacionais, o comandante João Lizardo e o professor Michael Ekow Manuel proferirão duas palestras, sobre as perspectivas de desenvolvimento da marinha mercante e do ensino marítimo, respectivamente.

À tarde, o programa prosseguirá no Centro Cultural do Mindelo, com José Cabral a fazer uma incursão pela história da formação náutica em Cabo Verde e a revisitar a experiência dos oficiais cabo-verdianos na baleação americana. O encerramento será feito com a exibição do documentário “Mar Liso”. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1191 de 25 de Setembro de 2024.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira, Fretson Rocha, Lourdes Fortes,26 set 2024 14:24

Editado porAndre Amaral  em  9 out 2024 8:20

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