Como tudo tem um início, o processo de selecção da aeronave começou com uma avaliação rigorosa das necessidades operacionais da Guarda Costeira de Cabo Verde, levando em consideração as suas missões primárias de patrulhamento e vigilância marítima, busca e salvamento, evacuação médica, além de outras missões de serviço público. Este estudo inicial envolveu não só a análise técnica, mas também a consulta a várias partes interessadas, incluindo instituições estratégicas do Estado, como o Ministério da Defesa, a Agência de Aviação Civil e o Ministério das Finanças, para garantir que a solução escolhida fosse economicamente viável, eficiente e sustentável.
“Após a análise interna, realizámos uma pesquisa exaustiva no mercado global para identificar plataformas aéreas que pudessem cumprir essas múltiplas funções/missões de forma eficaz”, explica ao Expresso das Ilhas o Coronel Domingos Correia, Coordenador da Comissão de Implementação da Aeronáutica Militar. “A Textron Aviation emergiu como a fabricante ideal, não só pela robustez e fiabilidade do modelo King Air 360ER, mas também pela sua capacidade de adaptar a aeronave às nossas necessidades específicas. As negociações foram conduzidas directamente com o fabricante, que demonstrou grande interesse e até admiração pelo nosso projecto. Aqui devo render aos nossos técnicos aeronáuticos das Forças Armadas a devida vénia, porque mostraram competência, resiliência e acima de tudo uma visão estratégica para o país a curto médio e longo prazo”.
Aliás, esta é a primeira vez que a Textron Aviation fabrica este modelo com três configurações de base: MEDEVAC, PATROL, e transporte geral, sendo que a configuração padrão é uma combinação das missões de patrulha e evacuação médica. “Isso reflecte a visão estratégica para o nosso país, em termos operacionais, visando maximizar os recursos e garantir que a aeronave seja uma verdadeira plataforma multi-missão, flexível e capaz de responder aos diversos desafios do país e da nossa região”, esclarece o militar.
Um dos maiores desafios durante o processo foi garantir que a aeronave cumprisse os rigorosos requisitos técnicos para as missões nacionais. Foi um trabalho que envolveu as várias instituições do Estado, em colaboração com a Textron, que exigiu uma coordenação eficaz e uma compreensão clara das exigências operacionais.
“Pela sua complexidade, a aeronave passou por uma série de testes, tanto de performance quanto de segurança, para assegurar que estivesse plenamente apta a operar nas condições específicas de Cabo Verde. Além disso, houve desafios significativos no processo de registo e certificação, uma vez que a aeronave, na sua concepção original, é de natureza militar”, sublinha o Coronel Domingos Correia. “A adaptação ao contexto de regulação civil exigiu uma colaboração próxima entre as autoridades de aviação civil e a Comissão para Implementação da Aviação Militar, as Forças Armadas e a ASA, num exemplo claro de cooperação institucional”.
O avião nem é exactamente um desconhecido, uma aeronave King Air operou em Cabo Verde por mais de seis meses em parceria com a Pal-Airspace, realizando missões de patrulhamento marítimo e inclusive missões para distribuição de vacinas durante a pandemia de COVID-19, cobrindo todas as ilhas com infraestrutura aeroportuária. “Os resultados foram impressionantes, evidenciando a eficiência do King Air em termos de performance, flexibilidade, segurança e confiabilidade em ‘operações militares’ sensíveis. Essa aeronave provou ser capaz de operar em diversas condições climáticas, cumprindo com sucesso missões que exigem rapidez e precisão. O feedback positivo gerado por essas operações reforçou ainda mais a nossa decisão de incluir o King Air na frota de Cabo Verde”.
A aeronave
As operações de patrulhamento marítimo, e busca e salvamento exigem uma aeronave com grande autonomia, versatilidade, alta velocidade e capacidade de operar em altitudes elevadas. Esses factores são essenciais para uma vigilância eficaz e uma rápida resposta em situações de emergência e optimizam os custos operacionais e de manutenção.
“O King Air 360 ER é uma plataforma extremamente versátil e eficiente, projectada para atender às necessidades operacionais da Guarda Costeira de Cabo Verde, abrangendo patrulhamento marítimo, busca e salvamento, e evacuação aeromédica”, diz o Coronel Domingos Correia. “Dada a extensão da Zona Económica Exclusiva (ZEE) de Cabo Verde, que ultrapassa os 700.000 km², e a Região de Informação de Voo (FIR), com mais de 1 milhão de km², as capacidades técnicas dessa aeronave são cruciais para garantir uma cobertura eficaz e uma resposta rápida em qualquer cenário operacional, seja de patrulhamento, vigilância ou resgate”.
Em termos de desempenho, o King Air 360 ER tem uma autonomia que varia entre 10 e 12 horas de operação, dependendo da configuração escolhida. Com um alcance superior a 4.000 km e um raio de acção operacional de aproximadamente 1.800 a 2.000 milhas náuticas, a aeronave é capaz de realizar voos directos, como o trajecto da Praia para Lisboa. A velocidade de cruzeiro é superior a 500 km/h [faz com que um voo da Praia para São Vicente, por exemplo, seja realizado em apenas 35 minutos]. O King Air 360 ER pode operar a um tecto máximo de mais de 10.000 metros.
O King Air 360 ER é também capaz de operar em velocidades mais baixas quando necessário, um factor indispensável para missões de busca e salvamento e vigilância marítima, onde a precisão e a observação detalhada são fundamentais. “Esta flexibilidade operacional permite que a aeronave atenda às diversas e complexas demandas de segurança marítima de Cabo Verde, consolidando-se como um activo estratégico de grande valor para o país”, sublinha o Coordenador da Comissão de Implementação da Aeronáutica Militar.
Configurada como MPA (Maritime Patrol Aircraft), a aeronave está equipada com um conjunto de tecnologias avançadas conhecidas como sistemas de missão, projectadas para fornecer capacidades operacionais completas em diversas situações. Esses sistemas são essenciais para garantir a eficácia das operações de patrulhamento, vigilância e segurança marítima.
Entre as principais tecnologias integradas, destaca-se o Radar de Longo Alcance e Alta Performance, que permite a detecção de alvos a distâncias de até 200 milhas náuticas (370 km). Essa capacidade é crucial para a vigilância marítima, pois permite monitorizar vastas áreas da Zona Económica Exclusiva (ZEE), facilitando a identificação precoce de embarcações suspeitas ou em perigo.
A aeronave também está equipada com o FLIR (Forward-Looking Infrared), um sistema de câmaras electro-ópticas e infravermelhas que oferece capacidades avançadas de vigilância diurna e noturna. Assim as missões podem ser realizadas em qualquer condição de luz, possibilitando operações de busca e salvamento e vigilância a qualquer hora do dia ou da noite.
Outro recurso é o Sistema AIS (Automatic Identification System), que permite a detecção e identificação automática de embarcações equipadas com transponders AIS, facilitando a discriminação entre alvos legítimos e possíveis ameaças. Essa funcionalidade é particularmente importante em operações de vigilância e patrulhamento, proporcionando uma conscientização situacional crítica em áreas de grande movimentação marítima, como é o caso do mar cabo-verdiano.
O King Air 360 ER tem ainda sistemas de comunicações militares altamente sofisticados, que garantem uma coordenação eficiente com outras agências de segurança marítima e centros de coordenação. A comunicação com o COSMAR (Centro de Operações de Segurança Marítima) e o MMCC (Multinational Maritime Coordination Centre) é facilitada por esses sistemas, assegurando que informações críticas sejam transmitidas em tempo real, permitindo uma resposta rápida e coordenada em situações de emergência ou ameaça.
Um investimento estratégico
“Encaramos a aquisição desta aeronave não como um custo, mas como um investimento estratégico em múltiplas áreas críticas para o país”, diz o Coronel Domingos Correia. “Este investimento traduz-se em benefícios significativos, especialmente na segurança dos cidadãos, ao permitir ao Estado a capacidade de realizar evacuações aeromédicas com maior rapidez e eficiência. Também fortalece a protecção dos nossos pescadores através do reforço das operações de busca e salvamento marítimo, e, de forma mais ampla, garante a segurança da nossa Zona Económica Exclusiva (ZEE), promovendo a vigilância e dissuasão de actividades ilícitas, como a pesca ilegal, poluição marítima e criminalidade transnacional”.
O aparelho foi adquirido pela ASA [Aeroportos e Segurança Aérea, empresa pública] pelo valor equivalente a 11,2 milhões de euros.
“O custo total de propriedade desta aeronave envolve não só o preço de aquisição, mas também os custos operacionais, que incluem equipamentos, assessórios, peças de reposição, e o investimento na formação e qualificação de pessoal técnico, como pilotos e mecânicos aeronáuticos. Além disso, é importante considerar a longa vida útil da aeronave, que permitirá um retorno contínuo ao longo de muitos anos”, explica o Coordenador da Comissão de Implementação da Aeronáutica Militar.
“Os benefícios operacionais proporcionados pela aeronave, como a maior eficiência nas missões, a redução no tempo de resposta e a versatilidade para realizar várias operações com a mesma plataforma, compensam amplamente os custos associados”, considera o militar. “A capacidade de realizar missões de evacuação médica, patrulhamento marítimo, vigilância e outras operações de serviço público com um único activo gera economias substanciais ao longo do tempo”, acrescenta.
O estudo de sustentabilidade do projecto concluiu que este é plenamente viável a longo prazo e demonstrou que, ao cumprir todas as missões programadas, o retorno sobre o investimento será alcançado, “tornando a aeronave não apenas um activo operacional estratégico, mas também uma escolha financeiramente responsável para Cabo Verde”, sublinha.
Operações com outras agências e forças de segurança
A integração do novo avião nas operações conjuntas é viabilizada pelos sistemas de missões e comunicação incorporados na aeronave, essenciais para garantir a coordenação e o controlo em tempo real entre as várias agências e/ou centros de segurança marítima. Esses sistemas estão alinhados com os requisitos de interoperabilidade definidos em documentos estratégicos, como o Africa’s Integrated Maritime Strategy 2050 (AIMS) e o Gulf of Guinea Maritime Security Strategy, que destacam a necessidade de integração operacional no domínio marítimo.
“Cabo Verde, pela sua localização geoestratégica no cruzamento de rotas marítimas internacionais e nas proximidades do Golfo da Guiné, é um ponto crucial para o combate ao tráfico ilícito, migração irregular e actividades de pesca ilegal, não declarada e não regulamentada”, explica o Coronel Domingos Correia. “A aeronave desempenhará um papel fundamental nas operações conjuntas de segurança marítima, integrando-se com as forças navais e as agências de segurança que operam nas águas jurisdicionais de Cabo Verde e na Zona G”. Isso inclui a colaboração com plataformas marítimas e aéreas internacionais, que operam no âmbito de acordos bilaterais ou multilaterais de segurança marítima, como integração na Arquitectura de Yaoundé, e os esforços de segurança marítima coordenados com os países da UE.
A interoperabilidade da aeronave com os sistemas de monitorização de tráfego marítimo e patrulhamento marítimo, como os geridos pelo Centro de Operações de Segurança Marítima (COSMAR) e o Centro Multinacional de Coordenação Marítima (MMCC), permitirá uma troca e/ou partilha de dados e informações, essenciais para o aumento substancial da segurança marítima na região.
A aeronave foi configurada para responder de maneira flexível às necessidades de vigilância, patrulhamento e monitorização marítima e combate a ameaças não-convencionais, maximizando a sua contribuição para a segurança coletiva nacional e regional.
“O reforço da cooperação internacional em matéria de segurança marítima também foi um ponto central nas decisões relacionadas ao equipamento da aeronave. O seu alinhamento com as normas e protocolos de comunicação estabelecidos por entidades como a International Maritime Organization (IMO) e a European Maritime Safety Agency (EMSA) garante que a aeronave possa interagir e operar em conjunto com outras forças que participam em missões de segurança marítima, sejam elas da NATO, da União Africana, ou de outras organizações regionais de defesa e segurança”, diz o Coronel Domingos Correia.
Em relação à entrega e operação, a nova aeronave deve chegar ainda antes do final de Outubro, após o que entrará numa fase de preparação final, incluindo a formação das equipas operacionais. “Este é um marco importante para o país, não apenas em termos de reforço da capacidade operacional da Guarda Costeira, mas também como um exemplo do que pode ser alcançado através de uma visão estratégica bem coordenada e comprometida com o desenvolvimento sustentável de Cabo Verde”, conclui o Coordenador da Comissão de Implementação da Aeronáutica Militar.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1193 de 9 de Outubro de 2024.