O golpe militar de 25 de Abril de 1974 foi recebido em Cabo Verde através da rádio, apanhando de surpresa os militares aí estacionados. Para uma parte dos militares, como conta Sandra Pires, na tese de doutoramento Os Militares Portugueses e a Descolonização em Cabo Verde, sobretudo os mais politizados, as medidas a adoptar eram claras: libertação dos presos políticos, extinção da PIDE e descolonização – na mente de cada um deles a paz e a liberdade era uma aspiração há muito desejada, não só para o povo português mas também para os povos sob domínio de Portugal.
O período a seguir ao 25 de Abril, em Cabo Verde, caracterizou-se por forte agitação política e social, como a documentação militar revela: “Os incidentes [...] são mais uma expressão de um estado de instabilidade social que se vem revelando em actos isolados ou colectivos de intimidações e provocação a elementos da população branca [...] e de desrespeito pela autoridade policial; é evidente que este estado que já fazia parte do processo político em curso nos territórios sob administração portuguesa, tornou-se mais concreto após a arrancada vitoriosa do 25 de Abril”. Agitação que era visível não apenas na população cabo-verdiana mas também no seio das FAP [Forças Armadas Portuguesas] locais.
Antes do acordo entre o Estado português e o PAIGC, a acção de muitos militares foi feita à margem das hierarquias militar e civil, essencialmente por falta de orientações de Lisboa, uma vez que até Dezembro estas não foram frequentes, nem muito claras. Como afirmou o então major Loureiro dos Santos [delegado da Junta de Salvação Nacional no arquipélago]: “Governei lendo os jornais e procurando adivinhar o que se pretendia em Lisboa, porque instruções não havia”.
Entre 25 de Abril e 30 de Dezembro de 1974, ou seja, em menos de oito meses, Cabo Verde conheceu três encarregados do governo, dois governadores e um alto-comissário, o que mostra quão precária foi a chefia do poder neste período.
Organização e missão do Movimento das Forças Armadas (MFA)
Além do controlo político e militar do território, o MFA e as Forças Armadas procuravam precaver a situação a nível social. Para o efeito, foram desenvolvidos contactos com o PAIGC, de dois tipos: existiram relações mais ou menos formais, como em São Vicente, em que membros do MFA tomaram a iniciativa de contactar elementos do PAIGC e num espírito de entreajuda desenvolveram aí as suas acções, através de contactos por iniciativa de altos quadros militares, como o comandante-militar, coronel Fernandes Caldeira que chegou a formar uma Comissão Nacional de Informação MFA-PAIGC, ou o “tenente Eurico, colocado no Sal” que terá avisado o PAIGC da visita sigilosa do general Spínola [como referido em Cabo Verde. Os Bastidores da Independência, de José Vicente Lopes]; havia também um canal secreto ou semiclandestino, inicialmente, entre o, então, primeiro-tenente Miguel Judas e posteriormente com o capitão Torres Mendes e um membro do PAIGC que fazia a ligação à cúpula do Partido ainda na Guiné.
Nas questões essenciais, relacionadas com a urgência na definição do processo de descolonização, a consequente independência e aceitação do PAIGC como único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, as opiniões eram unânimes. E estes foram o grande cavalo de batalha não só do MFA, mas também das FAP locais frente às autoridades em Lisboa.
No editorial do primeiro número do Boletim do MFA no arquipélago, afirma-se que em “Cabo Verde, o MFA tem, neste momento, um dever Histórico a cumprir: os interesses deste Povo têm de ser satisfeitos, doa a quem doer”.
A libertação dos presos políticos do Tarrafal
Quer na metrópole, quer nas colónias a libertação dos presos políticos e a extinção da PIDE são encaradas como actos simbólicos que marcaram o fim de um regime e o início da liberdade. Uma das primeiras medidas delineadas pelo MFA e FAP locais foi a libertação dos presos políticos do Campo de Chão Bom no Tarrafal, onde permaneciam detidos catorze cabo-verdianos, dois guineenses e cinquenta angolanos [o número de presos varia, entre os 66 e os 68, dependendo do autor].
Vários militares propuseram a imediata libertação de todos os presos, entretanto, na manhã do dia 30 de Abril, já o PAIGC tinha conhecimento da preparação da libertação dos detidos do Tarrafal, programada para o 1.º de Maio, tendo os militantes do Partido mobilizado a população – Amanhã toda a gente ao campo de concentração! – diziam. Foi a primeira acção concertada entre o MFA e elementos do PAIGC.
O fim da PIDE
As manifestações contra a PIDE/DGS, ou de caça aos Pides, ocorreram em dois momentos: um primeiro nos dias seguintes ao 25 de Abril, prolongando-se pelo mês seguinte, sem registo de detenções; e um segundo no início de Dezembro, das quais resultaram 72 presos, embora se chegue a afirmar que estes detidos pertenciam aos partidos rivais do PAIGC.
Os cartazes empunhados em algumas destas revoltas demonstram que não eram espontâneas, mas preparadas com o objectivo de intimidar: “Informadores: A vossa agonia vai ser lenta”.
O segundo momento de caça aos Pides terá sido impulsionado por um comício realizado no início de Dezembro, no qual o PAIGC apelou à prisão dos colaboradores da PIDE e dos seus agentes. Uma destas manifestações resultou na ocupação da Rádio Barlavento e do Grémio Literário do Mindelo (9 de Dezembro), cujos membros foram acusados de serem informadores.
Durante vários dias (de 14 a 16) a população apressou-se a prender “indiscriminadamente” vários indivíduos e a entregá-los às FAP (PM e MFA) e à PSP, causando uma situação: “de tal modo insuportável, intolerável e quase incontrolável que tivemos de tomar uma atitude de força e de repúdio pelo que estava a suceder perante elementos da Direcção do PAIGC que, apercebendo-se de que não permitiríamos a continuação daquele estado de coisas, teriam dado instruções aos seus militantes para suspenderem imediatamente este procedimento, como se verificou”.
O resultado foi a detenção, já referida, de 72 pessoas, sobretudo nas ilhas de Santiago e São Vicente, mas também em Santo Antão, Fogo, Brava e Sal. 14 foram libertados poucos dias depois, os restantes 58 foram transferidos para o Tarrafal [dados de arquivo relativos aos processos]. Na sua maioria, as capturas foram efectuadas sob a acusação de “provocadores em nome de grupos políticos não reconhecidos” à excepção de oito delas cuja justificação mencionava expressamente terem sido informadores da PIDE/DGS.
A prisão destes indivíduos causou certo desconforto, tanto entre as autoridades em Lisboa como em Cabo Verde, onde foram realizadas várias reuniões entre o Alto-Comissário e representantes do PAIGC [Memorando sobre o Tarrafal, elaborado pelo Alto Comissário de Cabo Verde].
Há estudiosos que afirmam que estas detenções visavam apenas travar a actividade das formações políticas contrárias ao PAIGC – o que de facto se confirma para a maior parte delas – uma vez que somente 19 destes detidos parecem ter sido ex-agentes ou informadores da PIDE/DGS e por essa razão enviados para Lisboa e entregues à Comissão de Extinção da PIDE/DGS.
Independência já
O PAIGC sai da clandestinidade através do Grupo de Acção Democrática de Cabo Verde e Guiné e da Frente Ampla de Resistência Nacional, que rejeitavam as propostas de Lisboa de federalismo e referendo, exigindo a independência do arquipélago e o reconhecimento do PAIGC, na linha da Resolução A/2918 (XXVII), de 14 de novembro de 1972, da Assembleia Geral da ONU, que referia o partido como “representante único e autêntico do povo da Guiné e Cabo Verde”.
Como as novidades sobre Cabo Verde não apareciam, ao contrário de outras colónias, a pressão no arquipélago torna-se constante. Esta imposição para a independência imediata exercia-se dentro e fora das FAP, o que constituía uma das preocupações centrais do MFA local e dos Comandos Militares.
Não era difícil prever que as manifestações atingiriam carácter mais violento, uma vez que os incorporados localmente no serviço militar eram confrontados com a propaganda aberta, escrita ou em comícios, em que civis e outros em nome do PAIGC os aliciavam à deserção, com armas, a actos de indisciplina e à luta armada, caso não fosse concedida a independência imediata [Telegrama do Comandante-Chefe ao Gabinete de Defesa Nacional]. Um exemplo deste problema ocorreu na altura em que se aproximava a data do Juramento da Bandeira de novos recrutas cabo-verdianos. Estes negaram-se a prestar qualquer juramento, apesar das tentativas de esclarecimento por parte dos seus oficiais.
Também a situação das tropas portuguesas estacionadas no arquipélago foi sendo agravada devido, fundamentalmente, à ausência de informações e de um programa político de descolonização para as ilhas, o que motivou, durante o mês de Novembro, inúmeras acções envolvendo as FAP: “Em Santiago, no dia 13, houve um levantamento do rancho sem justificação, no comando militar de Sotavento; no mesmo dia, à noite, soldados da companhia de Caçadores 1 e alguns elementos da Polícia Militar organizaram manifestação no Liceu percorrendo as ruas da cidade empunhando a bandeira nacional, dísticos e slogan: Queremos ir embora. Esta terra não é nossa, tendo sido secundados pelo povo com outro slogan: Deixai-os ir”.
A ausência de informações sobre as negociações, o “silêncio”, das autoridades de Lisboa sobre o processo de descolonização, não só não se entendia como era associado à tentativa de inviabilizar a independência.
Em meados de Dezembro a situação de indefinição mantinha-se. Perante isto, o Comandante-Chefe de Cabo Verde deixa um aviso afirmando que tomaria as decisões que julgasse convenientes mesmo que contrárias à linha de acção pretendida por Lisboa. Era o terceiro aviso das FAP em Cabo Verde enviado às autoridades, uma vez que eram elas quem sentia a pressão do PAIGC e da maioria da população junto das autoridades locais.
Mobilização popular e PAIGC
Como escreveu Teixeira de Sousa [no livro Entre duas bandeiras] “Tinha-se a impressão de que o Carnaval voltara mais ruidoso agora, com multidões desfilando, gritando, empunhando bandeiras, cartazes, outros símbolos, punhos erguidos, slogans em coro, cornetas, apitos, canzoada ladrando atrás. As fachadas dos muros encheram-se de dizeres: o fascismo não passará, abaixo o colonialismo, morte aos cachorros de dois pés, independência já, fora com os mondrongos, povo unido jamais será vencido, viva a unidade Cabo Verde-Guiné, viva o PAIGC. Desde o celebérrimo 25 de Abril o ambiente era esse, nas ruas, nos largos, até no campo de football”.
Num memorando de Junho, Loureiro dos Santos faz a seguinte análise: “Estima-se que a actual organização clandestina do PAIGC em Cabo Verde é incipiente, mas, caso o partido desloque quadros dos que possui na Guiné ou no estrangeiro para se envolverem na participação política aberta, tem capacidade de fazer aderir grandes massas populacionais”.
A partir de 25 de Agosto, o Partido reforça-se com a chegada do segundo grupo de militantes, vindos da Guiné-Bissau. Todas as células do PAIGC contaram com o apoio do MFA local e de parte das FAP em Cabo Verde.
Embora inicialmente a organização do PAIGC fosse débil, a sua implantação na clandestinidade colhia então os seus frutos. Logo a partir do início de Maio são quase diárias as acções políticas desenvolvidas em nome do Partido. Estas iniciativas, desenvolvidas em diversas ilhas, demonstram o envolvimento de um elevado número de militantes e simpatizantes na organização, poucos meses após o 25 de Abril, os quais conseguiam desenvolver em paralelo actividades culturais, comícios envolvendo milhares de pessoas, propaganda diversa – incluindo jornais de parede e cartazes –, reuniões com as autoridades portuguesas no território, actividades clandestinas de preparação para a eventualidade da luta armada, bem como a criação e organização das estruturas do Partido.
O governo português nunca chegou a reconhecer qualquer formação política como única representante do povo de Cabo Verde, mas no final de Outubro de 74, o MFA local “mandou um verdadeiro ultimato ao governo de Lisboa: caso o PAIGC não fosse reconhecido como legítimo representante do povo de Cabo Verde, chegando-se a um acordo para a independência dentro de poucos dias, seria o próprio MFA a efectuar localmente a transferência do poder, passando por cima do governo de Lisboa”.
Na próxima semana, o Acordo de Lisboa e o salvar da face do governo português
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1201 de 04 de Dezembro de 2024.