O fim do 25 de Abril em Cabo Verde (II parte)

PorJorge Montezinho,15 dez 2024 10:59

Pressionado internamente e externamente, o Estado português vê-se encostado à parede para acelerar o processo de independência de Cabo Verde. Não querendo parecer que simplesmente abandonou tudo, o ministro Almeida Santos senta-se com Pedro Pires para redigir o acordo que, como disse o governante português, permitiria “salvar a face” de Portugal, mesmo que para isso tivesse de abdicar do referendo popular, que o PAIGC não aceitava e que o governo português queria. Dezembro de 74 e a tomada da Rádio Barlavento marcou o fim do pluralismo com que sonhava o arquipélago e que foi vivido, por pouco tempo, a seguir à Revolução de Abril.

No dia 9 de Dezembro de 1974, centenas de populares, instigados por elementos do PAIGC, tomam de assalto a rádio Barlavento. Como escreveu José Fortes Lopes, no blog arrozcatum, “o objectivo era intimidatório e foi o primeiro teste para a instalação do sistema de partido único. O PIAGC neste dia esfregou as mãos de ‘contenteza’. Tinham reduzido a oposição a cinzas”.

De facto, o ataque ao órgão de comunicação privado, não foi um simples ‘afastem-se que agora mandamos nós’, no seguimento da ocupação da Rádio Barlavento e do Grémio Literário do Mindelo (9 de dezembro), os membros foram acusados de informadores e durante vários dias (de 14 a 16 do mesmo mês) a população apressou-se a prender “indiscriminadamente” vários indivíduos e a entregá-los às FAP (PM e MFA) e à PSP.

O resultado foi a detenção de 72 pessoas, sobretudo nas ilhas de Santiago e São Vicente, mas também em Santo Antão, Fogo, Brava e Sal, 14 dos quais foram libertados poucos dias depois, sendo os restantes 58 transferidos para a prisão do Tarrafal. Na sua maioria, as capturas foram efetuadas sob a acusação de “provocadores em nome de grupos políticos não reconhecidos” à exceção de oito delas cuja justificação mencionava expressamente terem sido informadores da PIDE/DGS, como refere Sandra Pires, na tese de doutoramento Os Militares Portugueses e a Descolonização em Cabo Verde.

Dos 58 internados na prisão do Tarrafal, foram libertados 39 até à data da independência, com excepção de 19 que foram transferidos para a prisão de Caxias, em 7 de junho, num avião militar, “para prosseguimento dos processos e por os mesmos conterem referências a possíveis ligações com a ex-PIDE/DGS […] à ordem da Comissão de Extinção da DGS/PL”. No entanto, os seus nomes não constam da Lista de agentes da PIDE/DGS, elaborada nesta data podendo significar que não se tratavam de agentes, mas de informadores.

Quanto aos outros, em 11 de junho de 1975, foram transferidos para o foro civil os processos relativos a 10 indivíduos: Juvenal Augusto Gomes Miranda, Jorge Henrique Almeida Junior, Miguel Lopes; Orlando Lopes, Alexandre Pires, Gabriel Rodrigues Miranda, Venâncio de Andrade, João Caetano da Silva, Julio Pereira da Lomba Reverdes, João Tolentino Silva Andrade. Na mesma data foi mandado arquivar outro processo relativo a Arnaldo Gomes Barbosa. Outos onze processos transitaram para os Tribunais Judiciais, por extinção do Tribunal Militar: Jorge Alberto de Freitas Vitória, Rufino José da Silva, Francisco Xavier St‘ Aubyn Mascarenhas, Adalberto Augusto Gomes dos Santos, Joaquim Francisco Silva, Aires Leitão da Graça, António Gumercindo Ribas Chantre, Tomás Ferreira Benrós, Ângelo Jesus de Fátima Lima, Clarimundo Silva Delgado, Manuel Rosário da Silva. Facilmente se identificam alguns destes nomes como afetos a partidos cabo-verdianos sem ligação ao PAIGC, como Ângelo Lima, Aires Leitão da Graça e António Gumercindo Ribas Chantre.

Como refere José Fortes Lopes, “a tomada da Rádio Barlavento foi, no imaginário do povo do PAIGC, equivalente à tomada do Palácio do Inverno na Rússia em 1917, sem o que o trajecto de Cabo Verde seria diferente e teríamos, com muita probabilidade, outra versão do 5 de Julho: a independência, mas sem que nenhum partido assumisse o protagonismo hegemónico da história e o poder total”.

E continua, “a tomada da Rádio Barlavento reveste na narrativa do PAIGC, o significado de um acto Criador, um marco simbólico na história de Cabo Verde: representa o fim do colonialismo e o início da revolução cabo-verdiana em que não teria lugar quem se opôs e se opunha ao regime que se considerava de essência genuinamente popular. Para os revolucionários, pelo menos os que ainda acreditam na pureza das revoluções, a Rádio Barlavento era um refúgio dos representantes do ‘ancien’ regime, aristocratas e anti-independentistas reaccionários (mas que na verdade discordavam da Unidade da Guiné e Cabo Verde e do facto do PAIGC pretender ser Luz e Guia do Povo), que deveriam ser varridos do panorama político e intelectual de Cabo Verde, para poder emergir um país novo. (…) Com a tomada da Radio Barlavento, foi suspenso o pluralismo que se iniciava em Abril de 1974.”.

Salvar a face

Com excepção de pequenas e isoladas acções de sabotagem, não se verificou qualquer conflito armado de grande escala em Cabo Verde durante o período da guerra colonial, mas os independentistas cabo-verdianos eram parte integrante da luta de libertação na Guiné que viam como única a luta para a libertação dos dois territórios.

Nos acordos de Argel, 26 de Agosto de 1974, dois artigos (dos nove) foram dedicados a Cabo Verde, reconhecendo Portugal o “direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência”, apesar das reticências de alguns sectores portugueses em abrir o precedente de conceder independência a territórios sem luta armada ou pressão internacional forte (o próprio Spínola, no discurso de promulgação da Lei n.º 7/74, apenas referiu Guiné, Angola e Moçambique).

Apesar de em Cabo Verde não ter havido guerra, a pressão foi idêntica para descolonizar, com o MFA a pôr-se ao lado dos independentistas, como lembrou Almeida Santos, em entrevista ao Diário de Notícias. O Ministro da Coordenação Interterritorial que enfrentou, no Sal e, principalmente, na Praia, duas das mais duras manifestações que aconteceram contra o Estado português.

“Era contra o Spínola. Quando chegámos à ilha do Sal, estava no aeroporto um grupo de 15 jovens aos berros: ‘Independência ou morte’. A insultar: ‘Fascista, fascista, independência ou morte’. O Spínola ficou fulo, fascista ele nunca foi. E soube que esses jovens tinham vindo no avião que tinha transportado o próprio governador. Claro que o governador ficou ali logo demitido. O Spínola deu ordem para que fosse demitido. Era para ir à Cidade da Praia e eu disse-lhe: ‘Olhe, senhor Presidente, se isto é assim aqui, o que será na Cidade da Praia? Vou eu, mas o senhor não vai’. O Spínola caiu em si. O Firmino Miguel também me apoiou e ele não foi à Cidade da Praia”.

“Quando cheguei, chovia a cântaros”, continuou Almeida Santos na entrevista ao DN. “Uma coisa diluviana. Quando subimos a rampa para chegar ao topo da cidade, havia uma manifestação de milhares e milhares de pessoas, com jovens, em excitação brutal. Queriam virar o carro até que se aperceberam que o Spínola não ia dentro do carro. Abri a janela do carro para verem que ele não ia lá. Felizmente, quando viram que o Spínola não ia, abrandaram um pouco, mas aquele quilómetro entre o início da subida e o Palácio do Governo foram dramáticos”.

Nesse mesmo mês de Setembro, Spínola demite-se da presidência. A saída de Spínola foi aliás determinante para a clarificação da situação do território. Em Outubro e Novembro foram realizadas reuniões em Lisboa (Almeida Santos e Pedro Pires representaram, respectivamente, Portugal e o PAIGC) e, pese embora não tenha sido formalizado um acordo, as linhas gerais do entendimento alcançado foram apresentadas por Almeida Santos no início de Dezembro, num discurso perante a Assembleia Geral das Nações Unidas.

Os bastidores dessas reuniões foram revelados igualmente por Almeida Santos. “Os militares fizeram pressão para que houvesse descolonização rápida. Também houve um ultimato de lá para cá, a dar cinco ou oito dias para o Governo português entregar o poder ao PAIGC, sob pena de entregarem eles lá. Ficámos de mãos atadas. Não podíamos julgar centenas de militares. Lembrei-me: ‘Vou chamar o Pedro Pires’. Que era quem andava lá a fazer a propaganda revolucionária. Chamei-o e disse-lhe: ‘Você conhece este telegrama?’ E ele: ‘Conheço.’ E eu: ‘Então, agora?’ Ele diz: ‘Os senhores perderam, nós ganhámos.’ E eu perguntei: ‘Vocês ganharam o quê? Que guerra é que você ganhou em Cabo Verde? Quantos mortos é que tem lá?’ Ele ficou um bocado chateado e diz-me: ‘Você é que me chamou, tem que me dizer o que quer.’ E eu disse: ‘O que quero é que você seja mais inteligente do que infelizmente alguns dos nossos moços que estão lá em Cabo Verde e que aceite uma consulta popular. Vocês ganham a consulta popular por 90 por cento e nós salvamos a face.’ E ele disse: ‘O que é que ganho com isso?’ Respondi: ‘Olhe, ganha a legitimação democrática do novo poder, nunca mais será discutido. Se você o recebe da mão de militares, toda a vida será discutido.’ Ele disse: ‘Eu já percebi, estou de acordo, mas tenho de ir falar com os meus colegas do PAIGC e dentro de dois dias estou cá’. Ele foi, veio, quando chegou disse-me que estavam de acordo. Eu disse: ‘Então sente-se aí.’ Comecei a redigir o acordo, eu e ele, praticamente fi-lo sozinho, mas ele lá discutia uma palavra ou outra. E depois telefonei ao Costa Gomes a pedir uma reunião urgente com Mário Soares e Melo Antunes, que tinha novidades. Chegámos lá, assinámos o acordo e ficou descolonizado Cabo Verde. Fiz uma lei eleitoral. Houve uma grande participação da população. Eles ganharam. Elaboraram uma Constituição. Acabou. Salvámos a face”.

Este acordo nunca chegou a ser publicado no Diário do Governo, provavelmente porque antes da sua formalização já tinha sido publicado o Estatuto Orgânico de Cabo Verde para o período de transição (Lei n.º 13/74, de 17 de dezembro), que acolhia, na quase totalidade, o texto do acordo.

PAIGC assume o poder

A inexistência de luta armada de libertação nas ilhas levaria a supor uma transição de poder rápida e sem turbulências, ainda assim, a conclusão das negociações arrastar-se-ia até Dezembro, devido à natureza do “problema”, “tão delicado no plano internacional”, que, como era reconhecido num relatório elaborado pelo MFA local, obrigava à necessidade “de compreender a demora do Governo Português e do PAIGC, em chegarem a acordo, bem como certas hesitações das autoridades em Cabo Verde, pois ainda não estava superiormente decidida a maneira de descolonizar o arquipélago”.

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Múltiplas e distintas políticas de descolonização arrastaram o processo e diversas condicionantes levaram a que os actores unissem esforços em torno de apenas duas políticas divergentes: a do general Spínola que tencionava consultar a população através da realização de um referendo, confiando que se efetivasse uma solução federativa e a da Comissão Coordenadora do MFA que considerava que “só quem tinha feito a guerra tinha condições para negociar a paz”.

Ao iniciar as negociações, o PAIGC procura estabelecer acordos para a Guiné e Cabo Verde e impõe, como condições para o cessar-fogo, o reconhecimento do direito à independência dos restantes territórios africanos. Contudo, o governo português reconhece o direito à autodeterminação e independência de Cabo Verde, mas não estabelece quaisquer cláusulas para uma descolonização efectiva das ilhas, como aconteceu com a Guiné-Bissau, nem aceita reconhecer ali a independência dos restantes territórios. Almeida Santos considera a inclusão de Cabo Verde no acordo de Argel o preço a pagar por Portugal, por chegar vencido às conversações, apesar de tal reconhecimento já constar da lei 7/74, cuja única novidade havia sido a inclusão das referências às resoluções da ONU e OUA. Mas ao reconhecer as referidas resoluções o governo português admitia, também, além do direito à independência, o PAIGC como representante do povo cabo-verdiano, ainda que indirectamente: ao contrário dos procedimentos adoptados nos restantes territórios, como em S. Tomé e Príncipe, o governo português nunca chegou a reconhecer qualquer formação política como única representante do povo de Cabo Verde.

Não há dúvida que as autoridades de Lisboa pretendiam arrastar o processo conforme se desenrolassem as pressões internacionais. O objetivo era, através da realização de um referendo, incluir no governo local partidos que não tinham expressão no terreno, mas que eram favoráveis a uma ligação a Portugal ou, até, a inviabilizar a independência. Só através do referendo, poderiam vir a obter alguma legitimidade internacional, posição que é tentada até depois do acordo/estatuto. Em todo o caso, quer o PAIGC quer os militares no terreno não iriam viabilizar tal pretensão.

A pressão e o envolvimento político das Forças Armadas Portuguesas em Cabo Verde, favorável ao PAIGC, terão levado o brigadeiro Vasco Gonçalves, primeiro-ministro, a propor o então comodoro Almeida D‘Eça para alto-comissário e comandante-chefe das Forças Armadas no arquipélago.

Como missão, o alto-comissário teria de criar condições para a realização de uma consulta popular com o propósito de eleger uma assembleia constituinte, e não para decidir o futuro político das ilhas como havia sido frequentemente defendido. Ainda assim, ficou clara a necessidade de “evitar que o PAIGC [fosse] o único partido a apresentar-se às urnas dando-se possibilidades aos demais movimentos de se exprimirem”. Perante tal exigência, Almeida D‘Eça alertou para que as “nossas tropas só muito dificilmente aceitarão que a solução encontrada não seja um entendimento com o PAIGC”. Porém, Almeida Santos insiste para que se evite o reconhecimento de partidos, e sugere que grupos de cem pessoas apresentassem candidatos às eleições.

As eleições realizam-se a 30 de Junho de 1975, tendo sido eleitos todos os 56 candidatos do PAIGC (único partido a concorrer), e a independência foi declarada no dia 5 de Julho desse ano.

Na próxima semana: O MFA e o PAIGC

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1202 de 11 de Dezembro de 2024.

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Autoria:Jorge Montezinho,15 dez 2024 10:59

Editado porSheilla Ribeiro  em  15 dez 2024 21:20

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