O fim do 25 de Abril em Cabo Verde (III parte)

PorJorge Montezinho,20 dez 2024 9:46

Dia 19 de Dezembro de 1974, há 50 anos, era assinado o Acordo de Lisboa. Antes, depois de Abril, a neutralização e a repressão políticas dos adversários do PAIGC, no arquipélago, ocorrem por iniciativa do partido e de populares mobilizados pelo mesmo. Repressão que contou com a conivência política e táctica e o apoio logístico do Movimento das Forças Armadas. É o MFA em Cabo Verde, que assume a responsabilidade política e a direcção operacional da prisão dos adversários políticos do PAIGC e que pressiona Lisboa para que o processo de entrega de poder seja acelerado.

Começou tudo do lado de lá. A 1 de Junho de 1974, na Guiné, uma reunião de cerca e 800 militares do MFA reconhece a “legitimidade exclusiva do PAIGC” considerando que os outros grupos políticos que entretanto tinha surgido no território careciam de legitimidade.

Mais tarde, num artigo – O 25 de Abril e os movimentos de libertação – o MFA de Cabo Verde diz “reconhecer a importância dos movimentos de libertação que combatendo o colonialismo auxiliaram, irreversivelmente, a luta antifascista do povo português”.

Num outro artigo – Estudo Sócio-político – o MFA de Cabo Verde ataca as outras forças políticas. A UDC, lê-se, “recompôs de modo rápido e oportunista (…) reencontrou de forma inesperada, um patrono que se revelou saudosamente federalista”. Já a UPICV, refere o mesmo artigo, “na sua campanha não conseguiu ultrapassar o âmbito doméstico dos seus mentores”. Em conclusão, o MFA declara: “não vemos outra solução que não seja o de reconhecimento do PAIGC como legitimo representante da população de Cabo Verde”.

Avançamos para o período de vigência do Governo de Transição, sob a presidência do almirante Almeida D‘Eça. No discurso da tomada de posse, disse: “Os militares têm um papel importante a desempenhar num processo de descolonização. (...) Exorto-os, portanto neste primeiro contacto com terras cabo-verdianas, para que colaborem activamente na tarefa empreendida, mantendo-se disciplinados e ordeiros (…) Sei bem que é difícil a tarefa que está à nossa frente, mas espero que, com a compreensão do povo cabo-verdiano, a colaboração dos seus elementos mais representativos e o apoio das forças militares e militarizadas, o Governo de Transição a que terei a honra de presidir, possa levar a bom termo a tarefa da descolonização que lhe compete, num ambiente de ordem e dignidade”.

Ou seja, o alto-comissário evidencia um aspecto relevante: a “colaboração dos (...) elementos mais representativos” do povo cabo-verdiano, uma referência ao PAIGC dadas as conversações bilaterais então existentes. Isto apaziguava quer o PAIGC quer as próprias FAP (Forças Armadas Portuguesas): não restavam dúvidas de que o objectivo final seria a independência do território, sob a égide dos militares, considerando o PAIGC como legítimo representante do povo.

O Acordo de Lisboa

Na sequência do Acordo de Argel, com os acontecimentos que tiveram lugar em Portugal e em Cabo Verde sempre favoráveis ao projecto político do PAIGC, é assinado o Acordo de Lisboa sobre a Independência de Cabo Verde, também conhecido por Acordo de Independência.

O Acordo não foi publicado no Diário do Governo de Portugal. A sua validade formal dependia da homologação do Presidente da República Portuguesas e do Secretário-geral do PAIGC, o que não aconteceu.

O Acordo continha 19 números, entre os quais a criação do Governo de Transição de Cabo Verde, a composição do mesmo e a eleição de uma assembleia representativa do povo de Cabo Verde, que, dotada de poderes soberanos e constituintes, teria por função declarar a independência do Estado de Cabo Verde e elaborar a futura Constituição.

As novidades do Acordo constavam dos números 1º, 2º, 9º e 12º dos quais se salienta: (i) a reafirmação do direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência, (ii) o acordo do Governo Português e do PAIGC que, conscientes da necessidade de assegurarem, nas melhores condições possíveis, a transferência de poderes para o futuro Estado Independente de Cabo Verde, de estabelecer o esquema e o calendário do respectivo processo de descolonização nos termos que vierem a ser negociados; (iii) a competência do Presidente da República Portuguesa para escolher e nomear além do Alto Comissário, dois Ministros do Governo de Transição, sendo os restantes três por ele nomeados segundo a indicação do PAIGC.

A instabilidade dos militares portugueses

Certos aspectos exigidos pelo Governo português, e aceites pelo PAIGC, procuravam afastar as negociações do conhecimento público: 1.º a não publicação de um comunicado conjunto sobre a descolonização em Cabo Verde; 2.º a não assinatura de qualquer documento, (embora estivessem em negociações oficiais); 3.º a abstenção de declarações à imprensa sobre a essência das negociações.

Esta falta de informações oficiais sobre as conversações causava “instabilidade psicológica” nas Forças Armadas portuguesas estacionadas no arquipélago que viam o processo arrastar-se sem resolução à vista. Só no dia 13 de Dezembro de 1974 o Comando Chefe de Cabo Verde e os comandos militares das FAP recebem um telegrama do CEMGFA com cópia da Lei 10/74 e alguns pontos relativos ao projecto de Estatuto Orgânico.

Estava expresso que o processo de descolonização assentava no direito do povo à autodeterminação e independência e já se previa que a data da independência viesse a recair no “3.º trimestre de 1975”. À semelhança do discurso que viria a ser produzido pelo Alto-Comissário, também o CEMGFA salientava a importância das FAP no território para a “necessidade assegurar realização eleições livres garantir ordem e segurança, como condição base execução do programa descolonização”.

O não reconhecimento do PAIGC pelo Governo português, a ausência de comunicado conjunto após as negociações, a atribuição de pastas ministeriais apenas a três representantes do PAIGC no Governo de Transição e a acumulação de funções de primeiro-ministro nas mãos do Alto-Comissário, levantaram desconfianças não só ao PAIGC mas também ao MFA local, que publicou no Novo Jornal de Cabo Verde em 26 de Dezembro de 1974, duras críticas ao Governo Provisório:

“Até agora verifica-se um completo silêncio, por parte das autoridades portuguesas, em relação à definição do programa de descolonização de Cabo Verde e têm sido feitas declarações por entidades responsáveis que evidenciam desconhecimento sobre a situação e realidade política do Arquipélago. Tais declarações comprometem o Governo Provisório e podem prejudicar tentativas para encontrar soluções justas para o processo de descolonização neste território como é, por exemplo, de alusões a um possível referendo em moldes formalmente democráticos, relegando para esquecimento total a existência de estruturas coloniais intactas que continuam a controlar e cujo saneamento, a nível geral, não foi executado. Nunca um tirano perdeu um referendo!...” [Estudo Sócio-político, Novo Jornal de Cabo Verde, n.º 20, Ano I]

Na tomada de posse do Governo de Transição, o Encarregado de Governo cessante, coronel Fernandes Caldeira, frisou a importância do PAIGC no território: “Julgo que é acertado, nesta cerimónia informar que […] nenhum outro partido político procurou contactar comigo directamente para qualquer efeito, senão o PAIGC”. Já o Alto-Comissário realçou a nova fase no capítulo da descolonização, animada “de um espírito renovador, progressivo e humanista”, salientou a importância dos militares neste processo que juntamente com as forças militarizadas deveriam “assegurar que os legítimos direitos dos cidadãos sejam salvaguardados e defendidos” e avisou que necessitavam “de ser isentos e apartidários, afirmando-se como garantia da evolução democrática em que estamos lançados, depois de largos anos de obscurantismo político”.

A resposta do MFA ao Alto-Comissário não se fez esperar e no mesmo número do jornal deixou claro que não tolerariam outra opção que não fosse o reconhecimento do PAIGC: “apregoa-se a liberdade de actuação partidária que mais não é do que um passaporte para todos os oportunistas e falsos democratas desenvolverem as suas actividades divisionistas, de calunia e de dominação (…) Não vemos outra solução que não seja o reconhecimento do PAIGC como o legítimo representante da população de Cabo Verde (…)”.

Segundo o MFA, a posição de isenção política que deveria nortear a intervenção das FAP no processo de descolonização não podia “alhear-se desta realidade, sob pena de atraiçoar[em] o espírito do Programa do MFA, na obtenção de uma solução política, justa e legítima, para o problema colonial em Cabo Verde”, e ao contrário do PAIGC nenhum dos restantes partidos previa a imediata independência do território.

Reestruturação e nova missão do MFA/FAP

O acordo entre Portugal e o PAIGC trouxe uma nova dinâmica ao processo de transição em Cabo Verde e embora tenha assegurado alguma estabilidade nas relações entre o Governo de Lisboa e o PAIGC, nem assim os militares do MFA se tornaram menos vigilantes.

Decorrente da tentativa do golpe contrarrevolucionário, a 11 de Março de 75 em Portugal, e devido às ameaças latentes que pairavam sobre o arquipélago o MFA local decide voltar a dinamizar a sua acção em prol de uma descolonização favorável ao PAIGC. A partir desta altura, assiste-se a um controlo mais apertado das FAP no território, por exemplo, sobre os militares portugueses que chegavam de Lisboa.

As novas Forças Armadas e militarizadas cabo-verdianas

A Comissão Militar Mista (CMM) foi criada pelo Conselho de Ministros do Governo de Transição com o objectivo de coordenar todos os assuntos relacionados com as futuras Forças Armadas Revolucionárias do Povo de Cabo Verde (FARP), tendo entrado em funções em 10 de Março de 1975. Era composta por seis elementos das FAP e quatro do PAIGC (FARP).

A CMM tratava de todos os assuntos relacionados com as duas instituições militares, a portuguesa e a cabo-verdiana, desde: “problemas relacionados com a preparação das FARP, designadamente os aspectos de instrução e equipamento”; “Retracção do dispositivo e retirada das N[ossas] F[orças]; Evacuação de materiais e equipamento para Portugal; Instrução e equipamento da PSPCV; Instrução das Milícias Populares; Actuação coordenada das NF e das FARP na fase final”.

Na primeira reunião os comandantes do PAIGC apresentaram as estimativas de meios materiais e efectivos de deveriam compor as FARP. O “efectivo inicial a instruir seria da ordem dos 600 homens: 12 Pelotões tipo Inf[antaria]; 2 Pelotões de Art[ilharia] tipo defesa de costa; 2 Pelotões tipo Fuzileiros; 2 Pelotões de Eng[enharia] tipo Sapadores; Algum pessoal de serviços, a indicar oportunamente; Algumas unidades navais e aéreas, designadamente: 3 ou 4 lanchas pequenas; 3 ou 4 lanchas lança torpedos; 3 aviões tipo DC 3; 3 avionetas; 1 P2V5”.

Para os elementos portugueses, estes meios e instrução de número tão elevado de indivíduos eram irrealistas. Após algumas reuniões ficou estabelecida a instrução de doze pelotões de infantaria “num total de 360 homens, recebendo 4 a 6 destes Pel[otões] um treino rudimentar de actuação com base em botes de borracha tipo ZEBRO”.

Conforme o desejo dos delegados do PAIGC foi possível deslocar a Cabo Verde uma equipa de instrutores composta por um capitão, seis alferes instrutores e doze furriéis monitores, tendo formado os doze pelotões de infantaria, aos quais se juntaram “alguns assessores do PAIGC, que tomaram conta dos assuntos de carácter interno e da doutrinação política”. A formação destes pelotões foi ministrada em diversos Centros de Instrução: no Tarrafal, em Santa Catarina (Santiago), no Morro Branco (S. Vicente), em Santo Antão e na Boavista, entre o início de Maio e final de Junho de 1975. A preparação militar destas forças mereceu “as melhores referências dos elementos do PAIGC, que, inclusivamente, a consideraram superior à recebida em outros países”.

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A hipótese de integração de elementos cabo-verdianos graduados que compunham as FAP no território não teve o interesse do PAIGC. Todavia, foram aproveitados e instruídos para integrarem as FARP elementos que haviam pertencido ao exército português e que tinham recusado jurar bandeira e abandonado as fileiras.

Um dos temas também discutido na Comissão Militar Mista foi a instrução das Milícias Populares. O general Amílcar Fernando Morgado, chefe dos gabinetes do Comandante-Chefe das Forças Armadas e do Alto-Comissário do Governo de Transição, informou que o PAIGC “sem dar conhecimento prévio às autoridades portuguesas, [tinha organizado] – milícias populares”.

O assunto foi discutido de modo informal, tendo o PAIGC referido que “não se tratava propriamente de uma força estruturada de milícias, mas apenas do enquadramento e treino de militantes de base que espontaneamente tinham surgido em várias ilhas e que se tinham disposto a colaborar na segurança de reuniões, de instalações e dos principais dirigentes do Partido, ameaçados por acções violentas por parte de elementos reaccionários e provocadores pertencentes ou simpatizantes de pretensos partidos políticos não legalizados e sem representatividade”.

A acção do MFA e das FAP

Como verificado nos artigos anteriores, a inexistência de guerra em Cabo Verde fazia prever uma transição tranquila para a independência. Contudo, durante a presidência do general António de Spínola, as suas ideias federalistas dificultaram o processo. Este aspecto foi determinante nos processos de decisão dos militares portugueses expedicionários em Cabo Verde e das suas recém-criadas organizações políticas, criando constantes focos de tensão.

A resolução destes conflitos, que necessitavam de respostas céleres, foi assumida pelos responsáveis militares em estreita relação com o PAIGC. Ou seja, as chefias militares e outros oficiais das FAP e, por consequência, os seus subordinados, apesar de alguns não se identificarem com o MFA, agiram como actores políticos mesmo que as suas decisões pudessem colidir com as orientações de Lisboa, como chegou a acontecer.

As versões originais do Programa do MFA e as condições no terreno impeliram os militares no território para apoiar, e pressionar, uma transição de poder rápida para o movimento internacionalmente reconhecido, o PAIGC, apesar de todas as manobras políticas internas e externas em sentido contrário.

As formas de pressão não se limitaram aos membros mais politizados do MFA, mas às FAP locais e fizeram sentir-se de variadas formas: plenários, abaixo-assinados, proibição de manifestações, frequentes telegramas enviados para Lisboa de conteúdo diverso (entre os quais os avisos sobre a iminência de luta armada no território), substituição de um governador, execução de ordens contrárias às indicadas pelas autoridades de Lisboa e até um ultimato pressionando para o reconhecimento do PAIGC como único e legítimo representante do povo de Cabo Verde e ameaçando que seria o MFA a efectuar localmente a transferência do poder se as autoridades de Lisboa não chegassem a acordo com aquele partido em poucos dias.

As FAP funcionaram também como poder paralelo na medida em que desenvolviam reuniões clandestinas ou semiclandestinas com membros do PAIGC para a resolução dos mais variados problemas que foram surgindo.

Por fim, embora a instituição militar pretenda ser apolítica, as FAP, no período compreendido entre 25 de Abril de 1974 e 5 de julho de 1975, participaram activamente na vida política do arquipélago, por um lado, tomando e executando decisões políticas em Cabo Verde por vezes contrárias às ordens emanadas pelas autoridades civis de Lisboa e, por outro lado, providenciando, por diferentes meios, a formação cívica elementar aos militares portugueses menos politizados

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Presidente reconhece exageros, mas não apresenta desculpas

Quando se assinalam os 50 anos do Acordo de Lisboa, o Presidente da República, José Maria Neves, homenageia, esta quinta-feira, os signatários. A cerimónia terá lugar às 11h00, na Sala Beijing do Palácio do Plateau. Às 15h30, e ainda no quadro das celebrações, a Presidência da República promove, numa iniciativa conjunta com o Instituto Pedro Pires e em parceria com a Universidade de Cabo Verde, uma conferência intitulada “O Acordo de Lisboa, o Contexto Político da Época e a Construção das Bases para um Cabo Verde Independente”, no Campus da UNICV, em Palmarejo Grande.

Num texto publicado no facebook, o Chefe de Estado cabo-verdiano recordou que “nos dias 14, 15 e 16 de Dezembro de 1974, o Movimento das Forças Armadas - Cabo Verde, em estreita articulação com os principais dirigentes do PAIGC presentes, na altura, nas ilhas, prendem, num contexto revolucionário, 70 pessoas tidas como opositoras da independência (…). Posteriormente, feitas as averiguações, foram sendo gradualmente libertados”.

“Esses factos devem ser analisados à luz do quadro revolucionário da época. Nesses momentos, há sempre excessos e erros que são cometidos e que devem ser devidamente contextualizados”, continua o Presidente da República. “Hoje, 50 anos depois, devemos anotar esses factos históricos – a história é o que é – interpretá-los e dar garantias em como, em tempos de liberdade e de democracia, não haverá excessos e estarão assegurados os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos”.

“Enquanto Presidente da República, presto a minha singela homenagem a todos os que terão sido presos injustamente, mesmo em períodos radicalmente revolucionários”, conclui José Maria Neves. 

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Fontes:

Antero Monteiro Fernandes, Guiné-Bissau e Cabo Verde: Da unidade à separação;

José Luís Hopffer Almada, Das tragédias históricas do povo cabo-verdiano e da saga da sua constituição e da sua consolidação como nação crioula soberana;

Ludmila Cardoso Pereira, Cabo Verde: Da descolonização à abertura democrática

Sandra Pires, Os Militares Portugueses e a Descolonização em Cabo Verde.


Leia também: 

- O fim do 25 de Abril em Cabo Verde - I Parte

O fim do 25 de Abril em Cabo Verde - II Parte

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1203 de 18 de Dezembro de 2024.

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Autoria:Jorge Montezinho,20 dez 2024 9:46

Editado porSara Almeida  em  20 dez 2024 18:23

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