Minuta aprovada em Conselho de Ministros é diferente do contrato assinado

PorAndré Amaral,9 ago 2025 9:25

Há discrepâncias entre a minuta do contrato de concessão do transporte marítimo interilhas entre o Estado e a CV Interilhas aprovado em Conselho de Ministros e aquele que foi assinado publicamente. As alterações foram feitas sem que José Gonçalves, ministro dos Transportes na altura, tivesse conhecimento. Empresa anunciou que vai utilizar verba da indemnização para comprar navios que já estão ao seu serviço e um navio novo. Polémica foi tema central no debate sobre o Estado da Nação.

O ministro dos Transportes à data da assinatura do contrato de concessão do serviço de transporte marítimo interilhas com a CV Interilhas, José Gonçalves, não teve conhecimento das alterações ao contrato, lê-se na declaração de voto vencido assinada por Simão Monteiro, Juiz-Árbitro nomeado pelo Estado no processo de arbitragem entre o Estado e a empresa.

“Resulta provado dos autos, quer do depoimento do ministro dos Transportes, Dr. José Gonçalves, quer do da testemunha José Fortes, que este membro do Governo não tinha conhecimento das discrepâncias entre a minuta e o contrato de concessão, incluindo da cláusula relativa a 10% das receitas anuais de exploração, como uma nova componente da indemnização compensatória, e que só veio a tomar conhecimento delas, mais tarde, na altura do envio pela Demandante da primeira factura para efeitos do pagamento da indemnização compensatória e então mandou averiguar as razões dessas discrepâncias”, explica a declaração de voto vencido a que o Expresso das Ilhas teve acesso.

Aliás, no documento é acrescentado que ficou provado que José Gonçalves, “quando assinou o contrato de concessão, estava convencido de que assinava o texto do contrato de concessão nos exactos termos constantes da sua minuta que ele próprio havia lido e apresentado à aprovação do Conselho de Ministros, que ocorreu a 24 de Janeiro de 2019”.

Na mesma declaração é igualmente dito que ficou provado que “após a aprovação de minuta, ocorreram negociações no edifício do Ministério das Finanças, durante as quais foram introduzidas todas as alterações que vieram a constar do contrato de concessão assinado e que não constavam da minuta aprovada pelo Conselho de Ministros, negociações essas que este Tribunal Arbitral, e bem, demonstrou não deveriam ter ocorrido”.

Na declaração de voto, Simão Monteiro refere que as discrepâncias em questão, nomeadamente a inclusão da cláusula relativa a 10% das receitas anuais como uma nova componente da indemnização compensatória, “não foram abrangidas pela vontade do então ministro dos Transportes no momento da assinatura do contrato”. E nem deveriam sê-lo porque, como se lê no documento “nem sequer se pode argumentar que aquele membro do Governo deveria ter lido o contrato no acto da assinatura porque, a tanto não lhe era exigível, primeiro, porque, não estando previsto no Caderno de Encargos preparado pelo seu Gabinete uma fase de negociações, não tendo conhecimento das alterações negociadas e tendo ele lido antes a minuta que apresentou à aprovação do Conselho de Ministros, é natural que se limite a assinar o contrato, no contexto de um acto público protocolar, formal e solene”.

Simão Monteiro argumenta que a decisão do Tribunal deveria reconhecer estar-se perante “vício da falta da vontade negocial” (ou seja, falta de intenção jurídica válida ao assinar), uma vez que José Gonçalves não tinha conhecimento das alterações feitas ao contrato de concessão.

Assim, defende, deveria ter sido declarada a "inexistência jurídica de todas as cláusulas que foram negociadas” e adicionadas após a aprovação da minuta inicial do contrato pelo Conselho de Ministros. Isso inclui, conforme aponta, a cláusula que estabelece o pagamento de uma indemnização compensatória de 10% das receitas de exploração à concessionária.

Consequentemente, todos os pedidos da CV INTERILHAS que dependiam da validade jurídica dessas cláusulas com "discrepâncias" (as que o Ministro não tinha intenção de assinar) deveriam ter sido negados pelo Tribunal. O jurista salienta ainda que a "inexistência jurídica" de um acto (como uma cláusula contratual) pode ser invocada a qualquer momento e que o tribunal deve reconhecê-la mesmo que não seja directamente argumentada pelas partes ("conhecimento oficioso"), de acordo com a "doutrina civilista pacífica" (ou seja, a jurisprudência e teoria legal bem estabelecidas no direito civil).

Os argumentos apresentados por este árbitro não foram aceites pelo Tribunal que, decidiu contra a declaração de invalidade, até porque os contratos foram consolidados no sistema jurídico cabo-verdiano, após a caducidade do direito de acção.

Exclusividade

Uma das questões chave para o Tribunal foi determinar se a atribuição de uma nova licença à Naviera-Armas, que tinha cancelado actividades entre Setembro de 2021 e Março de 2022, por parte do Estado violou o regime de exclusividade estabelecido no contrato.

Apesar de a concessionária alegar a violação da exclusividade, o Tribunal Arbitral concluiu que o Estado de Cabo Verde tinha permissão para permitir o novo registo e atribuir uma licença que se sobrepunha ao direito de exclusivo do concessionário.

Contudo, na sua Decisão, o Tribunal Arbitral condenou o Estado de Cabo Verde ao pagamento de indemnizações compensatórias relacionadas com a "regra da exclusividade", incluindo 10% do valor da receita da exclusividade até abril de 2023, e outras parcelas de juros de mora.

Segundo o acórdão do Tribunal Arbitral que o Expresso das Ilhas consultou, “dizer-se que a exclusividade se refere ao serviço público e não a todo o transporte marítimo interilhas não encontra correspondência nos termos em que se tem entendido o instituto da exclusividade no contrato de concessão de serviços públicos”.

“O direito de exclusivo, funcionando como base remuneratória do seu titular, criando a seu favor um mercado de utentes, uma vez que incide sobre uma atividade e uma determinada área, exclui, durante a sua vigência, a concorrência do exercício de uma atividade semelhante ou paralela: o '“privilégio de exploração” ou “privilégio da exclusividade” consubstancia, afinal, um modelo de proteção do cocontratante pela Administração Pública, conferindo- lhe uma garantia de não concorrência e, por essa via, reforça a segurança dos investimentos efetuados”, refere o mesmo documento, citando a argumentação de Paulo Otero, professor universitário da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no artigo “Da lesão do direito de exclusivo de concessionário”.

Para Simão Monteiro, “o Acórdão Arbitral, ao pretender fundamentar a existência da exclusividade, acaba por se pronunciar sobre o âmbito da concessão, matéria que, no nosso modesto entendimento, não foi submetida pelas partes à apreciação deste Tribunal”.

Diz o jurista que “a doutrina citada sobre o âmbito da concessão, sendo correta do ponto de vista teórico-dogmático, deve, contudo, ser entendida apenas e na exata medida em que, o concessionário contratado em regime de exclusividade não pode, a meio percurso da execução do contrato de concessão, ser surpreendido com uma concorrência inesperada na sua área territorial e de mercado de prestação do serviço público concessionado”.

Desta forma, prossegue Simão Monteiro na sua declaração, "entendo que não se pode aplicar, sem mais, a referida doutrina (...) no caso concreto submetido à apreciação deste Tribunal Arbitral, sob pena de um alargamento oficioso do âmbito do contrato de concessão subscrito entre a Demandante e o Demandado”.

O jurista contratado pelo Estado defende que a actividade de transporte de pessoas e bens, seja ele feito de forma aérea, terrestre ou marítima, “é uma atividade económica de livre acesso em Cabo Verde. E isto resulta cristalino do disposto no artigo 68º da Constituição da República, que estabelece que “A iniciativa privada exerce-se livremente no quadro definido pela Constituição e pela lei””.

Estado condenado

Esta declaração de voto de Simão Monteiro faz parte do processo da arbitragem que condenou o Estado a indemnizar a Cabo Verde Interilhas.

O acórdão do Tribunal Arbitral dá razão à empresa na quase totalidade das reclamações que esta apresentou contra o Estado e, depois de reconhecer a violação da cláusula de exclusividade prevista no contrato de concessão, condena-o a pagar 21.293.037$58, correspondentes a 10% da receita obtida de forma indevida.

O tribunal fixou ainda uma sanção diária de 1.062.359$28 por cada dia de incumprimento da regra de exclusividade a partir de 31 de Maio de 2024, acrescida de juros de mora.

O Estado é igualmente obrigado a compensar a empresa pelos montantes relativos à remuneração contratual, com pagamentos de 105.058.853$00 referentes a cada um dos anos de 2021 e 2022.

Para 2023, será aplicada a mesma taxa de 10% sobre o valor das receitas apuradas entre 1 de Janeiro e 19 de Abril.

O tribunal arbitral pronunciou-se ainda sobre os custos de funcionamento da concessão, considerando válidas algumas das despesas apresentadas pela CV Interilhas. Assim, o Estado terá de pagar 91.489.968$00 (com deduções), 377.189.199$00 e um valor adicional a ser calculado com base nas contas do primeiro trimestre de 2023.

No que respeita à violação de horários e à suspensão da actualização tarifária, o tribunal condenou ainda o Estado ao pagamento de 94.361.388$90, relativo ao incumprimento dos horários entre Abril de 2023 e Maio de 2024, e de valores adicionais relacionados com a não alteração dos tarifários entre Abril de 2023 e Fevereiro de 2024, no total de mais de 91 milhões de escudos.

Foi igualmente reconhecido o direito da CV Interilhas à assinatura de uma versão consolidada do contrato de concessão, decorrente do terceiro aditamento.

Face à substância das decisões favoráveis à empresa demandante, o Estado de Cabo Verde foi condenado a suportar 80% dos custos processuais, incluindo o reembolso das quantias já pagas pela transportadora a esse título.

CVI compra navios

Após a decisão do Tribunal Arbitral, a CVI anunciou, esta segunda-feira, que vai investir 19 milhões de euros na compra de um navio novo e dos navios que, até agora, estavam fretados à empresa pelo Grupo ETE, accionista maioritário da CVI.

“A CV Interilhas renova a sua disponibilidade para continuar a trabalhar, lado a lado com as autoridades, empresas e cidadãos cabo-verdianos, promovendo soluções inovadoras que respondam aos desafios do presente e promovam a coesão territorial contínua e a mobilidade interilhas. Este é um momento de união, de esperança renovada e de compromisso redobrado. Juntos, navegamos rumo ao futuro”, refere Jorge Maurício, PCA da CV Interilhas, numa nota a que o Expresso das Ilhas teve acesso.

Na mesma nota, o PCA da empresa anuncia que a CV Interilhas vai “investir na transformação e na mobilidade marítima em Cabo Verde”.

“Este investimento será materializado na aquisição dos navios Chiquinho BL e Dona Tututa – até então navios fretados e que passarão agora a ser propriedade e ativos integrantes do património da CV Interilhas – e ainda na compra de um novo navio, com características semelhantes ao navio Dona Tututa e com capacidade de responder às exigências da navegabilidade em Cabo Verde. Este novo navio encontra-se em fase de avaliação técnica e operacional e pretende-se que entre ao serviço dos cabo-verdianos ainda este ano, considerando as negociações em curso com o Armador”.

A concluir, o PCA da CV Interilhas garante que a empresa “tudo fará para que mais este activo possa vir a reforçar a conectividade e a segurança das ligações interilhas, até ao final do ano”.

Condenação chega à Assembleia

A condenação do Estado foi tema central no debate sobre o Estado da Nação.

O tema foi levado à plenária por João Baptista Pereira, deputado e líder da bancada parlamentar do PAICV.

Baptista Pereira afirmou que o acórdão de 23 de Junho dá razão à CV Interilhas e condena o Estado ao pagamento de cerca de 40 milhões de euros, por violação da cláusula de exclusividade prevista no contrato de concessão.

O acórdão incluirá, segundo o parlamentar, uma indemnização e outros montantes relacionados com custos operacionais, violação de horários e suspensão da actualização tarifária.

Reagindo a esta polémica, o ministro das Finanças, Olavo Correia garantiu que o Governo não concorda com a decisão e que também tem reclamações quanto ao serviço prestado pela concessionária.

"O Governo está com uma máquina montada e com um serviço especializado para, até ao limite, defender o interesse público e do Estado", afirmou.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1236 de 6 de Agosto de 2025.

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Autoria:André Amaral,9 ago 2025 9:25

Editado porAndre Amaral  em  9 ago 2025 15:41

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