Os silenciados do Tarrafal

PorJorge Montezinho,21 dez 2025 11:05

Há 51 anos, o fim do jugo português não significou uma independência plural e democrática, mas o início da ditadura do partido único. No período de transição, marcado pela repressão, cerca de 70 cabo-verdianos, acusados de se oporem ao modelo de independência imposto, foram presos, 58 deles no Tarrafal e mais tarde enviados para Portugal. Em tempo de liberdade, Chão Bom teve mais presos cabo-verdianos do que durante todo o período colonial. Esta é uma dessas histórias.

“Ainda hoje não sei porque fui preso”, diz ao Expresso das Ilhas Cecílio Nunes, um dos cabo-verdianos que esteve no Tarrafal na terceira – e silenciada – fase do campo de trabalho de Chão Bom. Houve quem o acusasse de ser informador da PIDE, houve quem dissesse que foi preso por causa de mulheres, houve quem dissesse que por vezes paga o justo pelo pecador, mas documento oficial com as razões não existe algum.

Antes do acordo entre o Estado português e o PAIGC, a acção de muitos militares foi feita à margem das hierarquias militar e civil, essencialmente por falta de orientações de Lisboa, uma vez que até Dezembro de 74 estas não foram frequentes, nem muito claras. Como afirmou o então major Loureiro dos Santos [delegado da Junta de Salvação Nacional no arquipélago]: “Governei lendo os jornais e procurando adivinhar o que se pretendia em Lisboa, porque instruções não havia”.

Quer na metrópole, quer nas colónias a libertação dos presos políticos e a extinção da PIDE foram encaradas como actos simbólicos que marcaram o fim de um regime e o início da liberdade. Uma das primeiras medidas delineadas pelo MFA e FAP cabo-verdianas foi a libertação dos presos políticos do Campo de Chão Bom no Tarrafal, onde permaneciam detidos catorze cabo-verdianos, dois guineenses e cinquenta angolanos [o número de presos varia, entre os 66 e os 68, dependendo do autor]. O que aconteceu a 1 de Maio.

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Entretanto, as manifestações contra a PIDE/DGS, ou de caça aos Pides, ocorreram em dois momentos: um primeiro nos dias seguintes ao 25 de Abril, prolongando-se pelo mês seguinte, sem registo de detenções; e um segundo no início de Dezembro, das quais resultaram 72 presos, embora se chegue a afirmar que estes detidos pertenciam aos partidos rivais do PAIGC.

“Nunca ninguém da PIDE me convidou para ser informador”, afirma Cecílio Nunes. “Nunca na vida. E sabiam que mesmo que me convidassem eu não aceitava”, indigna-se, ainda hoje, com tal possibilidade.

Dezembro das perseguições

O segundo momento de caça aos Pides terá sido impulsionado por um comício realizado no início de Dezembro, no qual o PAIGC apelou à prisão dos colaboradores da PIDE e dos seus agentes. Uma destas manifestações resultou na ocupação da Rádio Barlavento e do Grémio Literário do Mindelo (9 de Dezembro), cujos membros foram acusados de serem informadores. Durante vários dias (de 14 a 16) a população apressou-se a prender “indiscriminadamente” vários indivíduos e a entregá-los às FAP (PM e MFA) e à PSP.

Cecílio Nunes é preso no dia 17 de Dezembro, em Santa Catarina, onde era funcionário público, tinha então 27 anos. Mas a perseguição já tinha meses, com os agentes do PAIGC a mostrarem-lhe (e a mostrarem-se) de forma mais ou menos explícita. A casa dos pais, onde morava também, foi apedrejada ciclicamente. Depois, puseram dois guardas a acompanhá-lo diariamente. Iam busca-lo para ir trabalhar, estavam à porta do trabalho quando chegava a hora do regresso, acompanhavam-no até casa quando ia para casa, sentavam-se lado a lado se ia ao cinema, “ia ao Jardim de Santa Catarina, namorar na praça, punham-me no meio. Nem sequer podia dar o beijo porque tinha aqueles dois sacristas, um de cada lado”, ri-se.

O fim dos dias em, relativa, liberdade, estava a aproximar-se, apesar de Cecílio ainda não o saber. Antes de ser preso, entram-lhe casa, roubam tudo. Caixotes cheios de livros são abertos e regados com água. Numa mala estavam sebentas com versos em português e em crioulo, também textos em prosa. É tudo destruído. E num final de tarde, quando repousava numa cadeira à entrada de casa, chegaram os que o foram prender, quinze, arma apontada à testa, mas que não se preocupasse porque ia apenas prestar declarações ao posto e em 5 minutos estava de volta.

“Disse-lhes: rapazes, é preciso toda essa tralha? Toda essa gente com chicotes e pistolas? E nunca senti medo, pode não acreditar, mas nunca me senti com medo. Eu conhecia todas aquelas pessoas”, conta Cecílio Nunes.

Afinal não foram cinco minutos, e às 5h da manhã estava a caminho da Praia. Um dia depois – e 24h de jejum depois – chegam ao Tarrafal. Só no dia seguinte têm direito a um colchão e a uma cama.

Prisão no Tarrafal

Das já referidas 72 pessoas que foram presas, sobretudo em Santiago e São Vicente, mas também em Santo Antão, Fogo, Brava e Sal, 14 foram libertadas poucos dias depois. Os restantes 58 foram transferidos para o Tarrafal [dados de arquivo relativos aos processos]. Na sua maioria, as capturas foram efectuadas sob a acusação de “provocadores em nome de grupos políticos não reconhecidos” à excepção de oito delas cuja justificação mencionava expressamente terem sido informadores da PIDE/DGS.

A prisão destes indivíduos causou certo desconforto, tanto entre as autoridades em Lisboa como em Cabo Verde, onde foram realizadas várias reuniões entre o Alto-Comissário e representantes do PAIGC, como referido no Memorando sobre o Tarrafal, elaborado pelo Alto Comissário de Cabo Verde.

Cecílio Nunes comemora um aniversário já no Tarrafal, passa o Natal, a Páscoa, “condições péssimas, claro”. No início ainda os deixam jogar umas partidas de futebol. Depois, acabam com o futebol. De seguida, e curiosamente, deixam-nos ter equipamento de golfe até que alguém se lembra que um taco poderia ser usado pelos prisioneiros como arma e lá se vai o golfe também.

Quando tomavam banho, os guardas costumavam cortar a água, o que obrigava os homens ensaboados a virem para as esquinas dos edifícios para que o vento lhes tirasse a espuma dos olhos. Dizer que a alimentação era má, é uma forma demasiado simplista de descrever o menu diário. Durante algum tempo comem na cantina, mas depois os guardas lembram-se de servir a comida num bidão cortado, que era posto no exterior, e os prisioneiros tinham de correr para conseguirem chegar à comida antes que os cães vadios, que deambulavam pela prisão, lá metessem os focinhos.

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“A última frase que ouvi na minha terra foi: qualquer tentativa de fuga é rajada para matar”

Cecílio Nunes

Um dia, Cecílio recebe a visita do Procurador da República, começava o inquérito. “Perguntou-me se fazia reuniões em casa? Disse quem sim, a casa era grande e eu não queria estar sempre sozinho. De que falávamos na reunião. Essencialmente de livros, música, mulheres. E eu pessoalmente criticava os actos de vandalismo praticados pelo PAIGC. Se isso é ser contra o PAIGC, pode escrever que eu assino. Assim terminou o inquérito. Passado um mês ou dois, voltou a aparecer por lá. Afinal, tudo o que eles fizeram é tudo mentira, mas tem mais uma acusação, o senhor foi comprar uma arma na Ribeira da Barca, a um homem chamado Tatá para matar populares. Imagine, uma pistola para matar povo. Disse, então traga-me esse senhor cá, para dizer quando é que ele vendeu a arma. Além disso, eu tinha feito um levantamento e em Ribeira da Barca não havia ninguém com aquele nome”.

Dos 58 internados na prisão do Tarrafal, foram libertados 39 até à data da independência, com excepção de 19 que foram transferidos para a prisão de Caxias, em 7 de Junho, num avião militar, “para prosseguimento dos processos e por os mesmos conterem referências a possíveis ligações com a ex-PIDE/DGS […] à ordem da Comissão de Extinção da DGS/PL”. No entanto, os seus nomes não constam da Lista de agentes da PIDE/DGS, elaborada nesta data podendo significar que não se tratavam de agentes, mas de informadores.

Quanto aos outros, em 11 de junho de 1975, foram transferidos para o foro civil os processos relativos a 10 indivíduos: Juvenal Augusto Gomes Miranda, Jorge Henrique Almeida Junior, Miguel Lopes; Orlando Lopes, Alexandre Pires, Gabriel Rodrigues Miranda, Venâncio de Andrade, João Caetano da Silva, Julio Pereira da Lomba Reverdes, João Tolentino Silva Andrade. Na mesma data foi mandado arquivar outro processo relativo a Arnaldo Gomes Barbosa. Outos onze processos transitaram para os Tribunais Judiciais, por extinção do Tribunal Militar: Jorge Alberto de Freitas Vitória, Rufino José da Silva, Francisco Xavier St‘ Aubyn Mascarenhas, Adalberto Augusto Gomes dos Santos, Joaquim Francisco Silva, Aires Leitão da Graça, António Gumercindo Ribas Chantre, Tomás Ferreira Benrós, Ângelo Jesus de Fátima Lima, Clarimundo Silva Delgado, Manuel Rosário da Silva. Facilmente se identificam alguns destes nomes como afectos a partidos cabo-verdianos sem ligação ao PAIGC, como Ângelo Lima, Aires Leitão da Graça e António Gumercindo Ribas Chantre.

Direcção Caxias

“Disseram-nos que tínhamos meia hora para sair. Tiraram-me todo o dinheiro que tinha – como era funcionário público continuava a receber o ordenado – Pensei que ia regressar a casa, afinal fomos enviados para Portugal”, conta Cecílio Nunes. A odisseia continuava. Primeiro para Caxias, 14 homens numa cela, mas a alimentação e a assistência médica eram boas. Um dia lêem num jornal que não havia presos políticos cabo-verdianos em Portugal, armam um banzé em Caxias. Cecílio Nunes chega a escrever ao director da cadeia a perguntar porque estava preso, se era apenas por não comungar com as ideias do PAIGC. Ficam por lá esquecidos mais de um mês.

Depois, segue-se a transferência para a Penitenciária de Lisboa, “só lá estavam brancos andrajosos, descalços, rotos. Pensei, se eles estão assim, então eu, africano, vim para aqui para morrer”. A alimentação volta a ser má. Se adoeciam a medicação era entregue em cartuxos de papel, nem sabiam o que estavam a tomar.

Como se viviam períodos revolucionários também em Portugal, quem os guardava na penitenciária aconselha-os a invadirem a secretaria e falarem com os responsáveis, que eles garantiam cobertura. Assim fazem. O director diz-lhes que vai falar com o COPCOM [Comando Operacional do Continente, um comando militar português de intervenção rápida, criado após o 25 de Abril de 1974 para garantir os objetivos do Movimento das Forças Armadas (MFA) e a estabilidade do país]. No dia seguinte os “detidos cabo-verdianos” – nunca eram chamados de presos – são informados que vão sair.

“Era a altura do recreio”, conta Cecílio Nunes, “os guardas que tinham dado o apoio para invadir disseram, cabo-verdiano é para sair, é para sair. Eu já estava farto. Já tinha havido outros dias que eram para sair e o dia nunca chegava. Portanto, disse-lhes, quando acabar de jogar o meu futebol, vou tomar o meu banho e depois vou à secretaria. Assim fiz. Joguei o meu futebol, às quatro e tal, perto de cinco horas, acabou o futebol. Tomámos banho, vestimo-nos e fomos para a secretaria. O responsável: o senhor está atrasado. Eu: é para sair? Pois eu não saio enquanto não me passar um papel a dizer que estive preso. Ele: não posso passar papel algum porque a secretaria já fechou. Eu: estive preso um ano, mais um dia não me faz diferença, durmo aqui e espero por amanhã. Discussão para cima, discussão para baixo ele acaba por me dizer que não haverá papel porque não há nenhum processo. Podíamos até ter sido todos fuzilados que ninguém saberia. Acabei por sair da penitenciária pelas oito da noite. Livre”.

Um silêncio de meio século

Quando terminamos de conversar, Cecílio fica em silêncio durante algum tempo. Depois, diz, “eu sinto vergonha de todos os historiadores de Cabo Verde. Ficaram sempre calados com a nossa prisão. Foi preciso uma portuguesa trazer isso à tona, escrever sobre a nossa prisão”. [“Tarrafal, 1975 - O Campo do Silêncio” (Edições Afrontamento) o novo livro de Sandra Inês Cruz, uma jornalista e investigadora que durante os anos em que fez o doutoramento pesquisou o Tarrafal, enquanto “campo de esquecimento”].

O Campo de Trabalho de Chão Bom conheceu três períodos de funcionamento. O primeiro (1936-1954) corresponde ao internamento de opositores políticos portugueses – comunistas, sindicalistas, republicanos – enviados para o exílio por ordem de Salazar. O segundo período (1962-1974) marca a reabertura do campo para receber militantes dos movimentos de libertação das colónias africanas – sobretudo do PAIGC (Guiné e Cabo Verde), mas também do MPLA (Angola) e da FRELIMO (Moçambique). No terceiro período (1974-1975), logo após o 25 de Abril, o campo foi novamente utilizado, ainda sob administração portuguesa e depois cabo-verdiana, para deter cabo-verdianos acusados de se oporem ao processo político em curso.

Cecílio Nunes viveu os últimos 50 anos em Portugal e ainda espera um pedido de desculpa – e um papel a dizer porque esteve preso – das autoridades cabo-verdianas. No ano passado, quando se assinalaram os 50 anos do Acordo de Lisboa, o Presidente da República José Maria Neves escreveu na sua rede social que “nos dias 14, 15 e 16 de Dezembro de 1974, o Movimento das Forças Armadas - Cabo Verde, em estreita articulação com os principais dirigentes do PAIGC presentes, na altura, nas ilhas, prendem, num contexto revolucionário, 70 pessoas tidas como opositoras da independência (…). Posteriormente, feitas as averiguações, foram sendo gradualmente libertados. Esses factos devem ser analisados à luz do quadro revolucionário da época. Nesses momentos, há sempre excessos e erros que são cometidos e que devem ser devidamente contextualizados. Hoje, 50 anos depois, devemos anotar esses factos históricos – a história é o que é – interpretá-los e dar garantias em como, em tempos de liberdade e de democracia, não haverá excessos e estarão assegurados os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos”.

“Eu vi o Presidente da República dizer que era para a gente esquecer e não pensar nisso”, conclui Cecílio Nunes. “Se o pai dele tivesse passado o que o meu pai passou, ele não dizia isso. Se ele tivesse passado o que eu passei, ele não dizia isso. Se o PAIGC tivesse entrado em Cabo Verde como gente civilizada, todo mundo seria PAIGC. Mas entraram logo a queimar tudo, a acusarem pessoas, açoites a toda hora. Quem é que tendo um palmo de testa podia ser do PAIGC? Ninguém!”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1255 de 17 de Dezembro de 2025.

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Autoria:Jorge Montezinho,21 dez 2025 11:05

Editado porSheilla Ribeiro  em  21 dez 2025 23:22

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