Que balanço faz do primeiro ano do seu mandato?
Considero o primeiro ano do mandato muito positivo, tivemos bons resultados de acordo com aquilo que traçamos no início da legislatura para levarmos a cabo, nomeadamente a distensão do ambiente parlamentar, um ambiente mais distenso, mais descontraído, um plenário em que haja um clima saudável, um debate no dissenso, mas em que todos os partidos políticos possam, de facto, focar naquilo que é mais importante e naquilo que sirva os cabo-verdianos. Portanto, o objectivo fundamental é aqui no Parlamento construirmos as soluções para os problemas dos cabo-verdianos. Elegemos todos os órgãos do Parlamento, elegemos os grupos nacionais aos organismos internacionais, nomeadamente a CPLP, o IP, a CEDEAO e os deputados ao Parlamento Pan-Africano. Nós passamos com muito sucesso a presidência da Assembleia Parlamentar da CPLP à Guiné-Bissau, já tivemos alguns contactos com parlamentares de países amigos, já fizemos actividades aqui no Parlamento, que têm a ver com encontros de secretários gerais e técnicos de informática da CPLP; estamos muito incisivos na questão que tem a ver com o Parlamento Aberto, aproximando-nos de instituições da sociedade civil, mas também de cidadãos individuais. Portanto, do meu ponto de vista, tem sido um bom mandato e há uma grande confiança de todos os partidos políticos com assento parlamentar na Mesa da Assembleia Nacional, porque tenho feito um trabalho o mais independente possível, imparcial, com probidade para que possamos, de facto, ter um Parlamento que espelhe aquilo que os cabo-verdianos desejam. No fundo, o meu foco era recuperar a imagem do Parlamento perante os cabo-verdianos, é o caminho que temos percorrido neste primeiro ano de mandato.
Como se sabe, não foi a primeira escolha para a presidência da AN e nem teve todos os votos do seu partido na eleição para o cargo. Como conseguiu gerir esta situação?
São dinâmicas próprias da democracia, quem é democrático, aceita essas situações como normais dentro de um partido político, já que um partido tem tendências, tem pontos de vista diferente. Como eu disse, no início, o dissenso político é o sal da democracia. Os partidos políticos devem incentivar o debate interno, a democracia interna: isso é fundamental para os partidos políticos e para a nossa democracia. Portanto, eu quando me disponibilizei a me candidatar ao cargo de presidente da Assembleia Nacional, vim a saber depois que havia outros candidatos, ou pelo menos uma candidata. Foi um processo que decorreu tranquilamente no início, mas chegou uma certa altura em que havia um grupo dentro do meu partido que apoiava a outra candidatura, enquanto que eu tinha uma maioria que me apoiava. Houve insistência dessa minoria no sentido de eu abrir mão da minha candidatura para que se apoiasse a outra candidatura que do meu ponto de vista tinha um apoio minoritário. Mas não recuei, fui até ao fim porque na minha opinião era um projecto para Cabo Verde, era um projecto que tinha muita gente que apoiava, as pessoas reviam em mim uma pessoa que faz o seu trabalho com independência, com humildade, com simplicidade e sempre focado nos superiores interesses de Cabo Verde e da Assembleia Nacional. Por isso, foi uma coisa tranquila que nós conseguimos gerir e ultrapassar com naturalidade.
O que absorveu dos seus predecessores no cargo?
Eu revejo-me em todos, mas sobretudo naqueles que estiveram cá quando fui deputado. Estou cá há 21 anos, antes de ser presidente da Assembleia Nacional, fui deputado durante 20 anos. Portanto, houve presidentes que me marcaram. Há o presidente Basílio [Ramos] com o qual trabalhei mais directamente, porque eu fui secretário da Mesa da Assembleia Nacional no tempo dele. A sua forma tranquila, serena e humilde marcou-me bastante. Mas todos os outros presidentes da Assembleia Nacional tiveram vários aspectos positivos nos respectivos mandatos. Aliás, os aspectos positivos são superiores a alguns menos bons, mas, como disse, revejo-me em todos eles e acho que a presidência deve ser uma presidência aberta, uma presidência construtiva e uma presidência partilhada que aproveite tudo de bom que fizeram os meus predecessores.
Desde 2015 estamos em período de revisão ordinária da Constituição. A questão da substituição do Presidente da República que tem gerado alguma polémica seria passível de revisão?
Há quem entenda que o Presidente da República mesmo fora de Cabo Verde continua sendo presidente eleito e que neste caso estaríamos com dois presidentes da república ao mesmo tempo. Como sabe, nós bebemos muito no direito comparado português onde existe o figurino da substituição do Presidente da República pelo Presidente da Assembleia da República nas suas faltas, ausências e impedimentos. Também em Cabo Verde existe o mesmo figurino. Eu acho que o que deve haver é o presidente da Assembleia Nacional saber interpretar esses momentos em que ele substitui o Presidente da República. Não se trata de invadir as competências do Presidente da República, passando a imagem de que agora sou o Presidente da República, com aparato e tudo o mais. Não, há um Presidente eleito que eu respeito e que nós devemos respeitar e que circunstancialmente é substituído pelo presidente da Assembleia Nacional. É uma matéria que os deputados, em sede de revisão constitucional, podem perfeitamente abrir esse debate. Acho que há abertura suficiente para a gente entrar nesse debate. Como sabe, a revisão constitucional é prerrogativa dos deputados e só dos deputados, de ninguém mais. O Parlamento tem a primazia constitucional: só os deputados poderão fazer essa revisão. Portanto, quando propuserem essa revisão, se trouxerem à baila esta matéria, é evidente que será discutida. O presidente da Assembleia Nacional estará a dar a sua contribuição enquanto deputado, mas enquanto presidente da Assembleia Nacional estará apenas a arbitrar o debate.
Vai haver durante o seu mandato uma revisão e na sua opinião que outros artigos carecem de revisão?
Eu gostaria que houvesse revisão, aliás todos acham que poderá haver uma revisão pontual da Constituição da República e está sobre a mesa. Mas, como eu disse, é uma prorrogativa dos deputados, os únicos sujeitos parlamentares que têm legitimidade nesta matéria. Há o artigo 131 que você mencionou que tem a ver com a substituição do Presidente da República, mas há também o artigo que gerou muita polémica na altura das candidaturas para Presidente da República que impede a cidadãos que tenham mais de uma nacionalidade de serem candidatos. É um artigo que se pode rever e quem propor a revisão há-de citar os artigos que devem ser revistos. Mas na minha opinião, não é porque estamos em período de revisão ordinária que a gente vai ter que rever: rever só por rever. Está a ver? Temos que rever com substância e eu nem me preocupo muito com a revisão constitucional. Eu acho que neste momento temos coisas muito mais importantes a tratar do que a revisão constitucional. Por exemplo, o Código Eleitoral pode ser revisto, pois há várias situações; por exemplo, a votação electrónica que está prevista há muito tempo, mas que nunca se pôs na prática e há ainda um conjunto de questões que a gente pode rever no Código Eleitoral. Portanto, não me preocupo tanto com a revisão só porque chegamos ao período da revisão ordinária.
Eleição dos Órgãos Externos. Na última sessão parlamentar do mês de Abril os deputados falharam na eleição dos órgãos externos ao Parlamento e remeteram o assunto para uma próxima sessão parlamentar. Quando teremos os órgãos externos eleitos?
Nós da nossa parte estamos a cumprir aquilo que é nossa função. A nossa função é trazer a matéria para a Mesa da Conferência dos Representantes, é o diálogo permanente com as lideranças parlamentares e com o partido que tem assento parlamentar [UCID] para tentarem encontrar entendimentos e consensos na Conferência dos Representantes. O governo está representado através da sra. ministra dos Assuntos Parlamentares. Ou seja, não é um assunto tabu, é um assunto que nós tratamos com todos os sujeitos parlamentares. Desde o início do meu mandato, eu trouxe esta questão para a mesa do debate para os órgãos internos da Assembleia Nacional com competência nesta matéria. É um assunto que está regulado pelo regimento da Assembleia Nacional. Não é algo que a gente chega e faz. Portanto, temos todo um procedimento a partir do artigo 307 onde está plasmado o princípio da eleição. Temos todos os órgãos praticamente eleitos, excepto o Provedor da Justiça que foi eleito há pouco tempo. Se formos ver, temos os órgãos que estão mais ligados à Justiça e os outros nem por isso. Por exemplo, temos os dois Conselhos Superior da Magistratura Judicial e do Ministério Público, temos o Tribunal Constitucional, portanto os dois juízes suplentes para o Tribunal Constitucional, temos o Conselho de Disciplina do Tribunal de Contas e o Conselho de Prevenção da Corrupção também do Tribunal de Contas. São órgãos que estão mais ligados à justiça. Então, decidimos separar esses dois pacotes. De um lado, os órgãos mais ligados à Justiça e depois iremos para a Comissão Nacional de Eleições, a Comissão Nacional de Protecção de Dados e a Autoridade Reguladora para a Comunicação Social (ARC). Então fizemos todo o processo, desde a recepção das candidaturas, porque já havia aqui no Parlamento um consenso a nível da conferência dos representantes. Recebemos as candidaturas, despachamos para a comissão especialidade, a comissão especializada tinha até oito dias para marcar as audições e nós, enquanto presidente da Assembleia Nacional, dentro desse intervalo de oito dias, tínhamos até cinco dias para convocar os candidatos para a audição. Nós fizemos tudo isto e a audição estava marcada para um dia tal depois de terem acontecido todas as audições e nós estávamos em condições de aprovar aquilo. Acontece que no primeiro dia da sessão plenária [26 de Abril] na aprovação do projecto da ordem do dia a UCID levantou uma questão que tinha a ver com o processo e os dois grupos parlamentares entenderam por bem que sim, que poderia ser suspenso o processo para que depois fosse retomado. Um aspecto importante é que a matéria foi suspensa naquele dia, naquela sessão.
Falou-se na altura num braço de ferro com o presidente do MpD e Primeiro Ministro em que este levou a melhor. Qual a sua leitura?
Eu não vejo a questão assim. O Primeiro-ministro não tem nada a ver com isto. Não é da sua competência, isto aqui não é competência do governo. Os lideres partidários sim. Eu disse isso muito claro na entrevista que eu dei no mês de Dezembro quando fui à presidência da república partilhar com o Presidente da República a agenda parlamentar e para consensualizarmos os calendários para evitar sobreposição de actividades tendo em conta que eu substituo o Presidente da República. Um dos assuntos que levei tinha a ver com a eleição dos órgãos externos. Quando saí do encontro dei uma declaração à imprensa dizendo que fui à presidência da república e que inclusive apelei ao sr. Presidente da República à sua magistratura de influência junto dos líderes partidários para a criação de consensos e entendimentos. Depois, quando fui visitar as Aldeias SOS, fui entrevistado à margem dessa visita e disse aos jornalistas que a competência não é do governo, mas sim do Parlamento e que os consensos haviam sido conseguidos há muito tempo. E é verdade, eu reitero isso. Mas, no mesmo dia, disse que apesar disso, eu reconheço o papel das lideranças partidárias na construção de consensos. Isto ficou muito claro, mas talvez por falta de argumentos que pudessem desmentir aquilo que eu disse optaram por ignorar essa parte do meu discurso em referência ao papel das lideranças partidárias na procura de consenso e entendimentos e incidiram sobre aquela parte que eu disse que o governo não tem competência nesta matéria. Reafirmo aqui: o governo não tem competência nesta matéria. Essa é competência da Assembleia Nacional. Digo: os líderes, sim, têm um papel fundamental na procura de consenso e entendimentos. Portanto, aqui ninguém ultrapassou ninguém. Quando estamos a governar o nosso país, não podemos pensar em ultrapassar o outro. Porque, senão prejudicamos o país, aqui devemos focar nos objectivos da governação, na resolução dos problemas dos cabo-verdianos. Por exemplo, todos se reclamam de uma justiça mais funcional, então temos de criar as condições, cada um de acordo com as suas competências e as suas responsabilidades deve criar as condições para que a justiça funcione, pois um dos elementos que leva ao funcionamento da justiça é ter os órgãos a funcionar plenamente. E para que os órgãos possam funcionar plenamente a Assembleia Nacional deve eleger os cidadãos que devem compor esses órgãos e para isso há toda uma dinâmica que é da competência da Assembleia Nacional, sim, e que também dependerá em grande medida dos líderes partidários. Isto está claro, e parece que não há dúvidas sobre esta matéria.
Falando ainda da justiça temos o caso Amadeu Oliveira. O senhor disse que o Parlamento vai ouvir o deputado antes de se votar a suspensão de mandato. Tecnicamente como isso irá ser feito?
Veja, o deputado está em prisão preventiva e quem tutela as cadeias é o ministério da Justiça. Portanto, há sempre mecanismos para que a gente possa chegar ao deputado. Não é a Assembleia ir pessoalmente, ou fazer uma comunicação directa com o sr. deputado, porque não é possível, mas há mecanismos próprios, nomeadamente podemos fazê-lo via ministério da Justiça. O que faremos? Mandamos uma nota ao sr. deputado, notificando-o do requerimento do Procurador Geral da República no sentido de se lhe suspender o mandato e pedimos ao sr. deputado que se pronuncie em relação a esta matéria. Depois damos-lhe um prazo de mais ou menos dez dias para se pronunciar dentro desse prazo. A partir daí, com o pronunciamento do sr. deputado nós estaremos em condições de analisar na Comissão Permanente se avançaremos com o assunto para a plenária da Assembleia ou não. Entretanto, se o deputado não cumprir o prazo depois da notificação, também estaremos nas mesmas condições de avançar ou não com o processo. Apesar de ser um deputado que esteja em causa, trata-se de uma situação normal e a Assembleia Nacional toma isso como uma coisa tranquila, respeitando os procedimentos. Nós aqui o que fazemos? Respeitar o regimento da Assembleia Nacional e a Constituição da República. Veja até que essa não é uma decisão do presidente da Assembleia Nacional. Às vezes as pessoas maldosamente querem passar a mensagem que é decisão do presidente da Assembleia Nacional. Não é. O presidente da Assembleia Nacional é um árbitro. Na Comissão permanente nós temos três representantes de partidos políticos e são esses representantes que decidem em nome dos respectivos partidos políticos. Os membros da Mesa da Assembleia Nacional fazem parte da Comissão Permanente, mas não têm direito a voto, quem vota são os representantes dos partidos políticos. Portanto, isto não tem nada a ver com a decisão do presidente. Agora, o presidente quando recebe um requerimento do Procurador Geral da República ele tem que dar encaminhamento. O procedimento tem que ser feito até chegar ao plenário da Assembleia Nacional. E antes da suspensão há um parecer que o presidente solicita à primeira comissão, que é a comissão competente na matéria. De acordo com o parecer da comissão os deputados saberão decidir apesar de não ser vinculativo o parecer, mas ajuda os deputados a ponderarem sobre a suspensão ou não do mandato do sr. deputado.
Quando é que vai acontecer?
Vai acontecer no tempo de for melhor. Em breve vai acontecer. Na sessão [de 26 de Abril] os deputados foram da opinião que devíamos suspender o projecto de resolução para suspensão do mandato de Amadeu Oliveira e suspendemos para a audição. Porque o parecer só aconteceu no dia em que nós estávamos em sessão plenária. Se o parecer tivesse dado entrada antes no gabinete do presidente da Assembleia evidentemente que nós poderíamos fazer uma reunião extraordinária da conferência dos representantes para nos debruçarmos sobre esta matéria. Mas não foi, isso só aconteceu no dia em que nós estivemos em sessão e foi suspensa. Agora, neste momento até a nota para notificar o deputado já esta elaborada e creio que brevemente nós poderemos notificar o sr. deputado para se pronunciar sobre esta matéria.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1068 de 18 de Maio de 2022.