Educação e envolvimento de todos é a chave para a tolerância religiosa

PorSara Almeida, Sheilla Ribeiro,25 set 2022 8:47

“Tolerância Religiosa e Harmonia: Factores Essenciais para o Desenvolvimento, Paz e Estabilidade na Região” foi o tema em debate na reunião deslocalizada dos parlamentares da CEDEAO, que decorreu na Praia entre os dias 14 e 18. A reunião contou, entre várias intervenções, com apresentações de experts convidados, que contribuíram para a análise da problemática e desenho de soluções. O caminho para a tolerância religiosa, concluiu-se, passa pela educação e legislação adequada, e é tema que interpela a todos, dos governos às ONGs, passando pela sociedade civil e líderes religiosos.

A Comissão mista da Saúde, Educação, Ciência e Cultura e das Tecnologias de Informação e Comunicação do Parlamento da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) escolheu Cabo Verde como local para a sua reunião sobre tolerância religiosa. Uma escolha que, de acordo com o deputado cabo-verdiano e presidente da Comissão da Saúde do Parlamento da CEDEAO, Orlando Dias, não surge “por acaso”.

“Cabo Verde, de facto, é um país que tem estabilidade, harmonia religiosa, é um país laico, onde não há conflitos religiosos, nem violência a esse nível. A CEDEAO pode tomar Cabo Verde como exemplo para minimizar esses problemas que ainda persistem na sub-região”, referiu aos jornalistas, à margem dos trabalhos.

Sobre o tema, em si, o debate e procura de soluções são vistos como fundamentais no contexto da comunidade, uma vez que, como destacaram todos os participantes, tolerância, paz e estabilidade são factores sem os quais não se poderá verificar o desejado desenvolvimento da África Ocidental e bem-estar das suas populações.

Assim, da reunião, que contou com a presença de 12 parlamentares da Comissão mista, deputados nacionais, líderes religiosos e outros convidados, saíram várias recomendações. Educação e um quadro legislativo que promova a tolerância, são os factores em relevo.

Em concreto, recomenda-se, por exemplo, que a questão seja incluída em todos os currículos escolares e que seja estabelecida a Carta da CEDEAO sobre tolerância religiosa, alocando orçamento significativos para a problemática. Ao mesmo tempo, apela-se a que os parlamentares olhem as questões jurídicas, com propostas que promovam a tolerância e estruturas que assegurem a aplicação das leis e “os compromissos de actividades inter-religiosas”, como se lê no relatório da Reunião.

Religiosos são parte da solução

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Cissé Djiguiba Abdallah

O Imã Cissé Djiguiba Abdallah, reitor da mesquita Salam em Abidjan, Côte d’Ivoire, foi um dos convidados para esta reunião, e a apresentação exaltou os valores que regem as religiões praticadas na África Ocidental.

Ao olharmos para essas religiões, todas elas, do islamismo ao cristianismo, passando pelos animistas e outros, defendem o amor e o respeito pela vida humana, lembrou. E os valores que já mostraram ser eficientes para a consolidação da tolerância, da paz e estabilidade em outros pontos do mundo, também o devem ser em África, para que esta se possa desenvolver e os seus cidadãos verem garantido o seu direito à felicidade.

Viver em paz “é possível, fazendo uma leitura positiva dos livros sagrados: o Corão, a Bíblia. O que o Corão nos ensinou, e continua a ensinar-nos é a viver com os outros que não são da nossa religião, em paz, em amor e tolerância”, observou o Imã. Assim, uma das razões da sua intervenção foi demonstrar “que a religião é uma parte da solução dos problemas com que somos confrontados”, e que “os religiosos têm o papel de educar para a paz, de construir a paz.”

Assumindo, pois, que a religião é na verdade uma parte da solução, Abdallah defendeu que religiosos e políticos devem unir-se nesse discurso de paz, amor e coexistência pacífica e abrir uma nova era de diálogo inter-religioso.

Aliás, diálogo é importante e a solução passa, também, por entender e ouvir o outro.

“Os linguistas dizem que é do poder de escutar que nasce a faculdade de se compreender”.

Ou seja, criar uma região pacífica e estável passa “pelo respeito pela vida humana, o respeito pela diferença e, igualmente, pelo o diálogo inter-religioso. O diálogo entre as pessoas, e entre etnias deve permitir-nos conhecer-nos melhor”. O próprio Corão, lembra, apela à saberia da tolerância, a “discutir com as pessoas da melhor maneira”.

Entretanto, olhando para a CEDEAO, ainda que alguns países tenham problemas de suposta base religiosa, outros há em que as diferentes religiões coabitam em paz, como a Côte d’Ivoire ou o Senegal. O segredo destes? “O facto de se escutarem e olharem o interesse dos países. Não temos interesse em fazer a guerra, ou razões de religiosas para o fazer. Em nome de avançar [do desenvolvimento], pomos a tónica na educação, e a formação, que são as verdadeiras bases do desenvolvimento”, explica o religioso ivoirense.

“A Nigéria é demasiado grande para se permitir falhar”, Usman Mohammed

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Da Nigéria, chegou o Professor Usman Mohammed, do departamento de Relações Internacionais da Universidade de Kaduna, que foi outro dos convidados da Comunidade para discorrer sobre o tema da Reunião.

Na linha do que foi referido por outros oradores e participantes, também o académico falou das causas e impactos da intolerância religiosa no desenvolvimento, paz e estabilidade da região.

A religião, como disse aos jornalistas, tem sido muitas vezes um conflito social em África e isso deve-se à natureza complexa do continente e suas 54 Nações. Entre essas nações, 15 pertencem à África Ocidental e nesta sub-região está um dos países mais complexos e densamente povoados: a Nigéria, que tem cerca de 200 milhões de habitantes e 250 tribos.

“Gerir este tipo de país, complexo, é difícil. Apesar da Nigéria ter recursos tremendos, está envolvida em tantas crises: crises religiosas, conflitos de pastores e agricultores, conflito de natureza doméstica, intolerância e conflitos políticos”, enumera. E, religião e política muitas vezes misturam-se, o que promove o conflito. Conforme ilustra, um dos dois maiores partidos do país, actualmente no poder – o All Progressives Congress (APC), defende um emblema muçulmano. “Os cristãos sentem-se marginalizados de todo o processo político”, explica.

“Por isso, é que o parlamento da CEDEAO pediu que reuníssemos para falarmos aos parlamentares, aos stakeholders da costa ocidental africana, perspectivando a questão da tolerância”, disse aos jornalistas.

“Porque as pessoas estão em guerra”? é uma das questões colocadas no seu paper. Para tal, o académico pega precisamente no caso da Nigéria e faz uma comparação com o vizinho Gana, que vive em paz religiosa.

“Estão na mesma região, foram colonizados pelo mesmo colonizador britânico, mas o Gana é um país que tolera”.

Senegal é outro país onde se vive em paz. Porquê? Um dos motivos que leva à intolerância e violência tem a ver com a percentagem de população de uma determinada religião. Há mais violência “onde a força numérica de muçulmanos e cristão está quase a par”, equilibrada. “Quando temos esse tipo de situação, a luta pelo poder e controlo dos recursos torna-se intensa e traz mais violência ao seio da sociedade”. É o caso da Nigéria onde a população muçulmana representa cerca de 58% e a cristã quase 42%. É uma crise que, mais do que religiosa, é política.

Entretanto, conforme explicou à imprensa, a conclusão do seu paper é que não podem ser só os governos a promover a tolerância.

“Temos de identificar boas ONGs que se baseiem na inter-fé. As religiões têm de se juntar, fazer as suas actividades juntas, promover a unidade e começar a ensinar [a tolerância] nas escolas primárias e secundárias”, defende.

O académico advoga ainda que, embora os governos devam fazer o seu esforço, os cidadãos também têm de avançar, trazer programas e promover actividades e festividades conjuntas.

Em suma, “não se poderá ter uma África Ocidental pacífica sem o envolvimento dos clérigos, do governo, as ONGs, os líderes religiosos, os líderes tradicionais. Todos têm de se juntar para pregar a paz. Tem de haver paz antes do desenvolvimento.”

“Temos de nos juntar, harmonizar, e temos de encontrar parceiros de boa vontade”. E é importante também encontrar boas leis domésticas “para que as pessoas vivam em harmonia”. Se não é possível erradicar a violência – “não podemos eliminar a violência, é a natureza humana” – pelo menos reduzi-la a níveis que permitam viver com alguma paz. “

“Diminuir a frequência, o grau destas ocorrências, e reduzir o impacto”, diz.

Questionado também sobre as acções do Boko Haram, grupo extremista activo desde 2009, o académico nigeriano observa que, no início, se pensava que seria extinto em poucos anos. Depois descobriu-se, segundo conta, que há mãos internacionais que ajudam o grupo a manter-se activo e a fomentar a violência. Interesses estrangeiros, nomeadamente na venda de armas. Nem mesmo com a entrada no poder de Muhammadu Buhari, em 2015, e as suas promessas, se conseguiu extinguir essa violência. E a esta somam-se outros conflitos, nomeadamente, em que confrontam pastores e agricultores.

“Temos constantemente conflitos no terreno”. A CEDEAO e os governos têm-nos visto e tentado terminar, mas todos os “dias muda de cores, estilo, dimensões e frequência, e assim há medo na intervenção, há medo mesmo internamente, há sabotadores”, conta.

São conflitos e uma violência que, na realidade, não tem apenas a ver com intolerância religiosa. “Tem a ver com assuntos económicos, assuntos sociais, assuntos religiosos, e outros”, como o interesse na venda de armas e uma espécie de boicote pelo fomento da violência para que a Nigéria não viva em paz.

Porém, observa, neste momento tem-se assistido a um esforço entre os cidadãos e a uma frente colectiva que está a confrontar a violência nas suas áreas e a relatar os crimes. O optimismo, no entanto, é relativo. Como diz, “a Nigéria é uma sociedade complexa, um sítio muito complicado para governar e, mais uma vez, o que se faz em relação a um certo assunto hoje, em horas produz uma contra-medida”.

Há muitas críticas ao governo, mas a verdade é que, como aponta, “todos os dias a insegurança ganha uma nova dimensão. Mal resolves um problema, outro emerge.”

O governo, por seu turno, apenas toma contra-medidas reactivas, com aposta material em armamento e intervenções militares. “Sem diagnosticar a fonte, a raiz do problema e o tratar a partir da fonte não teremos a solução”, adverte.

Entretanto, critica, o elevado montante que é gasto com o exército, os próprios militares não têm interesse em que o conflito acabe. “Não pode acabar porque se acabar eles não vão receber nenhum dinheiro outa vez”.

Em Fevereiro de 2023, a gigante Nigéria vai a votos. E o aviso de Usman Mohammed é de que “a Nigéria é demasiado grande para falhar. 200 milhões de pessoas não podem ser refugiados. Para onde vão?”

Assim, é do interesse de todos – da CEDEAO, das Nações Unidas, ONGs, etc. – impedir o colapso do país. “A intervenção tem de ser agora”, para garantir eleições justas e livres.

“A religião já foi metida na fórmula, mas tem de haver muito trabalho no terreno” para evitar a violência.

“Cabo Verde é um exemplo no mundo”

Cabo Verde, com os seus 500 mil habitantes, quase todos cristãos, é um caso diferente e também ele alvo de apresentação aos parlamentares.

A intervenção esteve a cargo de Andyra Lima e ainda de Sandra Mascarenhas e Jairzinho Pereira, estes últimos enquanto representes do Ministério da Cultura*.

Para este académico, África, que é uma das regiões com mais diversidade em termos étnicos e culturais, precisa de uma mudança substancial na sua abordagem à diversidade, que aliás deve ser vista como uma força pelas nações da região. Exemplos de outras partes do mundo mostram mesmo que ambientes com grande diversidade podem levar à criatividade e inovação.

“Mas isto só é possível se as forças políticas e a sociedade civil se comprometerem na promoção da tolerância social como o maior pilar do crescimento económico e desenvolvimento social”, advertiu Jairzinho Pereira.

Sobre Cabo Verde, em concreto, o orador observou que, neste momento, o “problema da intolerância religiosa “praticamente não se coloca no país”, graças a um conjunto de factores sociais, sociológicos, políticos e culturais.

No passado, o país já conheceu episódios de perseguição religiosa, nomeadamente com a entrada da Inquisição no séc. XVI, e também no século passado houve alguns episódios de perseguição a Protestantes e aos Rabelados, mas que foram, como insiste, “locais e esporádicos”.

“O salto para a independência deu-se sob o signo da laicidade do Estado e com um regime jurídico propício à liberdade religiosa” e as liberdades civis e políticas após a transição democráticas “não compaginam com as práticas de intolerância ou de perseguição religiosa”.

Assim, e fruto de todo este contexto, Cabo Verde “mostra-se ao mundo como um exemplo de tolerância e sã convivência entre religiões.

Em Cabo Verde 77% da população é católica, 10% é protestante, 2% é muçulmana e 11% não se identifica com qualquer religião, de acordo com dados avançados por Andyra Lima.

* Alterado a 26/09. A versão original referia que Andyra Lima era representante do Ministério da Cultura. Ora, de acordo com retificação enviada pelo Ministério da Cultura e Indústrias Criativas, "os representantes do Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas no respetivo evento foram Jairzinho Pereira e a Dra. Sandra Mascarenhas do Instituto do Património Cultural". 

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Autoria:Sara Almeida, Sheilla Ribeiro,25 set 2022 8:47

Editado porA Redacção  em  15 jun 2023 23:28

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