Uma obra imprescindível e de consulta obrigatória

PorAntónio Monteiro,16 jun 2019 9:49

O livro "O Ensino Superior em Cabo Verde: génese e desenvolvimento" de quase quinhentas páginas resulta de um aturado e silencioso trabalho de anos nos arquivos e que finalmente vem pôr à disposição dos interessados informações importantes para estudo e reflexão para futuras tomadas de decisão em matéria do ensino superior em Cabo Verde.

Uma das principais conclusões a que chegou a autora é que o primado do ensino superior foi percecionado de forma inequívoca desde os primórdios da independência de Cabo Verde, uma vez que a formação de capital humano, enquanto recurso fundamental para a valorização da sociedade cabo-verdiana, tem sido uma constante ao longo da história do país. Entretanto, Adriana Carvalho reconhece que durante esta trajectória foram-se instalando “processos de acomodação a uma retórica formal – objectivos grandiosos, excelência de realizações, investimentos na investigação, multiplicação de cursos com escassez de planificação, de escrutínio, regulação, avaliação e resultados”. Não obstante, a historiadora da educação não tem dúvida que o futuro do ensino superior em Cabo Verde é promissor, mas para isso tem-se de substituir essa ambiciosa retórica por uma visão pragmática, prospectiva e integrada. A obra será apresentada na Praia no dia 17 no Auditório da Reitoria da Uni-CV e no Mindelo no dia 19 no Auditório da Faculdade de Educação e Desporto da Uni-CV.

O Ensino Superior em Cabo Verde: génese e desenvolvimento”. É o livro que faltava para a melhor compreensão da trajectória do ensino superior em Cabo Verde?

Não! É apenas um livro, que contém uma síntese explicativa do processo de construção do ensino superior, que resultou de um trabalho de anos nos arquivos, onde rastreei, analisei e seleccionei as fontes que foram alicerçando o conhecimento dos antecedentes históricos do actual estádio do ensino superior público no país. No fundo, nada mais fiz do que tentar pôr em prática, a máxima, tantas vezes ensinada aos meus alunos, “a história faz-se com documentos”.

Quais as principais conclusões a que chegou nas três sequências temporais focadas no livro?

Permita-me, antes de responder à sua pergunta, que identifique as três sequências temporais focadas no livro. A primeira tem como marco inicial o ano da independência, embora, nalguns casos recue à época colonial, e termina em 1990, ano da publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo; a segunda desenvolve-se até 1999, quando a Lei de Bases integra e desenvolve o subsistema ensino superior e a terceira, focada no ensino universitário, decorre de 2000 a 2016. Agora, que conclusões? Se não se importa vou ler algumas notas que coloquei no epílogo da 1.ª parte. Parece-me evidente que “a formação de capital humano, enquanto recurso fundamental para a valorização da sociedade cabo-verdiana, tem sido uma constante ao longo da história da nação”; logo, “o primado do ensino superior foi percecionado de forma inequívoca desde os primórdios de Cabo Verde independente”. Também me parece importante destacar a singularidade do processo…, “o ensino superior instalou-se no país, antes da sua concretização legal, graças a manifestações de vontade da cidadania esclarecida, ousadas e pragmáticas, chanceladas por políticas públicas de desenvolvimento integral do sistema educativo”. O ensino superior actual é, assim e, naturalmente, “tributário da perceção e da forma como os sucessivos governos (do país e das instituições de ensino superior) procuraram responder aos objectivos de promoção da ciência, de inclusão no acesso ao ensino superior e de melhoria dos níveis de qualificação da população cabo-verdiana”. Porém, reconheço que se foram instalando “processos de acomodação a uma retórica formal – objetivos grandiosos, excelência de realizações, investimentos na investigação, multiplicação de cursos (para quem? para quê? qual a relevância?) – com escassez de planificação, de escrutínio, regulação, avaliação e resultados”.

A investigação a que lançou mão tem matéria que dava para dois ou três livros. Porque optou por reunir as quase 500 páginas num único volume?

Cedi à tentação fácil de transformar este trabalho em dois livros. Explico melhor, o livro tem duas partes distintas que podem ser lidas autonomamente. Isto é, se quisermos, podemos ler primeiramente a II Parte que descreve as instituições públicas de formação que vieram integrar a Uni-CV e depois, em qualquer momento, a I Parte onde se analisa a trajectória da construção do ensino superior ao longo de mais de 40 anos. Pode-me perguntar, “então porque as reuniu num livro?”. Porque se relacionam, complementam e dialogam entre si. A II Parte enquadra o aparecimento, evolução e extinção de cada instituição de ensino superior. Mas elas já aparecem ao longo da I Parte integradas em ciclos de desenvolvimento. Dou um exemplo. No 1.º capítulo refere-se ao reconhecimento, no ano da independência, da Escola de Cabotagem e à sua transformação, anos depois no Centro de Formação Náutica. Muitas páginas depois, no 2.º capítulo há um apontamento da transformação deste centro num instituto superior politécnico, já nos anos 90. A integração do Instituto Superior de Engenharia e Ciências do Mar na universidade pública é abordada no 3.º e último capítulo. Ora, se o leitor tiver interesse em aprofundar a história das instituições que se dedicaram às Ciências do Mar, encontra-a condensada numa monografia na II Parte.

O seu livro abrange várias décadas. Começa com a análise do sistema escolar nos últimos anos da administração colonial e vai até aos nossos dias. Quais foram as maiores dificuldades nos trabalhos de investigação?

Os arquivos. As instituições de formação ainda não dispõem de arquivos organizados, saneados e apetecíveis para a investigação. E não falo só de arquivos com documentação antiga. Falo de arquivos recentes. Infelizmente, tem-se verificado uma prática trágica (desculpe o exagero). Muitas vezes, quando se muda de director ou de espaço num serviço público, esvaziam-se os armários e acantona-se a documentação “que já não interessa” em locais, geralmente, inacessíveis e insalubres. Quando a humidade começa a minar os papéis, são deitados fora. Mas, como sou optimista por natureza, quero dar um contraponto que facilitou muito o meu trabalho, refiro-me à acessibilidade fácil à legislação na plataforma Legis Palop e à imprensa no quiosque digital recortes.cvBETA, hoje, parece que inativo. Nestes domínios foi muito fácil investigar.

O “Ensino Superior em Cabo Verde” dedica cerca de 50 páginas ou mais a memórias pessoais e institucionais de entidades que participaram em todo o processo ao longo do tempo. Como justifica essas 50 páginas?

Como também disse, muitas vezes, aos meus alunos, a história não se baseia apenas em factos e nos documentos que os perenizam. A história precisa de vida, de ser contaminada pela percepção das pessoas que a viveram e a recriaram com a inevitável subjectividade das memórias. De forma muito tímida, recorri à história oral, a memórias pessoais, escritas e orais, e a novos olhares sobre os acervos que fui encontrando. Correndo o risco de ser imodesta, julgo que esta é uma inovação do livro, porque acrescenta conhecimento, compreensão e ciência para além da narrativa.

Quem são essas pessoas e que mérito tiveram na génese e desenvolvimento do ensino superior em Cabo Verde? E as entidades institucionais?

Parece simples, mas é uma pergunta complicada. Em primeiro lugar a identificação das pessoas que entrevistei ou a quem pedi reflexões não tem a pretensão de ser uma amostra, em sentido técnico, e foi uma escolha minha, inteiramente pessoal. Pedi a colaboração de pessoas que exerceram cargos de decisão ao longo do processo de construção do ensino superior, ministros da educação, reitores, directores de instituições. Tenho o privilégio de contar com o pensamento dos ministros da Educação e do Ensino Superior Carlos Reis, Manuel Faustino, José Luís Livramento e António Correia e Silva e de reitores e directores, concretamente além do primeiro reitor da Uni-CV, o Correia e Silva, Paulino Lima Fortes e José Maria Neves, este na qualidade de Director do CENFA que deu origem à Escola de Negócios e Governação. Consegui captar memórias e reflexões de notáveis académicos portugueses, que estiveram connosco nesse percurso com solidariedade e uma exemplar cooperação académica. Refiro-me, nos primórdios desta história a Jorge Veiga e Maria Luísa Veiga, Vice-Reitor e Professora da Universidade de Coimbra e, mais recentemente, ao Professor José Esteves Rei, que felizmente continua a colaborar com a Uni-CV. O volume dos depoimentos e textos – as 50 páginas de que fala – justifica-se pelo interesse histórico dos depoimentos e textos escritos, pelas questões novas que colocam e sobretudo pelas pistas que trazem para um discurso novo, mais científico e mais amadurecido sobre o ensino superior, no passado e no presente.

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Foi acertado designar Universidade de Cabo Verde à Uni-CV?

Mais uma questão enganadoramente simples. A resposta imediata é sim, julgo ter sido acertado. Salvo melhor constatação, a primeira denominação dada a uma instituição de modelo universitário foi a de Estudos Superiores de Cabo Verde, no Projecto Educação I (finais dos anos 80) que reconfigurou estruturalmente o sistema educativo. Mais tarde, em dois estudos técnicos solicitados à Fundação Gulbenkian, sob a coordenação dos Professores Marçal Grilo e Victor Crespo, surge a designação Instituto Universitário de Cabo Verde (anos 90). Foi João Manuel Varela quem, em minha opinião, consagrou o nome actual da universidade pública no artigo “Uma visão da Universidade de Cabo Verde”, publicado na revista Anais (fim dos anos 90). A partir desse marco e depois de o nome ter sido vulgarizado num fórum internacional, se não me falha a memória em 1999, a referência à Universidade de Cabo Verde generaliza-se, torna-se natural e foi consensualizada. A criança teve nome antes de nascer. Se o nome foi acertado? Julgo que sim, pois foi o coroar de um processo nacional que mobilizou a sociedade e a cooperação internacional. O peso do nome – a Uni-CV tem o nome do país – traz-lhe a grande responsabilidade de ter de ser uma instituição-referência. No entanto, a carga simbólica do nome poderá torná-la hegemónica e centralizadora, podendo, eventualmente, colidir com outras iniciativas públicas que certamente virão. Note-se que as universidades por tradição, que remonta à Idade Média e ao Renascimento, têm geralmente o nome das cidades onde se instalaram. Universidade de Bolonha, de Coimbra, de Oxford, de Lisboa, de Luanda, de Brasília, etc, etc…

Qual a sua perspectiva pessoal sobre o futuro do ensino superior em Cabo Verde?

Sem dúvida promissor. Mas, para que o desejo se torne realidade tem de se perspectivar o ensino superior com pragmatismo e modernidade. Tem de se substituir a ambiciosa retórica, os desígnios grandiloquentes e os exercícios de planeamento desprovidos de metas possíveis e de indicadores de impacto, por uma visão pragmática, prospetiva e integrada (fundamentos das políticas de C&T, recursos humanos, financeiros e institucionais, cooperação internacional, aspirações da sociedade). Com os olhos no futuro. Existem condições para tal, o Plano Estratégico da Educação e do Ensino Superior no horizonte 2021, a Agência de Regulação do Ensino Superior, finalmente em funções e um projecto importante, o do Campus do Mar. A nova agenda para o ensino superior tem de ser alicerçada numa avaliação independente das instituições públicas e privadas, que permita a todos nós a leitura dos resultados e das consequências para que as universidades se tornem mais cultas, mais eficazes e internacionais. Há, porém, que dar atenção a questões “mal resolvidas” que subvalorizam o modelo de ensino superior público instalado. Importa conhecer-se com a precisão possível a relevância e empregabilidade dos cursos disponibilizados pelas instituições de ensino superior; importa resolver-se o dilema – existe ou não investigação nas nossas universidades? – com agendas que tenham impacto efectivo na superação do atraso estrutural em Ciência &Tecnologia.


A autora

Maria Adriana Beirão Gonçalves Sousa Carvalho nasceu na Figueira da Foz (Portugal) e reside em Cabo Verde desde 1978.

É licenciada em História pela Universidade de Coimbra, com mestrado e doutoramento em Ciências da Educação, especialidade História da Educação, pela Universidade de Lisboa.

Dedicou toda a sua vida profissional à educação. Foi professora, técnica e dirigente no Ministério da Educação, tendo exercido o seu último cargo como Vice-Reitora da Universidade de Cabo Verde.

É autora de livros e dezenas de artigos científicos sobre a historiografia educativa cabo-verdiana. Interessa-se pelos estudos etnográficos, tendo dado à estampa, com Ana M. Sousa, o livro “O Objeto e a Escrita”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 915 de 12 de Junho de 2019. 

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Autoria:António Monteiro,16 jun 2019 9:49

Editado porFretson Rocha  em  16 mar 2020 23:20

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