Esta coleção é o resultado uma parceria entre o Expresso das Ilhas, o Público e a Editora ‘A Bela e o Monstro’. Como é que se cruzam todos os envolvidos, incluindo o professor Brito-Semedo?
Tudo começou com um projecto do Fado. O presidente do conselho cientifico da candidatura a património imaterial da humanidade, o musicólogo Rui Vieira Nery, tinha um trabalho inédito para uma história do Fado e a Editora ‘A Bela e o Monstro’, que já trabalhava com o Público e tem feito trabalhos desse tipo, resolve fazer uma colecção de 17 volumes, cada um deles sendo um capítulo desse livro inédito, com a oferta de um CD de fado. Isso aconteceu em 2004. O Fado é elevado a património imaterial da humanidade em 2011. Foi uma experiência bem sucedida. E em 2014, Portugal viu reconhecido o Cante Alentejano. Então, em 2018, decidiram repetir a experiência que tinham tido com o Fado e os responsáveis pelo dossier do Cante Alentejano – a musicóloga Salwa Castelo-Branco e o antropólogo Paulo Lima – organizaram quatro volumes para assinalar os quatro anos da elevação do Cante. Com essa experiência de sucesso, em 2018, organiza-se o dossier da morna de Cabo Verde e é o antropólogo Paulo Lima que é convidado para trabalhar no dossier da Morna. Mas como entra o Expresso das Ilhas? Em experiência anterior da Editora “A Bela e o Monstro”, com o Público, para assinalar os 800 anos da Língua portuguesa, foram editados autores da língua portuguesa, entre os quais Baltasar Lopes e o livro Chiquinho. Houve a coincidência de ter havido um encontro com o então director do Expresso das Ilhas, António Monteiro, e surgiu a proposta de fazer a distribuição do “excedente” dessa iniciativa em Portugal, em Cabo Verde. Foi um sucesso. Em duas semanas o EI distribuiu, através da sua rede, 1200 exemplares de Chiquinho, um livro há muito esgotado, de leitura obrigatória e que não estava no mercado. E por um preço acessível: 500 escudos. Estávamos em 2016, no aniversário redondo dos 80 anos da Claridade. É quando começo a colaborar com o Expresso das Ilhas e pegamos nisso como um projecto maior, que não foi só de distribuição do Chiquinho. Foram-se então fazendo outras coisas para assinalar os 80 anos de Claridade. É daí que surge, em colaboração com “A Bela e o Monstro”, a edição fac-similada da Claridade. Sucederam-se outros projectos. Quando surgiu a proposta da Morna a Património da Humanidade, organizou-se o dossier, e ‘A Bela e o Monstro’ propôs, a quem já tinha experiência de trabalho, pegar nesse projecto agora a três: com o Público e o EI a serem os promotores. Como eu já estava no EI, o meu trabalho já era conhecido e havia necessidade de uma pessoa para fazer isso, foi proposto ser eu o responsável por isso.
Surge então esta colectânea. Qual considera ser o maior contributo deste projecto tanto para quem vai usufruir dele – o leitor e o ouvinte – como para o país?
É a primeira vez que é feito um trabalho sistematizado e de investigação sobre a Morna com o intuito da sua divulgação. Há a tese de doutoramento do Moacyr Rodrigues, os livros de Morna de Vasco Martins e pouco mais, mas numa perspectiva diferente, e achamos, que para além de ser novidade, esse modelo de ter um livro com um CD, conjugando as duas coisas... Porque não é um livro com oferta de CD, nem é um CD com oferta de livro, mas um projecto único, cujo resultado é texto, imagem e som. O resultado está aí, para mostrar que é possível envolver as pessoas, envolver a sociedade civil, ver de quem são as competências e criar uma sinergia para produzir e não fazer em termos individuais. Na verdade, acabamos por criar um grupo muito mais alargado do que este núcleo que produziu isso, o que mostra que é possível fazer coisas bonitas. E esta é uma coisa muito bonita, para Cabo Verde e para os cabo-verdianos. Concebemos o projecto de forma a que pudesse dar cobertura aos períodos da Morna. E vai perguntar, mas porquê cinco...
Sim, essa era a pergunta seguinte...
Já expliquei 17 (do Fado) e quatro (do Cante Alentejano). Eu dou uma resposta talvez mais romântica: as cinco letras da Morna. Os cinco dedos que dedilham um violão para tocar a morna. Então, construímos este projecto, para ser interessante, com uma linguagem acessível –não de livro, nem para especialistas, uma linguagem do jornal – e seguindo uma lógica de envolvimento das pessoas. Envolvendo compositores acessíveis, os contactos... A pessoa que melhor conhece a morna, em termos de discografia e da foneteca da rádio, foi envolvida para ajudar na selecção. Falo do Francisco Sequeira, que tem um programa na rádio sobre discos vinil. O George Nunes, engenheiro de som, também foi envolvido. Trabalhamos essa vertente cá em Cabo Verde e depois a editora finalizou o produto com uma empresa em Portugal. E temos o produto para ser apresentado.
Foi, portanto, um projecto participativo?
Sim. O projecto foi discutido com as pessoas que conhecem a questão da morna, desde São Vicente à Praia. O Vasco Martins, o Eutrópio Lima da Cruz, o Djick Oliveira, compositores da nova morna, como o Betú e o Nhelas Spencer. Envolvi o músico Manuel de Candinho, o Kaka Barbosa, o Daniel Rendall... fui envolvendo pessoas para ouvir a opinião sobre a estrutura e também para ouvir a sua opinião sobre o que devia entrar e o que não devia entrar. Inclusivamente, como este projecto acaba por ser bilingue, temos a morna na versão mais aproximada do correcto, do original, e há uma versão em tradução livre em português. Esses autores acabaram por dar o aval sobre essa tradução que foi feita. Portanto, é um trabalho que envolveu muitas pessoas. E tem uma outra parte, muito bonita, que é a vertente visual. É visualmente muito bonito. Temos pintores como Kiki Lima que já tinha feito trabalhos e exposições sobre a música e sobre a morna em São Vicente. E de Toy Firmino, que conta a história da morna, em quadros que juntam figuras de São Vicente. Temos, por exemplo, B.Léza, Baltasar Lopes, Gilberto Freyre, num quadro de Firmino, porque houve um momento nos inícios dos anos 50, em que eles se teriam cruzado lá em São Vicente. Temos também ilustrações muito bonitas do Yuran. H [cartoonista do EI]. É um trabalho muito, mesmo muito, bonito, com um design gráfico também extraordinário.
E o som?
Em termos de qualidade do som, vai-se buscar músicas antigas, que (passo a expressão) já estavam escuras em termos da qualidade do som, e também na nossa memória, e recuperamos vozes. Temos de ter em conta que há que salvaguardar os interesses e os direitos autorais. Então tudo isso foi conjugado, com essas pessoas que foram dando a sua opinião, fomos discutindo para termos esse produto acabado.
Suponho que uma das partes mais difíceis deste processo tenha sido a seleção das músicas. Como foi feita essa escolha?
São 12 gravações por disco. À medida que nos fomos aproximando do presente, fomos tendo cada vez mais dificuldades na selecção...
O tempo já tinha peneirado as outras?
Precisamente. Então fomos tendo dificuldade. A dificuldade foi tanta que, para dar a ideia de que há continuidade e um novo processo em termos da morna, no último volume fala-se dos “novíssimos”, como lhes chamei. E acabamos aqui por incluir mais quatro faixas. Não foi possível mais, porque há um limite do próprio CD que é 80 minutos. Mas queríamos com isto dizer que este projecto não acaba, que é possível continuá-lo. Fizemos este percurso. Agora, na selecção entra também a subjectividade. As mornas que têm a ver com a nossa infância, que têm a ver com a nossa história. Uma subjectividade, cruzando a opinião dos outros que participaram nesse processo e com as limitações e dificuldades encontradas, mesmo em obter as gravações. Tivemos que fazer opções, conjugando tudo isso. Mas, sim, acaba por ser, ao fim e ao cabo, uma escolha pessoal. Outras pessoas poderiam ter escolhido outras músicas. Escolher 12 músicas por período é extremamente difícil e complicado.
Conta-se aqui, sob um certo olhar, a história da Morna que, como o professor tem insistido, se entrelaça de forma indissociável com a do povo cabo-verdiano. É ‘a alma de um povo’, que aliás é o título que dá ao volume. A pergunta é: mas de que maneira se distingue a morna dos outros géneros tradicionais como o batuko ou o funaná? Não podem todos eles reivindicar ser essa alma?
O povo cabo-verdiano é um povo crioulo, de mistura, de cruzamentos. E a sua identidade é a língua e a música. Na morna temos as duas coisas juntas...
Nos outros géneros musicais também...
Mas é essencialmente essa miscigenação, esse processo de miscigenação, toda essa abertura ao mundo, através dos portos, das ilhas. Temos de entender que nós não somos isolados, estamos relacionados com o mundo e com a história do mundo. Se nós formos a ver Boa Vista e Brava, a nossa ligação com o mundo, através da emigração, mas começando pela pesca da Baleia, ou das moias – que são os naufrágios – é aí que se pega, em termos da origem da morna. É equiparado ao que se passa em Portugal com as viagens dos marinheiros da época dos descobrimentos, a saudade... Esses géneros de que falou, a música de Santiago – e outras – têm outras características. Não são uma música que é generalizada a todas as ilhas. A morna tem essa capacidade: de ser de todas as ilhas, ter representantes em termos de instrumentistas, em termos de intérpretes, em termos de composições, de todas as ilhas. Essa é mais regionalizada. Houve um salto grande depois da independência. A morna é essencialmente urbana e, pelo menos a partir de 1910, os textos são fixados, são escritos, o que tem a ver com a escolarização, com essa nossa vantagem de muito cedo Cabo Verde ter tido escola e uma elite letrada, para produzir isso. Só como exemplo, em 1910 José Bernardo Alfama publicou Canções crioulas e músicas populares de Cabo Verde.
Os volumes, como referidos, seguem uma ordem cronológica. O que nos poderia avançar sobre esses cinco volumes?
O primeiro, procura explicar a origem da Morna e faz uma comparação entre as composições da Boa Vista e da Brava. O CD é composto por seis mornas de cada uma destas ilhas, para se poder perceber as mudanças. Depois temos São Vicente. Avançamos em termos temporais e estamos já a apanhar o período a partir dos anos 30. Vamos até 50, com B.Léza, que morre em 58. É a altura em que o Porto Grande, que já vinha sofrendo uma queda desde finais de 20, de facto, decai. Em 59 já não há grande coisa. Começam os 60s, e há a emigração. Aí entra a geração de Manuel d’Novas. A morna, urbana, também na Praia, com Anu Novu, por exemplo. É todo um outro contexto social e é gente que emigra. Portanto, vamos de 60 e chegamos à independência e à gente nova que vai estudar fora, porque há possibilidades de bolsas de estudo. E há influências de fora do país. Quando voltam nos anos 80, 90, têm todo esse processo porque já passaram, músicos como Nhelas Spencer estudou música na Roménia e o Betú que é mais novo... Penso que dessa época, quem não saiu foi Antero Simas. Esses são os principais e já produzem uma morna diferente. Estamos a viver um outro contexto. Cabo Verde já é um país independente e já passou, inclusive, aquela fase de estarmos enfeudados a um ideal mais africano que foi trazido com a independência e que é a reafricanização dos espíritos. É mais do mundo. É um outro tipo de morna...
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 939 de 27 de Novembro de 2019.