Reconstruindo Chã/Reerguendo Preguiça, é o tema da mostra que abre esta quarta-feira, na Assembleia Nacional, e que pretende mostrar “o trabalho invisível” feito e a fazer [ver entrevista com Leão Lopes] nas duas localidades.
Num rápido enquadramento político, o programa do governo elegeu como um dos eixos prioritários a preservação, a valorização, a regeneração e a redinamização de comunidades e sítios de valores histórico-culturais, com especificidades intrínsecas. Entre as comunidades abrangidas estão os residentes no Parque Natural da Cratera de Chã das Caldeiras, na ilha de Fogo, e a comunidade residente na localidade de Preguiça, município de Ribeira Brava, na ilha de São Nicolau.
Considerando a complexidade e a diversidade das iniciativas, foi convidado um conjunto de instituições universitárias, fundações, e outras instituições. Entre as entidades parceiras está o M_EIA – Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura, que tem actuado tanto no diagnóstico, planeamento, implementação e monitorização de acções, como na definição de planos de intervenções específicos, tanto em Chã das Caldeiras – Projeto de Desenvolvimento Integrado, Redes Técnicas e de Assentamento Populacional, como na Preguiça – Plano de Desenvolvimento Integrado e de Salvaguarda (PDIS).
Chã das Caldeiras
Chã das Caldeiras mudou no dia 23 de Novembro de 2014, naquela que ficou conhecida como a “erupção esquecida”, nome dado pelo geógrafo francês Christophe Neff. O rio de lava levou à frente povoações, destruiu campos agrícolas, obrigou à deslocação de mais de 1000 pessoas e só parou setenta e oito dias depois.
As consequências económicas foram devastadoras. Nos sectores produtivos, as maiores perdas verificaram-se na agricultura, 24% dos terrenos foram devastados e perdeu-se a maior parte dos equipamentos sociais.
No turismo, os danos foram totais, com a perda de 14 estabelecimentos, 6 restaurantes, 2 bares, um posto de informação turística e o Centro de Interpretação do Parque Nacional do Fogo.
Apesar das erupções vulcânicas recorrentes dos últimos séculos, os habitantes de Chã das Caldeiras, assumem as destruições causadas pelas torrentes de lava como parte do temperamento do local e da sua cultura, e não renunciam a refazer as vidas e habitações no sopé do vulcão - embora sem organização prévia nem a elaboração de um planeamento que estruture a região em função do risco vulcânico e da importância do património natural e humano da comunidade.
É neste contexto que surge o Plano de Desenvolvimento Integrado de Chã das Caldeiras, que assume este histórico das pessoas como referente. No processo é contratada a GESPLAN (empresa pública de gestão do território do Governo das Canárias) para elaborar o Plano Detalhado de Chã das Caldeiras e o M_EIA para instalar na comunidade um Gabinete Técnico com o objectivo de desenhar e implementar algumas das acções definidas no Plano Detalhado.
Preguiça
Já a aldeia da Preguiça, cujo porto viu flutuar bandeiras de piratas e serviu de abrigo para a frota de Pedro Álvares Cabral, transformou-se, com o tempo, num conjunto de casas arruinadas.
A década de 40 marcou o início da perda de importância da Preguiça e da própria ilha de São Nicolau. O seminário já tinha sido fechado. Os depósitos de carvão acabam por ficar em São Vicente. O bispado sai. O porto principal deixa de ser a Preguiça e passa a ser o Tarrafal. Quando isso acontece, a Preguiça entra em total decadência.
Entretanto, o M_EIA, o Atelier Mar e o Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra juntaram-se para mudar a localidade, respondendo a uma solicitação do MIOTH e da Câmara da Ribeira Brava. O trabalho começou em Setembro de 2018, nos gabinetes das academias, e em Dezembro do mesmo ano continuou no terreno.
A natureza demográfica da Preguiça impôs o primeiro objectivo do projecto: melhorar a condição de vida dos pescadores. E uma intervenção prioritária: o porto. Mas estas foram as ideias iniciais. Entretanto, o plano evoluiu, mudou paradigmas e intenções, procurou soluções que trouxessem sustentabilidade. A resposta foi encontrada no turismo e na transformação de uma zona em pedaços num espaço atractivo. Estava criado o laboratório da Preguiça.
As peças começam a encaixar: pesca artesanal, património, turismo, desenvolvimento, e o que parecia um quebra-cabeças complicado revela-se um puzzle onde tudo vai tendo o seu lugar.
“Devemos contar com o tempo de uma geração para perceber o impacto nas localidades”
Porquê fazer esta exposição? Para dar visibilidade a um trabalho 'invisível' que está a mudar comunidades?
Sim, é isso mesmo. Para nós a exposição representa o dever de dar visibilidade, um dever de mostrar o resultado (ainda em curso) de uma intervenção de interesse público nessas duas comunidades. Estamos a dar conta disso, do percurso feito até agora. Na esperança que seja entendido e que possa continuar a ser estimulado e apoiado. São projectos que se sustentam, como diz, num trabalho “invisível”, às vezes até difíceis de materializar por nós próprios. O actual Governo confiou em nós, na nossa experiência enquanto ONG e instituição universitária, que há vários anos actua em projectos dessa natureza. Contudo, sabemos, que há ainda no país alguma dificuldade em compreender a complexidade da sua natureza holística. Ou seja, ver, diagnosticar, projectar e actuar numa (e com) uma comunidade como um todo orgânico. Com as pessoas, seus problemas, suas ansiedades suas projecções ou expectativas. O nosso trabalho assenta numa metodologia de investigação aplicada actuando em várias disciplinas: da antropologia cultural à economia, passando pela pedagogia, pelo design, pela educação, museologia e património, arte, arquitectura, agricultura, ambiente, etc. Envolve sempre equipas multidisciplinares e actuamos de corpo inteiro no seio das comunidades onde os projectos se instalam.
Como está a situação na Preguiça? Ou, por outras palavras, como está hoje a Preguiça do futuro?
Interessante esta última parte da sua pergunta: como está hoje a Preguiça do futuro. Em obras, diria. A Preguiça do futuro está em obras. Depois de muito sonhada, em especial pelos seus habitantes, pelos sanicolaenses e por todos nós, eis que já se vislumbra uma vila com identidade a escrever um novo capítulo de sua história. Começamos as obras pela reabilitação do edifício da Alfândega Velha, o mais emblemático de todo o conjunto arquitectónico da zona baixa da vila. De restos de parede de pedra e barro que resistiram ao tempo, à espera deste momento, as obras já estão numa fase bem adiantada. As do Espaço Público decorrem em bom ritmo, a partir da marginal, a Unidade de Processamento de Pescado quase a arrancar. São dez projectos que a seu tempo vão ganhando vida e dando corpo ao futuro da Preguiça.
Estes projectos - Chã e Preguiça - dependem muito da comunidade, ou seja, vão ser aquilo que a comunidade local quiser.
Na verdade o futuro e a sustentabilidade desses projectos dependem muito da comunidade destinatária e fruidora dos seus resultados. O empenho e as boas intenções da iniciativa política, o bom design das soluções, o espírito de envolvimento e dádiva pessoal de cada um dos técnicos na realização dos mesmos, não é suficiente. As comunidades diferem sempre uma da outra. Pela sua história, pelos seus conflitos intrínsecos, pelos diversos interesses em jogo que se acentuam e se aprimoram com o desenvolvimento endógeno de cada uma delas. É preciso ter em primeira linha de conta a história social e económica do local; o empenhamento de cada família na educação dos filhos. Para nós, a educação é o garante da sustentabilidade de todo esse empenho e investimento. Chã é muito diferente de Preguiça, uma comunidade relativamente recente, mais complexa, que convoca a participação mais perene no lugar de disciplinas das humanidades como a sociologia e a antropologia. Preguiça, também com a sua complexidade como qualquer outra, o que lhe dá caráter é o mar que se estende à sua frente, a sua história de séculos, um porto que no passado ligou as ilhas ao mundo.
Não nos é fácil medir o entusiasmo das pessoas, muitas vezes elas parecem-nos mais cépticas que entusiastas. Pelo longo tempo de promessas e expectativas chegam a um estado de espírito que às vezes as inibem de manifestar. Mas quando se convencem que com as acções as suas vidas estão a mudar para melhor, são capazes de reconhecer e manifestar algum entusiasmo. Creio que isso é próprio da idiossincrasia do cabo-verdiano. Há sempre aquelas que são positivas e entusiastas desde o início. Essas são o nosso suporte, que nos dá alento e anima o espírito de participação. Tornam-se por isso companheiros, verdadeiros promotores e agentes do desenvolvimento de seus lugares.
Acha que está próximo o objectivo traçado com estes projectos: preservar para viver melhor?
Próximos não diria. Há muito caminho para andar da nossa parte e muito mais da parte das comunidades envolvidas. O objectivo geral nesse tipo de projectos é de longo alcance, especialmente, ao nível de políticas públicas. Pela nossa experiência devemos contar com o tempo de uma geração para se perceber o impacto das soluções desenhadas e das inovações experimentadas nas localidades. Onde foi justo e acertado actuar, onde se devia investir mais, onde não fomos suficientemente capazes de intervir por faltar ciência e conhecimento. Ainda não existe no país suficiente maturidade política para a compreensão do alcance desse modelo e metodologia em programas de desenvolvimento local, bem como a importância do envolvimento das instituições académicas nesses processos. Preservar é um processo sem fim à vista, é já, por si, uma razão para viver melhor. Preservar é segurar o futuro cuidando do passado e do presente. Possivelmente, é nessa dinâmica que reside o sentido da vida e de viver melhor.
Leão Lopes, tem desenvolvido, ao longo dos anos, uma intensa actividade nos domínios da criação artística, assim como na docência e investigação aplicada a acções de desenvolvimento de comunidades rurais e urbanas em Cabo Verde. É membro fundador do Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura (M_EIA) e da ONG AtelierMar e um dos rostos por trás da renovação de Chã das Caldeiras e da Preguiça.