“A educação é a única possibilidade de mudança”

PorJorge Montezinho,29 set 2024 8:38

Criado em 1979, em São Vicente, o Atelier Mar é uma escola, não como as outras, mas onde se experimenta e se ensina, onde se estimula a auto-realização e se apoia o desenvolvimento comunitário. Desenvolve formação em serigrafia, pequena carpintaria, vídeo e diaporama, design gráfico e de equipamentos, design de habitação e fabricação de materiais de construção com tecnologias adaptadas, bem como tecnologias alternativas para a actividade agrícola. Destacam-se os programas de cerâmica, madeira e pedra. Ao mesmo tempo, procura contribuir para o desenvolvimento sustentável das comunidades e grupos com quem trabalha, valorizando o artesanato, o design e a cultura como pilar de desenvolvimento. Por trás do Atelier Mar há um nome, Leão Lopes, que guiou o Expresso das Ilhas por estas quatro décadas e meia.

Quando o Atelier Mar foi criado, qual foi a motivação?

A motivação foi esta terra. Estávamos nos primeiros anos da independência e regressei para participar. Vim fazer os meus 30 anos aqui, imagina. Nessa altura, essas utopias é que mexiam connosco. Eu regressei a convite de um projecto do governo, em Santiago, que arrancou, mas pouco depois o governo o suspendeu. E creio que todo o mundo pensava que, não havendo projecto, eu iria regressar para Portugal, onde já era professor. Mas as pessoas não sabiam que eu vim para participar, como toda a gente, na utopia de construirmos o nosso país, onde todos pudéssemos estar envolvidos, cada um com aquilo que sabia, com o seu entusiasmo. O Atelier Mar nasceu neste contexto. Muita gente ainda tem dificuldade em compreender a natureza do Atelier Mar. O Atelier Mar, na verdade, foi uma escola, ou é, porque o propósito foi educativo, formativo, e através de tecnologias que não eram muito experimentadas aqui, ou desconhecidas na área da criação artística ou do artesanato, eu poderia dar a minha contribuição. E foi assim. O Atelier Mar nasceu. Era a única forma também de eu continuar aqui como queria, como me determinei continuar a minha vida aqui em Cabo Verde, porque não tinha outro tipo de compromisso. Montei esta minha trincheira, como lhe chamava na altura, e as coisas progrediram, desenvolveram-se, até chegarem aqui.

São Vicente é também o berço da revista Claridade. O professor é um dos estudiosos da Claridade. Li uma entrevista sua em que disse que a Claridade foi para lá da literatura. Quando olhamos para o Atelier Mar vemos também a miríade de coisas em que tem trabalhado, mas todas muito próprias de Cabo Verde – como os claridosos defendiam a causa do povo cabo-verdiano na sua luta pela afirmação de uma identidade cultural autónoma baseada na criação da cabo-verdianidade. Bem, fui dar uma volta grande para questionar se o Atelier Mar é também influenciado pelo movimento claridoso.

Eu vim na verdade conhecer a claridade, a descobrir a claridade, aqui em Cabo Verde. Sai daqui muito novo e só regressando é que descubro e começo a aprender com a claridade e com esse movimento. Sobretudo, porque tive o privilégio de conviver e tornar-me amigo dos vivos ainda. Manuel Lopes, Baltasar Lopes, Aurélio Gonçalves, Teixeira de Sousa. Estava com Nhô Roque e Baltasar todos os dias, ou quase todos os dias. Imagina o privilégio que tivemos nessa altura, nos primeiros anos da independência. Lembro-me que, sobretudo Aurélio Gonçalves – Nhô Roque, foi o primeiro com quem comecei a discutir as ideias que queria desenvolver no Atelier Mar e ele animava-me imenso. E visitava-me sempre. Tanto é que há 45 anos, ele é que fez o discurso da apresentação do Atelier Mar ao Mindelo. Foi assim que arrancamos publicamente. Portanto, a atmosfera nesse tempo era essa, era uma atmosfera criativa, entusiástica, toda a gente se envolvia com entusiasmo naquilo que cada um propunha fazer, nessa linha que os claridosos nos deixaram: descobrirmo-nos a nós próprios, entendermos quem somos, revermo-nos naquilo que ficou um pouco na penumbra, estudar os nossos autores, ouvir as nossas músicas num outro contexto. E não ficar por aí, sobretudo inovar, sobretudo projectar esse pensamento neste novo contexto. Eu penso que isso é que de alguma forma nos norteou, sempre com o estímulo dos mais velhos, porque sempre estivemos próximos dos mais velhos. Queríamos ouvi-los, queríamos perceber como é que viveram esta terra, como é que ainda pensavam esta terra. Talvez você tenha razão que haja aqui uma certa ligação (pausa). O que não estranha, não é? Quer dizer, o que esse movimento, o que esses modernistas dos anos 30 lançaram como premissa para pensar o nosso contexto ainda é de uma actualidade extraordinária. Temos que partir daquilo que somos, daquilo que sabemos e percebermos que estamos no mundo, não estamos isolados.

É interessante o quão avançado estava o movimento claridoso que, não podemos esquecer surgiu nesses anos 30, a defender uma cabo-verdianidade antes de qualquer movimento independentista.

Às vezes quando surgem discussões à volta da chamada negritude, quando a gente não atenta como deve ser nos processos desses tipos de movimento, às vezes a gente descuida-se e fica sem perceber determinadas dinâmicas endógenas, nossas, a sua originalidade, o seu potencial de dinamização da sociedade, etc. Há uma frase do Baltasar, quando foi questionado acerca da negritude, em que ele respondeu: a negritude não nos diz respeito (risos). Há alguns intelectuais que não sabem bem dessa história e que acham que isso é ofensivo. Na verdade, não podia dizer respeito. Por quê? Porque claridade é de longe anterior à negritude. Há um discípulo do Senghor, o grande filósofo e poeta Édouard Glissant [escritor, poeta, romancista, teatrólogo e ensaísta francês, nascido em Martinica. No início adepto das teses de negritude, elaborou o conceito de antilhanidade (valorização da cultura própria, nascida nas Antilhas, considerando o povo das ilhas “autónomo” culturalmente em relação a África) e de crioulização] a quem uma vez, em Paris, um estudioso de Cabo Verde, perguntou-lhe se ele teria conhecido o movimento claridoso, de jovens intelectuais, cabo-verdianos nos anos 30, ele disse que não. Então esse professor explicou-lhe e o Édouard Glissant disse: ah, eu não sabia, eles estiveram de longe para a frente de nós (risos). O pensamento desse grupo estava à frente e nasceu nos anos 30, que é extraordinário. Isso entende-se porque nasceram com os pés no chão, como eles diziam. Nasceram da interpretação, do estudo, da atenção de quem somos nós. E deu de facto resultados que ainda hoje têm uma actualidade extraordinária. Muita gente também confunde alguns aspectos desse movimento. Baltasar dizia que não era um movimento, era um grupo de amigos que questionavam Cabo Verde e questionavam-se a si próprios. Antes de literatos, foram antropólogos, foram os nossos primeiros antropólogos, que é uma abordagem muito importante de se fazer desse grupo. É por isso que os primeiros textos fundamentais que aparecem na revista Claridade são da área da antropologia cultural. Estamos a desviar-nos da entrevista, mas são factos interessantes (risos).

Voltamos então ao Atelier Mar. Já falámos da motivação, agora questiono quais eram as expectativas quando foi criado?

Não sei. Acho que nunca penso nas expectativas. A ideia que eu tenho é que era fazer, não é? Tive o privilégio de desenvolver o trabalho num espaço ideal, num edifício antigo, que tinha uma memória também interessante e que tinha todas as condições para reunir pessoas e formar jovens. E o interessante é que para formar esses jovens trouxe-os para viver comigo. Fizemos aqui uma comunidade. Vinham jovens de Santo Antão, outros de São Vicente e viviam aqui comigo. Levantávamos juntos, comíamos juntos e tinham todo o programa de formação, aberto, em liberdade e isso parece que resultou muito bem. Há uma história, que não é muito conhecida, da minha metodologia de formação aqui com eles. Eles não começaram a aprender técnicas. Eu tinha resgatado o conto de Blimundo. E com base nesse conto montei uma peça. Usando teatro, usando audiovisual, usando expressões várias, e surpreendemos São Vicente apresentando a peça em alguns lugares. Depois fomos convidados para ir para uma ou outra ilha e foi uma grande surpresa porque ninguém sabia que estávamos a fazer esse tipo de trabalho. Depois regressamos e dei-lhes barro para modelarem os personagens que eles trabalharam durante a peça, a partir daí nascia a cerâmica. Não começaram para tecnologia, começaram por um trabalho de educação, podemos chamar educação pela arte ou educação pela expressão, e foi um resultado extraordinário. A partir daí, usei essa metodologia em tudo o que fazemos na área da educação e da formação profissional.

E ao longo destas quatro décadas e meia, por falar em arte, mas podemos também referir o design, ou outras áreas, como foi feita a adaptação às mudanças?

Muito naturalmente. Devemos ter sido a primeira estrutura educativa, ou das primeiras em Cabo Verde, a usar as novas tecnologias digitais. Lembro-me que quando os mais jovens chegavam aqui ao Atelier Mar e encontravam determinado tipo de equipamento, ficavam surpreendidos. A maior parte deles, nessa altura, foi aqui que conheceram o computador, por exemplo. Mas nunca pondo de parte, naturalmente, toda a nossa aprendizagem, todo o nosso património analógico, que ainda hoje desenvolvemos, porque associamos sempre as nossas tecnologias analógicas a esses recursos que hoje podem facilitar, podem enriquecer, às vezes podem até bloquear, mas nós não chegamos a bloquear porque temos sempre presente todos esses recursos que fomos aprendendo e continuamos a desenvolver até agora.

Que projectos ou iniciativas considera mais marcantes nestes 45 anos?

Todas estão ligadas a uma intenção de educação por via da cultura ou por via de tecnologias específicas. Estou-me a lembrar, por exemplo, que em Santo Antão tivemos a oportunidade de ter uma parceria importante com a União Europeia e com uns amigos de uma ONG francesa durante alguns anos e agitamos o Concelho do Porto Novo, trabalhamos em 22 comunidades com umas centenas de pequenos agricultores e essas marcas ainda estão lá. Sob o ponto de vista humano, sob o ponto de vista social, este é um daqueles projectos talvez de maior impacto, porque sente-se nas pessoas, sente-se as tecnologias que foram introduzidas, os hábitos de fazer, os hábitos de transformar. Já o mais estruturante será o M_EIA, o nosso instituto universitário, que preparou e ainda tem o projecto de continuar a preparar técnicos superiores nas nossas áreas, para participar pensando de uma outra maneira, participando no seu colectivo, no seu meio social, com outras contribuições em termos criativos, em termos de inovação ou em termos tecnológicos, e tratando-se de jovens técnicos, quadros, com esse tipo de responsabilidade, é capaz de ser o M_EIA um dos projectos de maior impacto, mesmo no próximo futuro, porque são professores que estão no sistema, os primeiros professores nas nossas áreas com habilitação própria, fomos nós que formamos, estão no sistema, nascerão outros com esse tipo de preparação.

A maneira como as comunidades locais se ligam ao Atelier Mar e aos projectos é também fundamental para que os projetos corram como correm?

Sem dúvida. Sem isso, estaríamos a repetir o que muitas vezes acontece. Temos um projecto, vamos lá, executa-se o projecto, faz-se o relatório, faz-se o balanço e vamos embora. Não é o nosso caso. Não tem sentido esse tipo de intervenção. Não somos funcionários públicos, não somos missões públicas, nem missões de cooperação internacional, somos uma organização que emana da própria sociedade, da própria comunidade onde está e vai continuar a estar. Por exemplo, quando criamos com Sucla o Museu da Pesca, o conceito de museologia que propusemos foi imediatamente aceite. O museu não é uma instituição com exposições visitáveis, é uma exposição que nasce da comunidade, uma instituição que nasce da comunidade, que tem responsabilidades educativas, culturais e sociais na sua comunidade. E é assim que deve ser, é assim que deverá continuar a ser, porque os resultados são evidentes. Chega-se a São Nicolau e nem é preciso referir especificamente o Museu da Pesca. Basta dizer o museu e toda a gente sabe que é aquele museu. Esta é a metodologia que defendemos e continuamos a defender. Se não, também não teria sentido para nós como colectivo.

Quais foram os grandes desafios nestes 45 anos do Atelier Mar?

Os desafios iniciais, já referi, é estar aqui nesta terra e participar. Acho que este é e continua a ser o desafio fundamental. O futuro do Atelier Mar, a partir de um certo momento, sobretudo a partir de agora, já não nos diz respeito só a nós. Aliás, estou a pedir aos meus colegas, a insistir, na minha jubilação e eles não decidem, porque ainda querem explorar-me (risos) eu já me comprometi que continuo a fazer as coisas que quiserem, mas mesmo assim não decidem (risos) e então, neste tipo de organização num país como Cabo Verde, quando se pensa no seu futuro isso traz muitas interrogações. Primeiro porque, o nível da relação com as estruturas políticas, as entidades políticas, não é muito estimulante. Há sempre o discurso político de apelar para a sociedade civil se organizar, para se ocupar disto, para participar daquilo, etc. Mas, na verdade, não há uma vontade política de promover uma acção respeitosa, uma acção concreta, para que estas iniciativas da sociedade civil organizada possam continuar a participar no desenvolvimento do país. Há algum tempo tenho percebido que é muito difícil continuar a fazer esse tipo de trabalho, como nós temos feito, dentro desta filosofia da sociedade civil organizada. Ainda não temos uma parceria, ao nível político, que entenda e que cumpra, muitas vezes, aquilo que poderia nortear uma boa relação entre as entidades públicas e a sociedade civil. Não vejo, de momento, nada de muito auspicioso, porque a cultura política instituída no país não me dá esses sinais. Muitas vezes, esse tipo de organizações são encaradas não como parceiros de desenvolvimento, mas como concorrentes de desenvolvimento, de processos ou de programas de desenvolvimento.

Concorrentes inclusive pelos fundos.

Exactamente. E as coisas não correm bem quando é assim. Do modo que não gostaria era de ser negativista, mas com o sistema que temos, com o ambiente político que temos neste momento, não é bom sinal. Inclusive já no terreno tivemos más experiências neste sentido. E não é bom sinal sobretudo para os mais jovens, para aqueles que, como nós, começamos com 30 anos. Isso é o que me preocupa neste momento.

Quais seriam as aspirações que o Atelier Mar gostaria de alcançar na próxima fase da sua história?

Nós alteramos o nosso perfil jurídico, para uma fundação. Sobretudo para regular questões ligadas ao património, porque há um património imaterial e há um património também material que é preciso clarificar e estamos a conseguir. Com a integração do M_EIA na Universidade Pública, na UTA, a questão patrimonial ligada à M_EIA ficou imediatamente resolvida, porque transferimos tudo para a UTA. Mas há outras questões que temos, ou que encerrar, ou que abrir portas para o próximo futuro. Como por exemplo, em Santo Antão, em Lajedos, durante muitos anos tivemos lá uma escola comunitária, criada de raiz, com a comunidade, a partir da comunidade, que deu resultados interessantes, e que depois ficou pública, e que há uns anos, sem darmos conta, foi abandonada pelo próprio Ministério. E está lá uma escola em ruínas e sem sabermos de momento o que se vai fazer com essa escola. Esse tipo de dificuldades nas relações institucionais com o público dificulta o avanço da instituição como a Atelier Mar em determinadas linhas.

A história do Atelier Mar, no fundo, confunde-se com a sua própria história em Cabo Verde: Leão Lopes o professor, mas também o cidadão, o político, o artista, o cineasta, o criador, o escritor, o pensador, o transformador, o agitador… Em que papel se sente mais à vontade?

Em nenhum (risos).

Mas acabou por ter que encarná-los a todos.

Às vezes dizem que é o destino, não é? Eu acho que se confunde com a minha vida aqui e isso é normal, não é verdade? Como disse há bocado, criei a minha trincheira, continuei a ser o professor, mas o professor que eu quis ser, o professor que eu tive o privilégio de ser, um professor informal, um professor na hora que eu quis, mais preparado e mais à vontade para motivar os miúdos ou os adultos, foi isso que eu fiz. Tive a sorte de realizar o professor que eu quis ser, aqui, em Cabo Verde e a minha vida acabou por se confundir naturalmente com o Atelier Mar, aqui é a minha casa, aqui criei os meus filhos, aqui ainda hoje recebo os meus amigos.

Uma lição destes 45 anos?

Aquilo que sempre entendi, mesmo antes da criação do Atelier Mar, é que a educação é a única possibilidade de mudança. Cada vez mais tenho a certeza disso. Mas educação não no sentido tradicional. Falo de educação transversal, educação sem disciplinas estanques, transversal à vida e que toca a vida de todos em qualquer momento, em qualquer idade, em qualquer circunstância. É a única possibilidade. Só pela via e educação é que a gente ganha a noção de outras dimensões da vida e da existência. Sobretudo a liberdade, o conceito da liberdade e de estar na vida participando com todos à nossa volta. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1191 de 25 de Setembro de 2024.

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Autoria:Jorge Montezinho,29 set 2024 8:38

Editado porJorge Montezinho  em  20 nov 2024 23:25

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