Câmara de Comércio de Sotavento suspende missões empresariais a Portugal

PorJorge Montezinho,13 abr 2019 8:01

​A recusa continuada de vistos a empresários cabo-verdianos fez perder a paciência à Câmara de Comércio de Sotavento. O Conselho directivo, em sessão ordinária, resolveu não só interromper qualquer contacto com Portugal como encorajar os seus associados a procurarem outros parceiros e fornecedores fora de Portugal. É uma sombra sobre a próxima cimeira bilateral Cabo Verde/Portugal, que se realiza esta semana, em Lisboa, uma reunião entre os dois Governos onde estarão em cima da mesa também questões económicas.

Sempre a questão da mobilidade. Em carta enviada, no passado dia 1, à embaixadora portuguesa em Cabo Verde, a Câmara de Comércio de Sotavento (CCS) mostra-se “desagradada” com o mau tratamento sistemático aos empresários cabo-verdianos, leia-se, as várias recusas de vistos para viajarem para Portugal em missões empresariais.

Segundo o documento, a que o Expresso das Ilhas teve acesso, a CCS tem recebido “queixas frequentes de empresários cabo-verdianos relativas ao processo de pedido de vistos, no Centro Comum de Vistos (CCV) que, sem razão aparente, tem criado todo o tipo de dificuldades no atendimento e na concessão de vistos a essa classe empresarial”.

Estes obstáculos não são novos, mas desta vez acabou a paciência da entidade que representa os empresários cabo-verdianos. “Estamos a dar um grito de alerta. Temos estado a reclamar e ninguém reage, as coisas continuam na mesma”, como diz Jorge Spencer Lima, na entrevista dada ao Expresso das Ilhas e que pode ser lida na página 10.

Exactamente por causa do arrastar da situação, em Janeiro do ano passado, devido também a várias situações de bloqueio na concretização de missões empresariais, foi realizado, na sede da Câmara de Comércio de Sotavento, um encontro alargado com a presença da responsável do Centro Comum de Visto, Filipa Ponces, onde foram articulados procedimentos para superar os constrangimentos e desbloquear os processos.

A primeira missão empresarial realizada após essa reunião, à SISAB 2018, correu bem, mas entretanto a situação voltou a deteriorar-se, com a Câmara de Comércio de Sotavento a afirmar que “no decorrer deste ano, os nossos associados têm sido confrontados com recusas de pedidos de visto para participação em missões empresariais colectivas e/ou individuais”.

O caso mais recente, relatado pela CCS, aconteceu durante a realização da missão empresarial ao SISAB 2019, nos dias 25 a 27 de Fevereiro, quando a Câmara de Comércio de Sotavento se viu “confrontada com a recusa na concessão de vistos a 3 (três) participantes que por isso foram impedidos de participar na Feira, não obstante terem assumidos e pagos todos os encargos concernentes (hotel, visto, seguros de viagem, bilhete de passagem)”. A SISAB Portugal é a maior plataforma do mundo de negócios na área agro-alimentar. Um espaço onde as empresas encontram os mais importantes importadores dos cinco continentes.

“As Missões Empresariais ao Exterior organizadas pela CCS são destinadas aos Associados da Câmara de Comércio de Sotavento, no pleno gozo dos seus direitos, nomeadamente, aqueles que tem as suas quotas em dia. Outrossim, as Missões Empresariais ao Exterior constituem sempre oportunidades para participar em Feiras Empresariais, procurar parceiros e/ou efectivar negócios. Apesar do exposto, constata-se, lamentavelmente, que as missões têm sido realizadas sem a participação de todos os inscritos ou têm sido canceladas por falta de autorização para concessão de vistos sem justificações convincentes”, refere a Câmara de Comércio na carta enviada à embaixadora de Portugal.

Portugal é o principal país destinatário das missões empresariais cabo-verdianas, não só por razões históricas, mas também, e fundamentalmente, por razões objectivas como demonstram dados das trocas comerciais. Posicionando-se como o principal país fornecedor de Cabo Verde de bens de consumo e intermédios, Portugal contribuiu com 42,9% e 40,6% do total das importações em 2017 e 2018, respectivamente, ou seja, o triplo do segundo posicionado. A nível das exportações Portugal ocupa o segundo lugar no ranking dos principais clientes de Cabo Verde.

No fundo, Portugal tem sido o grande parceiro económico de Cabo Verde, e a realização de missões empresarias, ao longo dos anos, é uma forma de dinamizar esta parceria.

O Expresso das Ilhas contactou o Centro Comum de Vistos, mas não conseguiu obter qualquer reacção por parte da responsável do CCV. A delegação da Praia da AICEP – Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal – também não tem uma posição formal sobre a situação.

Acordo de mobilidade

O acordo de facilitação de vistos entre Cabo Verde e a União Europeia entrou em vigor a 01 de Dezembro de 2014, reconhecendo o desejo de promover os contactos entre os seus povos como condição essencial para um desenvolvimento estável dos laços económicos, humanitários, culturais, científicos e outros, através da facilitação da emissão de vistos para os seus cidadãos numa base de reciprocidade.

Foi a conclusão de sete anos de negociações. O objectivo cabo-verdiano era o de conseguir isenção de vistos, durante um período de 90 dias, para todos (ou seja, um acordo igual ao que a Europa tem com o Brasil ou Hong Kong). No início, a União Europeia concordou, mais tarde, um país que nunca foi identificado (as autoridades cabo-verdianas desconfiam da França) acabou por vetar este entendimento, com o argumento que a percentagem de retorno de cabo-verdianos era baixa quando pediam, por exemplo, um visto de férias. A crise, a partir de 2009, também veio esfriar o interesse europeu, principalmente porque os países da UE começaram a temer que Cabo Verde fosse usado como um trampolim por parte dos africanos do continente.

No entanto, esta Parceria para a Mobilidade entre a União Europeia e Cabo Verde nunca foi muito linear e como avançou o Expresso das Ilhas, em 2012, nunca foi um acordo bilateral desde o início. A conclusão de um estudo sobre as políticas de migração da UE feito pela Universidade de Maastricht dizia mesmo que a União Europeia teve uma posição de força unilateral nas negociações.

Foi Cabo Verde quem procurou a União Europeia, e se ofereceu como país candidato para a experiência piloto da Parceria de Mobilidade, quando as autoridades do arquipélago souberam que a UE estava a tentar testar o conceito com países africanos. A aproximação foi feita através das autoridades portuguesas e a representação permanente do Luxemburgo em Bruxelas.

Em 2007, foram abertas negociações formais. As razões que levaram a UE a escolher Cabo Verde não tiveram tanto a ver com a importância dos fluxos migratórios que entram no espaço europeu vindos do arquipélago mas mais com a imagem que o país tem de que é uma nação “fácil” de cooperar.

Apesar de ter apostado num papel pró-activo, no processo de ser seleccionado como país candidato, Cabo Verde foi incapaz de ter um papel central nas negociações que levaram à conclusão do texto do acordo, adiantava o mesmo documento.

As prioridades da Parceria de Mobilidade foram estabelecidas, principalmente, pela UE. Durante as negociações, mostram os documentos internos da União Europeia, a delegação cabo-verdiana apercebeu-se de que tinha um problema, os seus escassos recursos. Além disso, a Comissão tinha negociadores experientes e grandes equipas. Já a delegação cabo-verdiana era menos experiente e de um tamanho mais reduzido.

O outro lado da parceria de mobilidade foi o acordo de readmissão. De início, Cabo Verde aceitou a premissa porque o governo tinha percebido que a parceria era mais do que apenas o acordo de readmissão, no entanto, foi ficando claro que a readmissão era, na verdade, o centro da Parceria de Mobilidade. Um representante da delegação da UE na Praia confirmou que o maior interesse da União, em concluir esta parceria, era “a vontade de combater a imigração ilegal, tudo o resto é apenas fachada”.

A UE deixou então bem explícito que o acordo de readmissão era uma pré-condição obrigatória para que avançasse a possibilidade de facilitar os vistos aos cidadãos cabo-verdianos. Do lado de Cabo Verde foi dito que o país não tinha qualquer problema em readmitir os nacionais apanhados em situação irregular, mas que não estava preparado para assinar um acordo de readmissão de cidadãos de países terceiros. O governo cabo-verdiano acabou por fazer marcha-atrás nesta matéria e assinou o acordo.

Como o objectivo central do governo cabo-verdiano era o da liberalização dos vistos para os naturais do arquipélago, foi isso que pôs em cima da mesa para aceitar a readmissão. Esse facto deu à UE um forte poder de negociação. No segundo rascunho do acordo, a UE substituiu a oferta de liberalização de vistos pela oferta de facilitação de vistos. O governo cabo-verdiano aceitou esta versão porque acreditou que, naquele momento, não era possível alcançar o objectivo da liberalização.

Em 2013, o acordo voltou a ser criticado. Desta vez pela antropóloga sueca Lisa Akesson, que afirmou que a União Europeia forçou Cabo Verde a entrar numa “parceria” para transformar o arquipélago num dos guardas dos fossos da “Fortaleza Europa” em troca de promessas vazias e de um projecto de desenvolvimento falhado.

Num artigo com o título “Sob a cobertura da parceria”, publicado no Annual Report: Africa’s changing societies: reform from below, a investigadora sobre migrações no Instituto Escandinavo para a África e professora de Antropologia Social na Universidade de Gotemburgo dizia que “as vantagens deste acordo são altamente questionáveis”.

Aliás, segundo Akesson, o que Cabo Verde recebeu em troca por este acordo é a facilitação de vistos para grupos restritos, como os políticos. Isto significa, avançava Lisa Akesson, que os que participaram nas negociações tinham interesses pessoais num acordo de parceria “que lhes facilita as suas tão cobiçadas viagens à Europa”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 906 de 10 de Abril de 2019.

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Autoria:Jorge Montezinho,13 abr 2019 8:01

Editado porFretson Rocha  em  11 jan 2020 23:21

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