Contagem decrescente para a maior mudança desde o fim do colonialismo

PorJorge Montezinho,26 mai 2019 11:15

Em Julho, a Zona de Livre Comércio em África (AfCFTA, na sigla em inglês) começa a ser operacionalizada. O pontapé de partida deste momento vai acontecer já em Junho, em Kampala, a antever a operacionalização do mercado comum.

Cabo Verde foi um dos signatários do Acordo de Kigali, em 2018, o documento que pôs em marcha todo o processo e, segundo fonte do Ministério da Indústria, está agora no processo de ratificação para ser aprovado no Parlamento.

“O AfCFTA tem o potencial de aumentar substancialmente o comércio dentro de África e de apoiar o desenvolvimento económico sustentável do continente”, escreve Carlos Lopes, antigo secretário-executivo da UNECA, em resposta ao Expresso das Ilhas. “Os beneficiários do AfCFTA não são apenas os grandes actores empresariais, serão também os cidadãos comuns”, acrescenta.

O acordo da AfCFTA, lançado em Março de 2018 em Kigali, Ruanda, tem como objectivo eliminar as tarifas sobre a maioria dos bens, liberalizar o comércio de serviços essenciais, abordar os obstáculos não tarifários que prejudicam o comércio intra-regional e, por último, criar um mercado continental único com livre circulação de mão-de-obra e capital.

É provável que a AfCFTA tenha importantes efeitos macroeconómicos e distributivos. Pode impulsionar significativamente o comércio intra-africano, em particular, se os países solucionarem os estrangulamentos não tarifários ao comércio, incluindo infra-estrutura física, custos logísticos e outros obstáculos à facilitação do comércio. O cenário não é uniforme. As economias mais diversificadas e as que dispõem de uma melhor logística e infra-estrutura beneficiarão relativamente mais da integração do comércio. É provável que as perdas de receitas orçamentais decorrentes das reduções tarifárias sejam, em média, limitadas, com algumas excepções. Além disso, uma integração comercial mais profunda está associada a um aumento temporário da desigualdade de rendimento.

“O AfCTA é uma janela de oportunidade para o incremento das trocas comerciais entre os países africanos”, diz ao Expresso das Ilhas Amílcar Monteiro, antigo Director-Geral da Indústria e Comércio de Cabo Verde. “O acordo pode reforçar cadeias-de-valor de base regional através da eliminação das barreiras ao comércio, pode ajudar as PMEs a tornarem-se mais competitivas, pode ajudar a criar empregos para os jovens em diversas áreas, desde agricultura, aos serviços digitais e a economia criativa, e contribuindo para a formalização das economias através do acesso ao mercado”.

“Trata-se assim de uma evolução histórica, que comporta diversos desafios a serem ultrapassados pelos Estados, e implicam investimentos em infra-estruturas à escala continental, depende da estabilidade politica, do desenvolvimento do quadro legal e institucional, da eliminação de barreiras ao comércio e da melhoria do ambiente de negócio para facilitar o comércio intra-africano. Em última instância, promete criar um enorme mercado de mais de um bilião de habitantes”, continua o economista.

As reformas necessárias

As conclusões do FMI [no documento Perspectivas Económicas Regionais: África Subsaariana, de Abril deste ano] sugerem que, para além das reduções tarifárias, os esforços de política para impulsionar o comércio regional devem centrar-se em reformas para enfrentar os estrangulamentos não tarifários específicos dos países.

Para garantir que os benefícios da integração do comércio regional sejam partilhados por todos, os decisores políticos deverão estar cientes dos custos de ajustamento que a integração poderá envolver. No caso das economias menos desenvolvidas e baseadas na agricultura, as políticas comerciais devem ser combinadas com reformas estruturais para melhorar a produtividade e a competitividade agrícolas. Os governos devem ainda facilitar a realocação de mão-de-obra e de capital entre sectores (por ex. programas de mercado de trabalho activo, como formação e assistência à procura de emprego, e medidas que melhorem a competitividade e a produtividade) e fomentar redes de segurança (programas de apoio ao rendimento e de segurança social) para aliviar os efeitos adversos temporários nas populações mais vulneráveis.

“Os desafios mantêm-se elevados e por isso é importante conhecer as causas históricas”, sublinha Amílcar Monteiro. “A fragmentação da África resulta em 16 países encravados, presos na lógica de extração de minério de exportação de produtos primários e em economias polarizadas (mono produto) e pulverizadas (microprodução). O AfCTA promete desencavar estes territórios e habilitar o comércio intra-africano pela via da integração, abrindo espaço para novas relações entre os países, a diversificação e á ampliação da escala de produção”.

“Naturalmente, o grande desafio é político, certamente ainda é preciso desenvolver economias de escala, promover a especialização e o acesso a matérias-primas e mercados, e garantir a oferta de produtos mais acessíveis e seguros para os consumidores. Os benéficos do livre comércio ainda não chegaram à África pelo que o AfCFTA se configura como uma oportunidade única para se recriar o ambiente de negócios em África”, refere o ex-Director-Geral da Indústria e Comércio.

Até Abril de 2019, 22 países haviam ratificado o acordo que cria a Zona de Comércio Livre Continental África, atingindo o número de ratificações necessárias para o acordo entrar em vigor. A AfCFTA prevê acordos sobre reduções tarifárias específicas, procedimentos para a liberalização do comércio de serviços e regras de origem durante 2019. As negociações estão em curso. Além disso, os países prevêem o início de uma segunda ronda de negociações em 2020 para tratar dos direitos de propriedade intelectual e da política da concorrência. Quando estiver em funcionamento, a AfCFTA irá criar um mercado com 1,2 mil milhões de pessoas com um PIB combinado de 2,5 biliões de dólares. Isto poderá revolucionar a economia do continente.

Uma revolução benéfica para o continente

“A AfCFTA é uma oportunidade que, se for bem-sucedida, pode ajudar a resolver os problemas do desemprego jovem mas, para ser bem-sucedida, ainda falta fazer um conjunto de coisas fundamentais: temos que construir capacidade industrial, continuar a investir de forma maciça em infra-estruturas e assegurar que temos as capacidades que as empresas precisam”, disse à LUSA, em Abril, Akinwumi Adesina, presidente do Banco Africano de Desenvolvimento.

Segundo o responsável do BAD, a futura zona de comércio livre “vai ajudar a aumentar em cerca de 50 mil milhões de dólares as trocas comerciais, mas não é apenas isto. Se África for capaz de reduzir o desemprego entre os jovens para o mesmo nível da população adulta acrescentará, entre 2020 e 2035, cerca de 5 mil milhões de dólares em Produto Interno Bruto (PIB) da região. E se conseguirmos aproveitar todo o potencial da Internet no continente, em 2030 conseguiremos adicionar 3,5 mil milhões de dólares ao PIB”, concluiu.

A integração comercial possibilita que os países se especializem na produção de bens e serviços relativamente aos quais gozam de uma vantagem comparativa e tirem proveito de economias de escala, melhorando assim a produtividade e o crescimento. Ao disseminar os conhecimentos e as tecnologias e ao promover o desenvolvimento de novos produtos, a integração comercial pode igualmente fomentar a transformação estrutural. Uma grande zona de livre comércio em África irá ampliar o potencial de transformação económica na região. Não só irá impulsionar o comércio intra-regional, como também irá atrair investimento directo estrangeiro e facilitar o desenvolvimento de cadeias de abastecimento regionais, que têm assumido uma preponderância fundamental na transformação económica de outras regiões.

Pode ser uma oportunidade para Cabo Verde? “O caso de Cabo Verde é particular no contexto africano”, diz Amílcar Monteiro, “a nossa ligação com o continente não é linear pelo que importa discutir e consensualizar uma abordagem para o país. No contexto regional, a condição de único país insular e arquipélago é um desafio muito específico em termos da integração do mercado interno e mobilidade. Deste modo, a nível regional, as infraestruturas e serviços de ligação marítima representam um esforço que ultrapassa a capacidade de investimento do Estado cabo-verdiano, pelo que a criação de condições para a operacionalização de serviços regulares de transporte marítimo (passageiros e cargas) entre as capitais da região deve ser comparticipada com a CEDEAO. Além de aumentar o leque de oportunidades para Cabo Verde irá tornar o arquipélago um território útil para o comércio regional no Atlântico Médio. Todos ganham”.

Sem isso, sublinha o economista, “ficam malogradas, à partida, as oportunidades de transformação de matéria-prima em Cabo Verde para abastecimento do mercado hoteleiro ou para o aproveitamento de oportunidades de exportação no âmbito do AGOA. A nível continental, Cabo Verde tem muito espaço para explorar no mercado de transportes aéreos, das comunicações, serviços de tecnologias de informação, além dos restantes ramos dos serviços onde Cabo Verde tem sido historicamente superavitária nas trocas internacionais. Com a AfCFTA, os serviços serão gradualmente liberalizados e é onde país tem oportunidades concretas para explorar”, refere o economista.

O preço da Zona de Comércio Livre

No entanto, embora o comércio contribua para o crescimento, também implica custos, e os seus benefícios poderão ser distribuídos de forma desigual entre e dentro dos países. Muitas vezes, os decisores políticos estão, justificadamente, preocupados de que uma maior integração das suas economias com as de outros países possa beneficiar umas indústrias e prejudicar outras, afectar negativamente os rendimentos e as oportunidades de emprego em determinados sectores e em determinados níveis de competências e reduzir as receitas fiscais [Os impostos representaram 13,6% do PIB de Cabo Verde em 2018, segundo números do INE].

“É um risco”, concorda Amílcar Monteiro, “mas a redução das tarifas é feita gradualmente e num contexto de incremento das trocas comerciais e do reforço das cadeias de valor regionais, o que implica na geração de mais empregos, mais negócios e mais tributação. O Estado também “arrisca-se” a arrecadar muito mais do que arrecada actualmente com o aumento do volume e da escala dos negócios”.

O comércio intra-regional em África tem crescido. As importações intra-regionais como percentagem do total de importações quase que triplicaram ao longo das duas últimas décadas, situando-se agora entre os 12% e 14% (cerca de 100 mil milhões de dólares), como resultado do aumento do comércio na região graças às novas comunidades económicas sub-regionais. Em 2017, três quartos do comércio intra-regional africano realizou-se dentro das principais comunidades sub-regionais. Durante este processo, emergiram centros de comércio regional, como África do Sul, Côte d’Ivoire, Quénia e Senegal. Ao contrário das exportações para o resto do mundo, os fluxos comerciais intra-regionais são relativamente diversificados, incluem bens de maior valor acrescentado do que as exportações para o resto do mundo e abrangem uma proporção considerável de produtos transformados (por exemplo, veículos motorizados e vestuário).

Apesar desta expansão, ainda existem oportunidades significativas para aprofundar mais a integração do comércio regional. No entanto, tendo em conta os menores níveis de rendimentos e a dimensão económica e, em geral, as maiores distâncias face a outras regiões, as características particulares dos países africanos parecem limitar a sua capacidade comercial (quando comparados com países noutras regiões). Algumas destas características são estruturais e a sua mudança exige um compromisso a longo prazo. Outras resultam de políticas – como as tarifas, os regulamentos comerciais e os requisitos regulamentares – e a sua eliminação iria impulsionar a integração regional. As oportunidades de expansão do comércio intra-regional são especialmente assinaláveis para alguns produtos relacionados com a agricultura (por exemplo, produtos alimentares) e indústria transformadora, assim como em algumas comunidades económicas sub-regionais de África onde o volume comercial é significativamente inferior ao das suas homólogas.

É igualmente provável que os países pequenos, as economias mais diversificadas e os centros de comércio regional, que já estão expostos à concorrência internacional, beneficiem mais de uma maior integração regional do que as economias dominadas pela agricultura e pelos recursos naturais. No fundo, quanto mais rápido os países africanos perceberem as suas estreitas janelas de oportunidade, mais rapidamente a aceleração da sua industrialização ocorrerá. E no caso de Cabo Verde, questionou o Expresso das Ilhas a Amílcar Monteiro, quais os ritmos a que o país está a tratar a sua própria industrialização? “O meu sentimento é que Cabo Verde está a perder tempo. Devido a uma política industrial indefinida, o próprio quadro legal limita o surgimento da pequena indústria, das unidades de transformação de produtos que tradicionalmente são produzidos em Cabo Verde há mais de 300 anos como o doce, o queijo, o grogue, a secagem ou a simples produção de farinha de pau e de milho. A industrialização em ilhas comporta desafios sérios que importa superar através da implementação de medidas de politica pública duradouras e por isso consensuais sobre como desenvolver um sector produtivo com potencial de exportação para mercados-nicho. O actual quadro legal precisa ser revisto quer para criar oportunidade para a emergência de PMEs, mas também para ampliar o tecido industrial actual constituído pelo limitado grupo de in­dústrias exportadoras, ba­sea­­­das essencialmente em São Vicente e o gru­po de indústrias que operam essencialmente para o abastecimento do mercado interno”, defende o economista.

O mesmo cenário acontece no caso dos serviços, segundo o antigo Director-geral da Indústria e do Comércio, e com a lenta transformação do arquipélago numa plataforma. “O tempo de indecisões tem de ser ultrapassado e o país deve orientar a sua acção de forma estratégica e com visão de longo prazo. Apesar do país já ser uma plataforma de serviços, o volume de negócio realizado como plataforma no Atlântico Médio é ainda insignificante perante os nossos vizinhos, pelo que pouco se nota. Pelo ritmo de investimento em sectores-chave como os transportes aéreos e marítimos no Senegal, percebe-se a urgência de se manterem na frente e não deixarem espaço para a ‘concorrência’. Cabo Verde, não compete com nenhum país na região, mas inerentemente existe uma relação de forças versus oportunidades que é preciso considerar sobre: qual deverá ser o posicionamento do país no Atlântico Médio para complementar a actual oferta existente?”, questiona o economista.

“As oportunidades reais que estão ao alcance de Cabo Verde têm de ser consensualizadas para se poder orientar os investimentos necessários, treinar a mão-de-obra assim como adequar o quadro legal e institucional. A concretização de uma visão de sucesso exige o amadurecimento das medidas de política pública, mas receio que sem consenso não haverá o alinhamento necessário para a combinação de todas as medidas necessárias para a concretização das mesmas”, conclui Amílcar Monteiro.

A acção política no combate aos constrangimentos

As principais conclusões do Fundo Monetário Internacional sugerem que a AfCFTA pode impulsionar significativamente o comércio intra-regional em África, se forem utilizadas alavancas de política tarifária e não tarifária. As reduções tarifárias devem ser abrangentes para que tenham um impacto significativo nos fluxos de comércio intra-regional. A eliminação das tarifas em 90% dos fluxos de comércio intra-regional – a meta mais ambiciosa ao abrigo da AfCFTA – iria provocar um crescimento de 16% no comércio regional, ou seja, 16 mil milhões de dólares, ao longo do tempo. As reduções tarifárias devem ser acompanhadas de políticas que combatam as barreiras não tarifárias. Mesmo pequenas melhorias na resolução destes estrangulamentos deverão ter um impacto considerável. Medidas como a melhoria da logística comercial (por exemplo, serviços aduaneiros) e o aumento da qualidade das infra-estruturas podem ser até quatro vezes mais eficazes na promoção do comércio do que as reduções tarifárias. Além disso, a diminuição das barreiras não tarifárias ao comércio iria aumentar a eficácia das reduções tarifárias para impulsionar o comércio, especialmente em países interiores e países de baixos rendimentos. Por conseguinte, as políticas para combater as barreiras não tarifárias, em especial a fraca qualidade da logística comercial e das infra-estruturas, devem estar no centro dos esforços para aprofundar a integração comercial em África.

“Os retardatários enfrentam, geralmente, todo o tipo de dificuldades”, escreve Carlos Lopes. “No plano comercial, os melhores lugares estão já ocupados, as regras são mais restritas, o financiamento mais complexo, a propriedade intelectual está concentrada, as cadeias de valor estão globalizadas, as normas universalizadas e as regras são assimétricas”.

“Gostemos ou não, África está atrasada em numerosos aspectos, e agora terá de correr uma maratona com a rapidez dos melhores velocistas. E a AfCFTA pode ajudar a mudar a situação do continente”, conclui o antigo Secretário-geral da UNECA.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 912 de 22 de Maio de 2019. 

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Autoria:Jorge Montezinho,26 mai 2019 11:15

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  20 fev 2020 23:21

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