“Os esforços de Cabo Verde no combate ao crime organizado têm sido um factor-chave para a sua estabilidade”

PorSara Almeida,12 fev 2023 8:24

À frente do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e Crime em Cabo Verde desde 2008, por Ana Cristina Andrade já passaram várias iniciativas e quadros legais, mas o engajamento do país no combate a estes desafios internacionais tem sido uma constante, avalia. Nesta conversa com o Expresso das Ilhas, a coordenadora nacional fala de diferentes crimes e problemáticas, entre os quais o tráfico de drogas, o tráfico de pessoas – “o pior entre todos os crimes” –e o cibercrime. E fala também de uma novidade nas iniciativas da ONUDC Cabo Verde, geralmente orientadas para as instituições, que é o projecto participativo de segurança humana que está a desenvolver junto às comunidades. Uma coisa é certa, sublinha a coordenadora: não há país nem comunidade que se desenvolva à luz do crime e violência.

Ao longo destes anos já passou, certamente, por diferentes fases na ONUDC.

Já passei vários ciclos e tem sido uma aprendizagem, sobretudo por notar uma coerência em termos daquilo que é a vantagem do combate aos tráficos ilícitos e à criminalidade organizada. Ao mesmo, o facto de trabalhar com Cabo Verde é interessante porque o país já adoptou as medidas legais, programáticas e políticas que são alicerces fundamentais para poder dar respostas aos desafios actuais a nível nacional, regional e global nessa matéria.

Mas Cabo Verde está hoje bem preparado contra a criminalidade transnacional?

O que nós temos percebido enquanto agência das Nações Unidas é que Cabo Verde tem mostrado um compromisso político e um engajamento em relação às leis internacionais, às convenções quadro em matéria do cibercrime, tráfico de pessoas, tráfico de drogas, tráfico de armas, prevenção de terrorismo, lavagem de capitais… Cabo Verde tem aderido e sido sujeito à avaliação dessas convenções e tem havido um diálogo permanente. Existe uma identificação daquilo que são necessidades prioritárias, entretanto temos de mobilizar mais parcerias e financiamentos, porque, de facto, o país ainda não tem todas as condições para ter uma resposta efectiva. É preciso mais investimentos em determinadas áreas temáticas. Neste momento, por exemplo, achamos que é preciso mais investimento e recursos na área da prevenção e também cuidados e tratamento das vítimas da criminalidade, mas também a nível de toda a prevenção da reincidência.

Já voltamos a Cabo Verde. Recentemente, passou também a coordenar a ONUDC na Guiné-Bissau. Porquê este alargamento?

A ONUDC Cabo Verde faz parte do escritório regional que cobre 22 países da África Ocidental e Central, e o Director Regional convidou-me, no ano passado, para chefiar interinamente o escritório da Guiné-Bissau. Tem sido um desafio, e é uma honra poder ser útil na materialização da luta contra o tráfico ilícito e a criminalidade na Guiné-Bissau. A Guiné-Bissau, no ano passado, avançou com algumas respostas muito importantes para a ONUDC. Foi aprovado pelo conselho de ministros um plano nacional contra a corrupção, que teve assistência do PNUD e o ONUDC. O país também tem uma estratégia nacional de luta contra a criminalidade e o tráfico de drogas e está em curso o processo de revisão de todo o código penal e do processo penal.

É claro que toda a instabilidade política acaba por condicionar enormemente a luta contra qualquer tipo de criminalidade, mas tem havido uma renovação do compromisso do país e a ONUDC tem de continuar a apoiar a sociedade civil e as instituições da justiça visando o seu fortalecimento em termos de integridade. Essa renovação de compromisso tem sido traduzida através das políticas e reformas em curso. Tanto a ONUDC como as outras agências das Nações Unidas da Guiné-Bissau, com base na análise dasprioridades têm procurado responder às demandas do País no sentido de materializaçao dessas políticas. Por exemplo, temos procurado reforçar as capacidades da polícia judiciária para poderem consolidar o trabalho positivo que tem estado a fazer, de modo a contribuir para o desenvolvimento sustentável do país. Ao mesmo tempo, é fundamental responder aos muitos desafios em termos de indicadores de desenvolvimento, como a reducao da dos elevados niveis de pobreza, que precisam de ser resolvidos. Se a questão da segurança não for reforçada, a luta contra o tráfico de drogas e a luta contra a criminalidade não for resolvida, não há crescimento, não há desenvolvimento.

E quanto ao fluxo de criminalidade entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde (e vice-versa)?

Há fluxo criminal mesmo que seja a nível das drogas e outras criminalidades. Aliás, em toda a região da África Ocidental há esse desafio. O posicionamento estratégico da Africa Ocidentaç apresenta uma vantagem comparativa e económica, mas também, infelizmente, enfrenta desafios dos fluxos ilícitos transfronteiros que acontecem e se nós não combatermos o tráfico de drogas de uma forma efectiva em um país da região, os efeitos serão para todos. Não investindo na Guiné-Bissau estamos a não investir na África Ocidental. Temos procurado também investir fortemente na cooperação conjunta entre Cabo Verde, a Guiné-Bissau, Senegal e Gâmbia…. Portanto, criar respostas de operações conjuntas, trocas de experiencias e de saber fazer que têm traduzido em operacoes concrteas de sucesso.

Houve no dia 30 de Janeiro, um exercício marítimo entre Cabo Verde e o Senegal. Em que consistiu?

Esse exercício foi de extrema relevância e aconteceu no quadro do programa global do ONUDC de controlo de crime marítimo. Temos trabalhado com Cabo Verde e no quadro do programa, com o apoio da UE dos EUA, no reforço da controlo do crime maritimo e nesse sentido, 30 e 31 de janeiro, foi feito um exercicio pratico no mar, envolvidos investigadores de Cabo Verde e do Senegal onde foi testado na pratica um acto legal da CEDEAO que foi aprovado pela Comunidade no ano passado de detençao e transferencia dos supeitos de pirataria marítima na zona do golfo da Guiné e nas águas territoriais de Cabo Verde como do Senegal. Essa simulação de aplicação dessa lei foi util pois possibilitou uma identificar as necessidades legais e materiais para reforçar a resposta conjunta nessa matéria.

Falando do narcotráfico. Em 2016 foi lançado o CRIMJUST. Como tem corrido?

É um programa que tem a ver com o reforço das instituicoes de justiça criminal dos Estados América Latina, África e Europa, no combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado por meio da cooperação regional. Tem tido um impacto muito positivo no reforço de operação conjunta, em termos de cooperação judiciaria na area penal. Temos promovido investigações conjuntas com resultados positivos , através desse programa, as diferentes instituições da justiça têm-se aproximado e dialogado mais para o mesmo objetivo.

E a nível da comunicação de informações de situações suspeitas, como aconteceu no caso do navio “ESER” (Quase 10 toneladas de cocaína apreendidas em Janeiro de 2019)?

Sim existem Centros de monitorização marítima como a MAOC que está em Lisboa, o MAOC-N (Centro de Análises e Operações contra o narcotráfico Marítimo), que trabalha tambem apoiando os Estados Membros centro europeu que enviado comunicações e colaborando para a luta contra o tráfico de dorgas por vi maritima. O CRIMJUST o que faz? Facilita essas comunicações, reforça as capacidades dessas estruturas, junta especialistas e serviços de aplicação da lei, reforça os estados membros na aplicacao dos procedimentos legais como por exemplo a extradição.Temos estado a apoiar no Forúns investigativos inter-regionais. O programa facilita as trocas e reforça as capacidades possibilitando mais proatividade entre os Estados envolvidos na investigacao de um mesmo crime.

Houve críticas. Porque um pequeno e vulnerável Estado como Cabo Verde teve de lidar com um processo complicado, quando o navio, já assinalado, poderia ser apanhado em águas de destino. Como a ONUDC vê estas críticas?

A ONUDC defende que temos de actuar até aos limites das nossas possibilidades, numa em solidariedade. É uma exigência, a nível das convenções, que os Estados tenham uma cooperação e uma responsabilidade partilhada, em relação à luta contra qualquer tráfico ilícito e Cabo Verde tem feito esse trabalho. É claro que tudo isto tem de ser feito à luz do ordenamento jurídico dos países e também daquilo que é o compromisso dos Estados membros em relação às convenções. As convenções existem porque os Estados membros, tendo em conta a dimensão da violência, da corrupção e da ameaça daquilo que constitui o tráfico e a criminalidade organizada, acordaram juntar esforços e criar condições a nível dos países para poderem travar esta situação. Há evidências de que este trabalho é possível e deve ser continuado. Estamos a trabalhar com os Estados membros, especialmente com os países em vias de desenvolvimento que exigem uma outra intervenção porque o tráfico de drogas nesses países tem um impacto negativo maior a nível do desenvolvimento, das pessoas e das instituições. Temos de insistir na prática de fortalecimento institucional, porque onde há tráfico de droga há corrupção associada.

Cabo Verde faz parte do corredor de droga América-Europa, mas uma parte da droga ficará aqui. Quais as preocupações a nível nacional?

Há a questão do transbordo que acontece no alto mar, mas não só. E há a questão das drogas que ficam no país, maioritariamente cocaína, e são transformadas e vendidas pelos traficantes locais. A nossa preocupação, neste momento é no sentido de fortalecer a saúde dos jovens ou das famílias, no global, para prevenir o uso de substâncias psicoactivas pelas crianças e adolescentes. Estamos a tentar, juntamente com as autoridades nacionais, mobilizar mais financiamento e parcerias, para responder a projectos de prevenção das drogas e da criminalidade sobretudo a nível das localidades, porque há todo um impacto a nível social, de distúrbios mentais, do comportamento delinquencial. É nossa preocupação também, neste momento, reforçar a qualidade das respostas em temos terapêuticos para as dependências do álcool e outras drogas.

Temos a cocaína importada, temos a cannabis de produção local (padjinha). E anfetaminas e outras drogas químicas, há produção aqui?

Tem sido mais através de tráficos provenientes de outros países. O que percebemos, nos estudos que foram feitos, é que há um uso ilícito dos medicamentos psicotrópicos, que são utilizados para fins terapêuticos. Algumas pessoas usam-nos de uma forma não prescrita pelos médicos. Um problema sobre o qual temos estado a falar com as autoridades é, pois, a venda ilícita desses medicamentos, e que exijam educação da populacao para o perigo que isto representa para a saúde pública.

Entretanto, há vários anos que se discute que o consumo seja descriminalizado. Qual é a posição da ONUDC neste sentido?

A pessoa que usa droga não é um criminoso e a dependência é uma doença. As evidências dizem isso, todas as convenções existentes nesta matéria são claras. Temos de analisar aquilo que é a provisão legal dos Estados membros e ver o que está na lei da droga sobre a questão do consumo. A lei da droga de Cabo Verde reconhece que a pessoa dependente da droga deve ter tratamento. Entretanto, há uma responsabilização penal se a pessoa for encontrada com substâncias psicoactivas, com base em uma tabela e quantificação dessa substância. Quanto à descriminalização tem havido várias discussões, e penso que é um assunto que Cabo Verde deverá continuar a discutir. A nossa recomendação é que seja uma discussão em que a saúde da criança e do adolescente seja protegida a todos os níveis, e que qualquer decisão em termos legais seja acompanhada de medidas para a sua materialização. Estamos a assistir a um trabalho muito importante de Cabo Verde em relação à questão do álcool, que é uma substância lícita em termos de comercialização em que há uma abordagem no sentido de “fechar o cerco”. Temos também que ter uma coerência a nível da abordagem legal da questão das drogas, porque só pela repressão [o problema não se resolve]. Em Cabo Verde foi feito um esforço enorme a nível de investigação criminal, do combate e repressão dos criminosos, mas temos de investir muito também na vertente educativa e preventiva. Cabo Verde precisa de também reforçar a coordenação entre os sectores. Existem políticas coordenadas, com enfoque numa abordagem integrada, mas precisamos traduzir isto em termos de acção no terreno. Tivemos uma experiência nas comunidades com especialistas nossos (que trabalharam a prevenção do crime em Pernambuco, onde houve uma redução da criminalidade) em que reparamos que os jovens dizem que querem sair dessa vida. Já há material existente a nível do programa de reinserção social, há engajamento dos actores, agora precisamos de fortalecer o trabalho de reabilitação desses jovens, de aproveitar essa vontade de querer mudar.

E trabalhar muito a componente preventiva, porque se as drogas não existissem, de certa forma seriam inventadas. Em Cabo Verde já sabemos onde está o foco de maior problema, temos de priorizar as zonas onde há mais vulnerabilidade social e económica. Sendo certo que isto não é um factor causal directo dos problemas de uso de drogas, porque temos uso de drogas em todas as camadas sociais, temos que reduzir os factores de risco nessas comunidades, priorizar essas comunidades.

Fala-se muito na prevenção. Há aqui uma mudança de prioridades?

Temos dado assistência técnica ao país em termos daquilo que é a política nacional nestas questões e Cabo Verde sempre adoptou uma abordagem multissectorial, coordenada e integrada em relações a todas as dimensões que tocam ao crime e droga. Entretanto, Cabo Verde tem o desafio de conseguir recursos financeiros suficientes para cobrir de uma forma equilibrada a todas essas dimensões. Então, houve sempre este alerta aos estados membros neste sentido da prevenção, mas há mais ferramentas agora. Mas temos tido várias acções de prevenção ao longo dos tempos, nomeadamente no sentido de reforçar as capacidades dos núcleos concelhios para melhor abordagem de proximidade em termos de prevenção do uso de drogase com base nas evidências.

A droga costuma estar associada à questão da violência urbana. Temos ultimamente assistido a uma maior proximidade da ONUDC aos bairros. Como é que a violência urbana entra na vossa agenda? Como Cabo Verde está referenciado a esse nível?

A nível da taxa de homicídio, os dados de Cabo Verde reportados às Nações Unidas, mostram que, em 2020, por 100 mil habitantes tínhamos 6,47 [homicídios] – 3,25 mulheres, 9,67 homens. Está acima da média mundial [taxa mundial de 6,2]. Portanto, este é um indicador preocupante. Vemos a violência urbana com preocupação, e essa preocupação também nos é colocada pelas próprias instituições nacionais. Pensamos que é, de facto, uma das prioridades do país. Temos de trabalhar as comunidades onde tem havido violência para podermos assegurar que as pessoas vivam num ambiente de paz e de segurança, porque uma comunidade onde há violência e criminalidade não cresce. Daí que mobilizamos um financiamento com o Fundo da Segurança Humana das Nações Unidas, e estamos, ONUDC juntamente com a ONUHabitat, a trabalhar com essas comunidades mais problemáticas a questão da insegurança.

Em que consiste esse projecto?

É uma abordagem baseada na segurança humana com base numa abordagem participativa da própria comunidade. Ou seja, investir no reforço das respostas locais para dissuadir e prevenir a criminalidade, mas também com o engajamento dos sectores ligados à repressão. Neste projecto o líder é, e deve ser, a comunidade. Enquanto parceiros temos de ter uma escuta activa permanente e temos que, de facto, ver quais são as dimensões da segurança humana que estão a ser ameaçadas. No quadro do projecto de segurança humana estamos a trabalhar, com a ONUHabitat, como referido, nas comunidades do Brasil, em Achada Santo António (Praia), e também em Chã de Matias (Sal) e Boa Vista, tentando identificar as principais ameaças à segurança pós pandemia. Juntamente com os actores e as organizações de base comunitária, houve uma proposta de se criar um gabinete de gestão integrada para poder, de facto, juntar diferentes esforços locais no mesmo espaço, com enfoque sobretudo na prevenção. É um trabalho muito direccionado para os factores de risco e factores protectores. Mas esse gabinete, quando identificar situações de ocorrências criminais ou de tentativa de retaliação entre os grupos, acciona ele próprio os serviços de repressão. Trata-se de um projecto inovador, realizado pela primeira vez e vamos continuar a dialogar com os outros parceiros no sentido de o continuar. Fizemos consulta com essas comunidades e as organizações locais partilharam que a maior preocupação é, efectivamente, a violência cometida pelos jovens. Também foi interessante o facto de pedirem para que, qualquer trabalho que seja feito, não sejam “abandonados”. Quer dizer, precisamos de criar uma abordagem de sustentabilidade contínua. Não que isso signifique que nós temos de continuar lá, mas temos de fazer com que respostas existentes dentro da comunidade se perpetuem, continuem a existir.

Um grande problema, é a reincidência. Como se tem trabalhado a questão da reinserção social?

A vários níveis. Cabo Verde aderiu às regras de Mandela sobre as prisões, que são claras quanto às directivas para um país reforçar a segurança prisional, mas priorizando a vertente da salvaguarda dos Direitos Humanos e da reinserção dos detidos. E o país tem adoptado um conjunto de medidas nesse sentido, em estreita colaboração com a nossa assistência técnica. Cabo Verde tem um novo programa de reinserção social alinhado às regras de Mandela. É uma questão complexa e tem havido passos que por vezes não visíveis, mas que são fundamentais para garantir uma resposta efectiva a nível da prevenção do crime urbano. Há esse esforço que tem sido feito a nível das instituições públicas, mas é preciso também trazer a sociedade civil para esta problemática.

Já começam a surgir associações com foco na reinserção.

Há dias, o Ministério da Justiça em parceria com o ONUDC, promoveu estivemos um fórum presidido pelo Primeiro-ministro, onde foram apresentados projectos de iniciativas da sociedade civil, de extrema relevância, para prevenir o crime urbano. Vamos continuar também o diálogo com essas organizações e com o governo no sentido de mobilizar mais parcerias. Nesse fórum, foi igualmente sublinhado a importância da parceria do setor privado.

A reinserção é um dos pilares da Declaração de Doha. De que trata esta declaração e qual a sua importância?

A Declaração de Doha foi adoptada no Qatar, em 2015, e tem 4 componentes, incluindo essa vertente de reinserção social. Em primeiro lugar, trouxe a novidade de poder fazer uma Educação para a justiça (E4J), junto às crianças desde tenra idade, e a nível das escolas, sobre o Estado de Direito, integrando o currículo escolar. Temos já ferramentas, com os maiores especialistas a nível mundial, e Cabo Verde tem participado na discussão, no quadro da CPLP, mas gostaríamos, e vamos trabalhar nesse sentido, que houvesse uma iniciativa mais local, alinhada. Precisamos de mais recursos para poder apoiar Cabo Verde neste sentido. Temos também a questão do reforço da integridade judicial para prevenir a corrupção do sistema judicial e criamos uma rede mundial de integridade judicial da qual Cabo Verde já é parte. Outra componente muito importante é a prevenção da criminalidade juvenil através do desporto. Temos um acordo mundial com a FIFA, que disponibiliza várias iniciativas a os Estados membros. E temos, como referido, a reabilitação dos reclusos e a reinserção social, onde damos assistência técnica em termos de ferramentas de mudança de comportamento do próprio recluso.

Um outro assunto importante é o tráfico Humano. Como está essa situação a nível regional e em Cabo Verde, em particular?

Todo o crime é crime, mas traficar pessoas é o pior crime que existe. É uma nova forma de escravidão actual e não devemos permitir que isto aconteça: um caso já é grave. Não podemos dizer que dois casos em Cabo Verde sentenciados ou investigados é pouco. Não há “poucos” casos no tráfico de pessoas. A ONUDC apresentou a 7.ª edição do seu relatório sobre o tráfico de pessoas, no dia 24 de Janeiro. A nível mundial, o que mostra o relatório, é uma diminuição em 2020, com a pandemia, do número de vítimas detectadas, especialmente em países de baixo e médio rendimento. Há poucas evidências de que a ameaça deste crime tenha diminuído, mas os casos detectados sim. As restrições pandémicas, as crises e conflitos, a emergência climática pode ter reduzido temporariamente algumas formas de tráfico – o tráfico para efeitos de exploração sexual e o tráfico transfronteiriço – e ter levado algumas formas de tráfico para locais mais escondidos. Outro aspecto: percebemos que várias instituições estão a falhar na detecção e protecção das vítimas. A maioria das vítimas escapou por si só, não teve ajuda. No número de condenações, há uma tendência decrescente desde 2017, e este diminuiu em 2020, 27% em relação ao ano anterior. As raparigas e as mulheres têm três vezes mais probabilidades de serem vítimas de violência explícita ou extrema durante o tráfico do que os rapazes e os homens. As crianças em geral têm duas vezes mais probabilidades de serem sujeitas a violência do que os adultos… Portanto, a situação é dramática.

E em Cabo Verde?

Fizemos uma avaliação da resposta do sistema de justiça em relação ao tráfico de pessoas com o apoio dos EUA, na altura que antecedeu a toda a revisão do código penal de 2015. Notamos que, e alguns dados ainda continuam actuais, Cabo Verde, apesar de fazer parte dos protocolos adicionais da convenção de Palermo, tinha alguns problemas no próprio entendimento daquilo que é o tráfico de pessoas. O crime não era tipificado no código penal. Através dessa avaliação, saíram recomendações e o código revisto de 2015 assumiu essas recomendações que o próprio país fez. Desde então, temos realizado outras ações de capacitação sobre este crime, e vamos continuar a reforçar e mobilizar para melhor investigação este crime, que não é só um problema internacional, existe a nível interno também. Entretanto, precisamos reforçar o entendimento daquilo que é o tráfico de pessoas e aquilo que é contrabando de migrantes, que é diferente e onde há uma colaboração dos migrantes neste processo. Tem um perfil diferente e temos de ter muita atenção quando nos posicionamos perante factos. Em 2018, Cabo Verde adoptou o Plano Nacional contra o Tráfico de Pessoas (2018/21) e houve uma grande campanha. Constituiu-se um Observatório contra o tráfico de pessoas, afecto ao Ministério da Justiça, que foi relançado recentemente, que tem feito um trabalho de sensibilização e está a trabalhar um novo Plano Nacional (2023/27). Têm actuado também quando há situações de alguns sinais de tráfico.

Os casos que aparecem em Cabo Verde são com fins de exploração sexual?

Os casos que foram identificados sim, e com a envolvência dos países da região a nível da origem da vítima de tráfico sexual.

Houve, no dia 31 de Janeiro, uma reunião, aqui em Cabo Verde, da Rede de Autoridades e Procuradores da África Ocidental (WACAP) sobre cooperação em matéria de Tráfico de Pessoas. Em que consistiu?

É uma reunião da rede de autoridades centrais e procuradores da África Ocidental e incluiu o Chade e a Mauritânia. O único país que não conseguiu estar presente foi Côte de Ivoire, foi um nivel de participação muito positivo. Cabo Verde tem dois pontos focais e essa rede trabalha de uma forma permanente, em termos de trocas de informações e reforço de capacidades. Esta reunião foi promovida na decorrência da criação de um grupo de trabalho, desde o ano passado, sobre o Tráfico de Pessoas, e foi possível reforçar a cooperação judicial na área penal, em matéria deste tipo de Tráfico de Pessoas e contrabando de Migrantes.

Outra área importante são os crimes financeiros. Como tem sido o combate aos mesmos?

A ONUDC tem trabalhado com um projecto da SDG Fund, para combater os fluxos financeiros ilícitos (IFF) e isso está claramente reafirmado na nossa Visão Estratégica para África 2030, que foi lançada no ano passado. Lutar contra os IFF é combater a corrupção, um dos principais obstáculos ao desenvolvimento sustentável e Cabo Verde tem realizações relevantes nesta luta com a adopção de quadros legais e institucionais, nacionais e internacionais, para prevenir e combater a lavagem de capitais, o financiamento do terrorismo, a corrupção e para recuperar e gerir – e isto é um aspecto importante em que país tem dado passos muito relevantes – os activos do crime, convertendo-os em um bem público. Cabo Verde é membro do GIABA, já criou a UIF, e o sistema jurídico cabo-verdiano é dotado de diplomas que previnem e reprimem a lavagem de capitais. E tem dado outros passos importantes na luta contra lavagem de capitais, financiamento de terrorismo e da Proliferação de Armas de Destruição. Também, foi criado o Conselho de Prevenção da Corrupção, que é presidido pelo Tribunal de Contas, uma autoridade muito importante para promoção de acções de prevenção contra a corrupção e medidas de reforço da integridade do sector público. O ONUDC não trabalha com rankings, mas com o nível de implementação das recomendações da convenção conta a corrupção.

E desde 2008, da sua entrada na ONUDC, temos também assistido a uma evolução da criminalidade, nomeadamente a questão da cibercriminalidade. Como tem sido essa evolução?

Os relatórios mundiais do ONUDC, dizem isso claramente que o perfil e o modus operandi vão mudando em função dos contextos. Hoje, o desafio são os crimes cometidos online, os crimes cibernéticos. As pessoas estão mais conectadas, e [os criminosos] aproveitam essa oportunidade para exploração, para cometimento do crime sobretudo junto dos grupos mais vulneráveis. Em Cabo Verde, por exemplo, temos notado que as crianças são as principais vítimas. Em 2021, houve em Cabo Verde, 3.855 carregamentos de material de abuso sexual de crianças (Relatório sobre Cybertips do National Center for Missing & Exployed Children). Temos prestado assistência ao país na capacitação, prevenção e sensibilização. Desde 2020 temos capacitado os serviços de aplicação da lei, na colecta de evidências online e na investigação. Também temos capacitado os professores, em parceria com o Ministério de Educação para poder ter uma atitude muito pedagógica em termos da mudança de comportamentos na utilização da internet pelos estudantes. Além do trabalho com os professores, em 2021 fizemos três workshops online sobre as ameaças cyberemergentes para investigadores e procuradores PALOP.

Para finalizar, como é trabalhar com um Estado como Cabo Verde? Porque uma coisa é aderir às convenções, outra é a prática.

Trabalhar com as autoridades nacionais tem sido uma satisfação porque Cabo Verde tem mostrado claramente o compromisso e feito grandes esforços para dar uma resposta aos desafios. Eu acho que os esforços de Cabo Verde no combate ao crime organizado tem sido um factor chave para a sua estabilidade. Todos os anos renovamos a nossa cooperação com Cabo Verde e há um diálogo muito aberto com as autoridades nacionais no sentido de este assunto continuar sempre na agenda de governação do país como prioridade. O crescimento é possível com um sistema de justiça e um sistema de segurança fortes. O país tem todas as condições para trabalhar nesse sentido, então não devemos ter problemas em falar do combate ao tráfico ou reforço da segurança. Temos que continuar a falar, se nós não falamos os outros países falam por nós. Cabo Verde tem de continuar neste esforço, tem de aumentar a cooperação regional e há mecanismos para isso e nós estamos aqui para continuar a assistir os esforços do país.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1106 de 8 de Fevereiro de 2023.

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Autoria:Sara Almeida,12 fev 2023 8:24

Editado porEdisangela ST  em  13 fev 2023 15:06

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