O período eleitoral que se aproxima, a reconstrução de um país, a instabilidade actual, o exercício transparente da democracia, as relações com o Presidente da República e a viabilização do governo pós-eleições são alguns dos temas abordados.
Acredita que o próximo dia 10 de Março [data das eleições legislativas] vai ser um momento de viragem para a Guiné-Bissau?
Acredito que sim. Acredito que há condições para o povo guineense expressar de forma livre a sua preferência e acredito que essa preferência vai recair num partido com condições de virar a página em relação àquilo que tem sido o percurso político do país.
Qual é a sua visão para a Guiné-Bissau?
Uma visão positiva, que convoque todas as competências guineenses para darmos uma nova chance ao nosso país. A Guiné-Bissau é um país viável. É um país que atravessou, e atravessa, um período muito complicado, mas isso não nos transforma em gente especial pela negativa. Penso que é preciso saber ler os fenómenos políticos e os fenómenos sociais, saber contextualizar esses fenómenos, tirar as devidas ilações e encontrar os antídotos necessários para poder seguir em frente. É óbvio que enfrentar os problemas que a Guiné enfrenta, no período em que o faz, torna a compreensão desses fenómenos ainda mais difícil. Mas se nós quiséssemos fazer algum paralelismo, os outros povos que saíram de processos de libertação também tiveram os seus momentos de consolidação democrática. Repito, o que torna difícil perceber a situação da Guiné-Bissau é o facto de estar a acontecer numa altura em que os demais já têm um processo consolidado. Mas se recuarmos e verificarmos que na altura em que outros povos estavam em guerras civis, enfrentavam graves problemas, foi um período em que a Guiné pensava ser especial pela positiva e considerava que essas coisas não aconteciam na Guiné. Portanto, temos de ousar aceitar aquilo que é o nosso destino e assumir o compromisso de trabalhar para alterar pela positiva esse destino. Eu acredito.
Acha que vai poder completar um trabalho que deixou a meio [Domingos Simões Pereira foi destituído do cargo do primeiro-ministro em Agosto de 2015, pouco mais de um ano depois de ter sido eleito]? Ou seja, considera que tem uma dívida para com o país?
Eu tenho muitas dívidas para com o país. Em várias vicissitudes que vão acontecendo na vida, as pessoas vão expressando solidariedade, alguns acham que eu fui vítima de um tratamento injusto, mas a minha resposta é sempre a seguinte: eu sinto que a Guiné deu-me muito. Deu-me oportunidades que o comum e a média do guineense não teve. Tenho uma formação que considero boa, tenho uma mundividência que está por cima da média do guineense, tenho um conjunto de instrumentos ao meu dispor que me permitem enfrentar a minha vida e o meu futuro com bastante optimismo. Isso não é o apanágio normal para o comum dos guineenses, portanto, nessa perspectiva não tenho muito a reclamar em termos pessoais em relação à Guiné-Bissau. Obviamente que partilho daquela frustração de pertencer a uma geração que não vê materializado o sonho da construção de um país bastante mais apaziguado e bastante mais desenvolvido. Por isso, sinto que tenho uma obrigação, não só de concluir o projecto que havíamos iniciado em 2014, mas renovar o sonho guineense e de sermos capazes de o materializar. Foi por isso, e com este sentimento, que nos empenhámos na elaboração do nosso plano estratégico operacional, agora chamado de Terra Ranka [programa eleitoral do PAIGC tem como nome Pa Terra Ranka Um Biás – “Para que a terra arranque de vez”, em crioulo da Guiné]. Quando avançámos essa elaboração tentámos convocar a nação guineense para desenvolver uma visão estratégica que se afaste daqueles rótulos imediatistas, aqueles rótulos que têm visibilidade, mas que não apresentam a melhor parte da Guiné-Bissau.
Até porque, presumo que haja a noção que a construção do país levará tempo, as eleições não vão fazer milagres.
Com certeza. É um pressuposto muito importante, mas que não resolve nada por si só. Costumo dizer que a realização de eleições não é um porto de chegada, é um ponto de partida. É um pressuposto necessário, mas não é uma condição suficiente. É preciso que a partir daí a nação guineense se possa reunir para criar as condições que permitem ao país desenvolver-se. Mas acredito que é um ponto de partida muito importante. O programa que estávamos a implementar foi cortado e isso interrompeu uma fase que era muito auspiciosa para a Guiné-Bissau. Bem, nós podíamos exacerbar o sentimento de frustração, de revolta, de ódio, mas isso seria não ser capaz de compreender os fenómenos sociais que estão em formação. Repara que acabei de dizer que reconheço que o país tem-me dado mais do que aquilo que dá ao normal e médio dos guineenses. Isso significa, traduzido para outros quadrantes e outras situações, que o comum dos guineenses considera que uma concorrência, utilizando os métodos que são tradicionais, provavelmente ser-me-ia favorável, porque realmente tenho outros instrumentos. E sendo humano, é normal que pense em mim, mas tenho de ultrapassar essas limitações humanas e ser capaz de enquadrar aquilo que eu considero ser os défices doutras camadas e doutros que também são cidadãos guineenses e têm os seus direitos. Pode parecer demasiado altruísta e quase uma ilusão, mas eu nutro esse sentimento, que não é pelo facto de não ter sido permitida a execução da minha visão estratégica que eu vou ficar a nutrir ódio. Não tenho qualquer ódio. O que disse logo a seguir à queda do governo foi, vamos fazer a nossa luta, mas talvez tenhamos de reconhecer que a velocidade com que quisemos sair não encontrou o país preparado para aceitar essa velocidade. Portanto, em cada momento, independente do que acontece, há um lado positivo. E o lado positivo que eu vi nesse percurso é que tivemos tempo para arrumar a casa, para conhecer as pessoas, para fazer um diagnóstico bastante mais aprofundado daquilo que é a realidade do país, agora podemos ajustar o nosso programa e estou convencido que estamos melhor preparados para, não só interpretar, mas para materializar aquilo que é o anseio do povo guineense.
Será importante terminar com a narrativa de várias instituições internacionais de que a Guiné-Bissau é um país de “instabilidade crónica”?
Sim. Simplesmente, para que a opinião pública internacional nos seja favorável temos de começar a olhar para nós próprios de forma diferente. Repare que os grandes títulos que colam a Guiné-Bissau aos piores indicadores são dados pelos próprios guineenses. Essa Guiné-Bissau existe. A Guiné-Bissau onde há narcotraficantes, essa Guiné-Bissau existe. Mas será que isso faz da Guiné-Bissau uma terra de narcotraficantes? Não! Provavelmente, do milhão e oitocentos mil habitantes da Guiné-Bissau deve haver uma dúzia de pessoas ligadas a esse negócio, mas isso não faz da Guiné-Bissau um país de narcotraficantes. A Guiné-Bissau teve problemas de golpes de Estado, de violência, de assassinato, mas será que o grosso da população guineense é violento? É gente ligada ao crime internacional? Não! É preciso encontrar essa Guiné positiva, é preciso projectar essa Guiné positiva, mas é preciso sobretudo sustentar essa Guiné positiva. E aí está o desafio de todo este processo, porque sustentar significa todos os dias produzir razões para que a imprensa internacional e a opinião pública internacional possa falar positivamente de nós. E é aí que temos dificuldade, porque quando assumimos um processo democrático, temos de estudar o processo democrático. Temos de decifrar os condimentos desse processo. Não devíamos precisar que venham autoridades de outros países, nomeadamente da CEDEAO, para nos dizer que a nossa Constituição tem de ser respeitada. E ainda ter gente a dizer que não tem condições para respeitar a Constituição. Quem não tem condições para respeitar a Constituição não deve entrar no jogo político. Realizamos as últimas eleições em 2014, não era necessário vir gente de fora pressionar-nos para a realização de eleições em 2018. Quem pensa que não é necessário renovar os órgãos das instituições democráticas é melhor que saia do jogo. Nós vamos para eleições legislativas num país que tem um regime semipresidencial, um Presidente da República que não compreenda que não é chamado neste jogo, que não tem nenhum papel neste jogo, se não compreende então não tem condições de ser Presidente da República. Depois as pessoas dizem: ‘falam mal de nós lá fora’. E nós? Produzimos coisas boas para poderem falar de nós?
De qualquer forma estão a ser dados passos inéditos: primeiro a assinatura do acordo entre cinco partidos – que chegou a dizer que marcava uma nova era na política guineense – e mais recentemente a assinatura de um pacto entre 21 partidos – e aqui já disse que não é um grande exemplo para a democracia. Porquê?
A assinatura entre os cinco partidos é uma espécie de, vamos pôr entre aspas, uma coligação informal. Entendemos que estamos num momento político especial em que a nossa democracia voltou a necessitar de apoio, de ser resgatada e de ser protegida. Todos aqueles que aderem a um projecto nacional para salvar a nossa liberdade e a nossa democracia, se se juntam, é algo muito positivo porque mostram que põem a Guiné-Bissau em primeiro lugar. Em relação ao segundo, é uma assinatura diferente porque é um pacto de conduta, uma espécie de compromisso dos actores políticos de respeitar a regra democrática instituída. Ora, eu saúdo o facto de se estar a assinar um documento desta natureza, mas talvez o facto de termos de assinar um documento desta natureza demonstra que o exercício democrático ainda não está consolidado. Porque quem entra no jogo democrático, em princípio, subscreveu o respeito das regras inerentes a esse processo. Se ainda é preciso que forças de facilitação nos convençam que devemos ter uma conduta propícia ao exercício da democracia é porque lá dentro de nós ainda não é genuíno esse sentimento. Mas de qualquer das formas é algo positivo.
Acredita numas eleições transparentes?
Sim e por uma razão muito simples, porque o povo guineense tem experiência na realização de eleições. O número de eleições que já se realizaram, já ensinou o povo guineense a decifrar as questões que são tratadas. Mais, o povo guineense já sabe como controlar a transparência das eleições. Em muitas das nossas aldeias, que chamamos de tabancas, o dia das eleições é uma espécie de picnic, as pessoas vão votar e já não saem do espaço de votação. E o que acontece? Eles filtram as pessoas que vêm votar, porque todos nos conhecemos. E ficam junto das assembleias de voto para aguardar o momento da contagem. Feita a contagem, automaticamente se faz a afixação das actas e, neste momento, não há nenhuma tabanca da Guiné em que não haja alguém com um smartphone, portanto a primeira coisa que se faz é fotografar a acta e enviar essa imagem para todo o lado. Nesse aspecto, o povo guineense vai poder ser um bom fiscalizador do processo. Os outros condimentos também são importantes, quando sei que a CEDEAO, a União Africana, a CPLP, a União Europeia vão acompanhar o processo, isso é muito importante. Tudo isto vai apertar o cerco àqueles que não estão preparados para jogar com as regras estabelecidas. E é isso que nos dá confiança.
E acredita que vão ser umas eleições pacíficas?
Têm de ser. As forças da ordem existem para dissuadir, mas também para impor a ordem. Já vimos muitas entidades interessadas em pôr em causa esse exercício. Felizmente fizeram-no a tempo para nos alertar que poderia haver ameaças a esse exercício pacífico. Portanto, só posso acreditar que as medidas vão ser tomadas para garantir eleições pacíficas, quem tentar pôr em causa a liberdade de expressão do povo deve ser responsabilizado judicialmente.
De qualquer forma, temos todo um passado de atrasos, tanto na realização do recenseamento como das eleições. Pensa que foram deliberados?
Não penso, foram! Toda a gente sabe. Desde logo porque tem a intervenção de forças que são estranhas ao processo. Um país como a Guiné-Bissau, com todas as dificuldades que tem, com um governo de transição, quando chega a altura de realizar o recenseamento vamos escolher o método mais complexo: queremos um recenseamento de raiz, biométrico, em que os cartões são entregues no momento do registo; tudo isto foi feito deliberadamente para poder ganhar tempo. Houve instruções a representações diplomáticas estrangeiras no sentido de dificultar o processo, para inviabilizar a data de 18 de Novembro que tinha sido marcada. Tudo isto, com mais ou com menos dificuldades, foi feito.
Havia quem desejasse que não se fizessem as eleições?
Não. O que sei é que houve um consenso em Lomé e depois vimos entidades que foram parte desse consenso a afirmar que tinham dúvidas se haveria condições para que as eleições acontecessem na data marcada. Ficou evidente que havia forças interessadas em ir adiando. Por quanto tempo? Enquanto as sondagens e as intenções de voto dessem uma preferência pelo PAIGC, enquanto o povo guineense fosse mostrando acreditar no projecto do PAIGC, não havia vontade que houvesse eleições e foram adiando a ver se entretanto conseguiam produzir novos fenómenos sociais que pudessem retirar a credibilidade do PAIGC.
Que fenómenos?
Todo o tipo de coisas: manifestações, greves da função pública, tentar colar o PAIGC a esta governação como se os outros partidos não fizessem parte também dessa governação.
Nos últimos dias tem havido alguma violência em Bissau, alguns momentos de tensão, têm origem política?
Penso que a intenção da manifestação teve um propósito genuíno por parte dos estudantes, que ao terem conhecimento da intensão do sindicato dos professores de voltar à greve e pôr em causa o início do ano lectivo, que quiseram manifestar a sua discordância, pressionado ambas as partes do processo a chegarem a um entendimento. O que eles não contavam é que esse processo descambasse, como descambou. Porque houve gente infiltrada que fez o aproveitamento político. Há dois elementos mais do que evidentes em relação a isto: primeiro, na véspera da manifestação há um líder político que chega ao país e que afirma que é preciso travar o processo eleitoral antes que seja irreversível. Segundo, há um blog muito conhecido e muito próximo de outros quadrantes na Guiné-Bissau que um dia antes disse tudo o que ia acontecer no dia seguinte. Mais, durante a própria manifestação o tal líder político toma a palavra e discursa perante os manifestantes. Afinal, era uma manifestação para termos direito a aulas ou era uma reivindicação para falar do processo eleitoral? Como se não bastasse, os estudantes quando deram conta que estava a haver um aproveitamento retiraram-se e pediram a todos que se retirassem das ruas de Bissau. Mesmo tendo retirado o grosso do seu pessoal, a violência continuou. A tentativa de assalto aos estabelecimentos continuou. Ficou patente que a motivação era outra. E ainda não acabou. Se a isto tudo associarmos o facto de ter ficado provado – porque o Presidente admitiu-o – que o Presidente da República resolveu oferecer viaturas aos líderes sindicais, bom, só posso admitir que ele é generoso, mas já que ele é generoso que estenda essa generosidade aos professores e pague os atrasados que eles estão a reivindicar. Portanto, há aqui falta de honestidade por parte de muita gente, mas o povo guineense vai saber dar resposta a isso.
Quando estamos quase a iniciar a campanha eleitoral, esperava que o Presidente da República fosse um exemplo de promoção da estabilidade? Ou acha que isso não vai acontecer?
Nunca é tarde para nos ajustarmos aquilo que é a nossa responsabilidade constitucional e legal. O caminho que o Presidente da República trilhou nestes quatro últimos anos foram errados, mas, como disse, nunca é tarde. Penso que ainda pode prestar um bom serviço ao país com um discurso de tranquilidade e de ordem. Pode prestar um bom serviço ao país retirando-se da cena política, porque isso é um pressuposto em democracia, não é? Nós exercemos as nossas competências e quando chegamos ao período de eleições pára tudo, saímos do jogo e deixamos que o povo afirme a sua vontade. São eleições legislativas. Ninguém compreende que o presidente force a sua presença no debate. Não é para aí chamado, não é para aí tido. Deixe os partidos políticos jogarem o jogo democrático. Quando chegar a altura das eleições presidenciais ele terá oportunidade de dizer aquilo que pensa e de mobilizar os apoios que pode mobilizar.
E o que acha que vai acontecer no pós-eleições? Se o PAIGC ganhar, tendo em conta o historial de relações menos fáceis, o Presidente vai viabilizar o governo?
Tem de viabilizar. Por várias razões. Desde logo porque os três anos de crise – nos quais consigo ver alguns pontos positivos, porque não foi regulado pela força – o povo guineense perdeu, a Guiné-Bissau perdeu, mas as instituições foram chamadas a utilizar os instrumentos democráticos existentes para tentar dirimir e nesse exercício todos aprendemos e todos crescemos. Penso que o Presidente da República aprendeu algo e penso que na próxima oportunidade que for chamado a intervir vai ponderar melhor a utilização do dispositivo da demissão do governo. Penso que a Assembleia Nacional Popular aprendeu e acredito que da próxima vez que esta circunstância se reproduzir, deputados de um determinado partido irão ponderar melhor o voto contra a aprovação do programa do seu próprio partido. Acredito que o próprio Supremo Tribunal e as instâncias judiciais aprenderam muito, porque ficou provado que as instituições da República e os cidadãos conhecem os seus direitos e sabem fazê-los respeitar e essas instâncias judiciais não vão querer continuar expostos a uma demonstração de alguma dificuldade em fazer valer aqueles que são os ditames constitucionais. A própria sociedade civil aprendeu. Com base nisso tudo, acredito que não haverá crise a partir do momento que o país escolher os seus legítimos representantes e saiba qual é o partido que recebe o aval do povo para poder governar. No que diz respeito ao PAIGC, também tomámos novos dispositivos. Hoje, os estatutos do PAIGC são bastante mais flexíveis em relação à questão da nomeação, ou eleição, do Primeiro-Ministro. Obviamente, continuam a dizer que em caso de vitória nas legislativas, o presidente do partido é o candidato do PAIGC ao cargo de Primeiro-Ministro, mas se daí resultar alguma crise, todas as disposições estão tratadas para que o PAIGC possa escolher outro candidato e submete-lo rapidamente para assim ultrapassar a crise. Portanto, estamos muito tranquilos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 898 de 13 de Fevereiro de 2019.