COVID-19 em África : “Tornamo-nos irracionais, sufocamos as críticas e exigimos lealdade inquestionável”

PorNuno Andrade Ferreira,26 abr 2020 7:41

Professor da Universidade de Joanesburgo, na África do Sul, Alex Broadbent é especialista em filosofia da epidemiologia e director do Instituto para o Futuro do Conhecimento. Crítico da adopção, no continente africano, de medidas de confinamento, receia “acções movidas pelo medo” e teme que a pandemia esteja a ser usada como desculpa para reforçar o poder de regimes autoritários.

A táctica em quase todo o mundo parece ser a mesma: confinar. Como podemos sustentar essa estratégia nos países africanos?

Não creio que a estratégia de “bloqueio” possa ser implementada, e muito menos sustentada, em muitos países da África Subsaariana. Pessoas em habitações pequenas e sobrelotadas não podem ficar em casa o dia todo, isso não é psicologicamente viável. Muitas pessoas usam saneamento e abastecimento de água partilhado, a alguma distância das suas casas. Alguns recebem subsídios sociais que exigem viagens para serem levantados. Nas áreas rurais, muitos estão envolvidos na agricultura e na agricultura de subsistência. 90% do emprego em África está no sector informal e geralmente vive-se do ‘mão para a boca’, dependendo do que se ganha naquele dia ou semana. Nesta situação, é simplesmente impossível confinar as pessoas nas suas casas e esperar que elas não façam nada.

Então qual foi a base da decisão dos governos?

Não conheço o pensamento dos governos, mas suspeito que houve um elemento ‘imitador’, que é a palavra usada pelo Banco Mundial. O mesmo Banco Mundial que alertou recentemente os países africanos para não copiarem o que foi feito no ocidente, mas desenvolver medidas próprias, personalizadas, de acordo com a situação.

Que medidas fariam sentido?

Restrições às viagens entre regiões podem ajudar a atrasar a propagação da doença, enquanto o isolamento de populações vulneráveis, especialmente idosos, pode ser alcançado a um nível comunitário.

O Instituto para o Futuro do Conhecimento, que dirijo, acaba de lançar um filme, em parceria com a Picturing Health, no qual os líderes comunitários de uma zona rural do Malawi apresentaram a sua própria solução para o problema, deslocando idosos para algumas habitações, distanciadas das pessoas mais jovens. A maioria da população pode, então, sustentar a vila. Isso mostra o poder de apresentar às comunidades locais um problema e pedir-lhes para sugerir soluções humanas, respeitadoras e mais eficazes.

Parece evidente que as consequências sociais e económicas serão devastadoras. O que podemos esperar?

Não sei o que podemos esperar e tenho certeza de que há muitas projecções económicas a serem realizadas neste momento. O meu instituto está a desenvolver uma análise de custo-benefício de várias medidas e cenários que procurará estimar as consequências para a saúde pública de medidas que foram e podem ser implementadas: em termos de desnutrição, mas também de surto de doenças, COVID-19 ou não COVID-19, e perda de vidas por essas causas. Por algum motivo, quando implementámos bloqueios em todo o mundo, considerámos a ameaça à vida representada pela COVID-19, mas não a ameaça à vida resultante das medidas adoptadas para combater a COVID-19. Isso foi estúpido e resultou, tanto na falta das tais projecções, como em projecções ignoradas pelos formuladores de políticas. Espero que isso possa ser rectificado.

Mais difícil que decidir bloquear poderá ser decidir quando reabrir, porque o vírus continuará a circular. Qual deve ser o próximo passo?

Na minha opinião, devemos passar imediatamente para um conjunto de medidas como aquelas que exemplificava há pouco. Medidas que são alcançáveis e que têm um custo proporcional ao benefício. Viagens limitadas e protecção dos vulneráveis poderiam ser mantidas por um período considerável de tempo. O vírus não está a desaparecer, pelo que acabaremos por ter um levantamento das medidas de bloqueio, apesar de não haver uma melhoria significativa nas taxas de infecção, pois existe a percepção de que não podemos sustentar a situação actual.

Nas democracias frágeis, como existem muitas no continente, estes estados de emergência podem comprometer liberdades e direitos a longo prazo?

Sim, podem, e isso será uma preocupação daqui para a frente. Já existem partes do mundo em que vemos sinais preocupantes de estados autoritários a usar tudo isto como desculpa para aumentar o controlo do poder. O facto de as populações não estarem a ser amplamente consultadas sobre as medidas que estão a ser impostas também é preocupante.

Deixe-me ampliar o escopo de nossa análise. Parece que entrámos numa distopia. Como é que fomos apanhados no meio disto?

Não estamos preparados para aceitar uma mortalidade inevitável. Tornamo-nos irracionais, ignoramos as consequências das nossas acções, sufocamos as críticas e exigimos lealdade inquestionável à autoridade. Estas são as minhas hipóteses.

Estamos diante de algo circunstancial ou perante um momento decisivo, que moldará a humanidade a longo prazo?

Isto terá um efeito a longo prazo, mas não sei ao certo qual. Infelizmente, preocupo-me que isto possa não ter o efeito que deveria ter, resultando – pode resultar – em mais acções movidas pelo medo, em vez da percepção de que não podemos controlar o mundo e devemos percorrer o melhor caminho através dele, em vez de tentar alcançar um objectivo inatingível, ignorando o facto de que estamos a falhar. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 960 de 22 de Abril de 2020. 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Nuno Andrade Ferreira,26 abr 2020 7:41

Editado porSara Almeida  em  3 fev 2021 23:21

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.