Pobreza e prosperidade : Combater as desigualdades obriga todos a remar para o mesmo lado

PorJorge Montezinho,28 dez 2020 9:33

A pobreza vai aumentar pela primeira vez em 25 anos, dizem todos os estudos e relatórios das agências internacionais. A pandemia da Covid-19 é a responsável, mas não a única, por esta subida, depois da tendência de queda durante uma geração. O que esta pobreza traz de novidade é que vai ser transversal, vai afectar quem já era pobre, quem vive na pobreza extrema e vai criar os chamados novos pobres: urbanos, com mais estudos e que trabalham em sectores fora da agricultura.

O aumento da pobreza extrema, de 2019 a 2020, é projectado como o maior desde que o Banco Mundial começou a monitorizar o fenómeno globalmente e de forma sistemática. Em Cabo Verde, conhecem-se os números actuais de pobres, mas ainda não se sabe quanto é que esta contabilidade aumentará (o Expresso das Ilhas perguntou ao governo quais eram as previsões, mas não obteve resposta). O que se sabe é que o PIB poderá cair 11%, números do governo, ou mesmo 14%, dados da Fitch. Por outras palavras, 11% da riqueza nacional vai desaparecer em 2020, o mesmo é dizer que o país estará 11% mais pobre.

A nível internacional, o mundo escolheu para o período 2030 a erradicação da pobreza em todas as suas formas e em todos os lugares, como foco prioritário dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A nível nacional, o Governo assumiu como primeiro compromisso da década para a IX Legislatura 2016-2021 a “redução da pobreza relativa para um dígito e erradicação da fome e da pobreza extrema do país no quadro da promoção do crescimento económico inclusivo”. A pandemia veio deitar por terra ambos os objectivos.

Pobreza em Cabo Verde

O conceito de pobreza em Cabo Verde está intimamente relacionado com a falta de comida, trabalho e de dinheiro, no fundo, os básicos da sobrevivência humana. O arquipélago tem uma incidência de pobreza absoluta global na ordem dos 35,2%, cerca de 179.909 pessoas são consideradas como pobres. Ou seja, vivem em agregados familiares com consumo médio anual por pessoa abaixo do limiar da pobreza, fixado no meio urbano no valor de 95.461 CVE (262 escudos diários) e no meio rural no valor de 81.710 CVE (224 escudos diários). Estes números foram referidos recentemente pelo Ministro das Finanças e são os mesmos que aparecem no último Perfil da Pobreza, publicado pelo INE em 2015.

Dos 179.909 pobres, estima-se que cerca de 54.395 pessoas, cerca de 10,6% da população, vivem em extrema pobreza, ou seja, vivem em agregados familiares com rendimentos que permitem consumos per capita anuais abaixo de 49.699 CVE (136 escudos diários), no meio urbano, ou menos de 49.205 CVE (135 escudos diários), no meio rural.

O relatório Poverty and Shared Prosperity 2020, do Banco Mundial, avança que o impacto da Covid-19 na redução da pobreza será rápido e poderoso. Apenas em 2020, esta pandemia poderá aumentar dramaticamente o número de pessoas que vivem em extrema pobreza, entre 88 milhões e 115 milhões. “Isso significa que as crianças não irão à escola, que as taxas de mortalidade podem ser afectadas, assim como a desnutrição e a qualidade da água e muitos outros indicadores”, disse Axel van Trotsenburg, Director de Operações do Banco Mundial.

Compreender a desigualdade

O mesmo documento mostra que a meta de reduzir a taxa global de extrema pobreza, algo difícil de alcançar mesmo antes do surgimento da COVID-19, agora é impossível sem medidas políticas rápidas, significativas e substanciais. Uma das recomendações do Banco Mundial para os governos é que estes compreendam a desigualdade sistémica, ou seja, que saibam quem são os excluídos, porque ficaram nessa situação e porque se mantêm nela.

“Os governos têm essa percepção sim”, diz ao Expresso das Ilhas o economista e investigador Jonuel Gonçalves. “Porém, a maior parte age como se não soubesse ou não estivesse interessada. Há duas razões principais. A primeira é a reduzida competência dos responsáveis nos sectores que deviam ocupar-se do problema, na medida em que não conseguem elaborar linhas de acção com fracos recursos iniciais, ou seja, não entendem como criar estímulos que levem os pobres a gerar rendimentos. A segunda razão é indiferença perante o problema acompanhada de justificativas políticas para não admitir o seu carácter sistémico”.

Já para o analista social cabo-verdiano João Alvarenga, boa parte dos dirigentes e governantes africanos conduzem as políticas de forma descolada da realidade do povo. “Vivem sumptuosidade enquanto o povo passa as mais básicas dificuldades e privações. O sector primário da economia é muito mais lento a adaptar-se às mudanças tecnológicas, alterações económicas e financeiras rápidas e a pandemia encontrou esses países já em crise e com massas populacionais sofrendo de vários males, inclusive a fome, por isso, a pandemia só acelerou e expôs de forma mais clara a realidade nua e crua já formatada há séculos de desigualdades, de exclusões e de explorações”.

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O Banco Mundial avisa que a forma como o mundo vai responder aos desafios actuais terá uma influência directa na capacidade de neutralizar os retrocessos na redução da pobreza e determinará se milhões de pessoas terão a oportunidade para alcançar o seu potencial e as suas aspirações. Mas também será preciso saber como será dada essa resposta: auxílio directo ou através de ferramentas para que as pessoas possam procurar as suas próprias soluções?

“A pobreza constitui um duplo problema: é uma grande injustiça social e é obstáculo maior ao desenvolvimento pois traduz exiguidade do mercado interno”, sublinha Jonuel Gonçalves. “Os níveis de pobreza em África obrigam a programas emergenciais de ajuda pois trata-se de sobrevivência a curto prazo. A acção emergencial não resolve, mantém em vida, daí ser decisivo criar elementos de apoio à geração de empregos e, portanto, de rendimentos. Isto significa diversificar as economias. Não há segredo nenhum nas vias para tal, já foi feito em várias partes do mundo ao longo da História e, sobretudo, nos últimos cem anos. Criação de centros de apoio técnico, de comercialização e de crédito proporcional ao estado de avanço das iniciativas. Implica também o estabelecimento de ambiente geral de combate aos baixos (ou quase nulos) rendimentos, ou seja, diversos níveis de formação profissional no próprio trabalho (on job) e melhoria visível das condições de vida, a curto prazo, nos segmentos que mais avancem nessas iniciativas, pois é estímulo para os segmentos inicialmente mais lentos”.

“Se alguém está com fome, tem que receber pão, não teorias, nem cursos de formação”, defende João Alvarenga. “Agora, a longo e médio prazo há que se preparar para que essas pessoas tenham condições de se erguerem e caminharem com os próprios pés. Precisarão de educação, cuidados de saúde, protecção social, linhas de créditos para auto-emprego, mas isso quando estiverem alimentados e saudáveis”.

As respostas contra a crise

O governo cabo-verdiano está a pôr no terreno uma série de acções que têm como objectivo aliviar a perda de rendimentos das famílias mais pobres: desde o Rendimento Social de Inclusão, alargado para 29.000 famílias; passando pelas isenções da taxa moderadora de saúde para os serviços de consultas, cirurgias e internamentos e dirigidos a crianças dos 0 aos 5 anos, pessoas em situação de vulnerabilidade económica, pensionistas do regime não contributivo, pessoas com deficiências e doadores de sangue; até à iniciativa de anulação de dívidas de fornecimento de água e energia e isenção de taxas de ligação de água, esgoto e electricidade. O Expresso das Ilhas perguntou aos dois especialistas com quem falou se devia haver programas de estímulo tendo como alvo específico os excluídos e que tipo de programas seriam recomendáveis.

“Além dos actuais inevitáveis programas assistenciais, parece-me central que toda a África olhe e compreenda que governar bem é saber gerir os riscos e a pobreza é um risco maior para a própria vida humana”, refere Jonuel Gonçalves. “Os programas assistenciais são uma boa ocasião para aumento de conhecimentos de base por parte dos beneficiários. É um ponto de partida nesses sectores da população tendo em vista outros níveis de educação de base, sem a qual não será possível sucesso em nenhuma iniciativa. Como dizia J.K. Galbraith ‘não há população educada que seja pobre nem população não educada que o não seja’. Ignorância e pobreza andam juntas. Outra constatação de base é a urgência na construção de sectores agro-alimentares com excedentes. O terceiro movimento a considerar é de ordem macro: absorver inovações que conduzam à criação de redes produtivas capazes de promover reais efeitos de desenvolvimento”.

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“A situação é muito difícil e não há uma resposta rápida e pronta”, diz João Alvarenga, “são exclusões e desigualdades construídas e reproduzidas há séculos e afectando vastas populações. Existem problemas, étnicos, religiosos, raciais, políticos associados e misturados a isso tudo. Acrescente-se ainda os problemas económicos da desigualdade de quem tem mais condições contra aqueles que só têm a mão-de-obra. Devem existir programas universais, como os de renda mínima para todos, para acabar com a fome e desnutrição e outros programas sectoriais e mais focados a determinados grupos como jovens, mulheres, crianças em idade escolar, etc”.

Acções correctas para melhores resultados

O apelo actual à comunidade internacional é que aumente a ajuda aos países menos desenvolvidos com fundos adequados. Ou seja, pretende-se que haja um espaço suficiente para que cada país faça as suas próprias escolhas políticas.

Mas, antes de discutir todas as questões à volta do desenvolvimento a médio e longo prazo, é preciso decidir o que fazer no imediato. O governo cabo-verdiano, como outros, já veio pedir o perdão da dívida aos credores internacionais, ou pelo menos, dos encargos criados para fazer face à pandemia.

“Prefiro a expressão ‘anulação da dívida’ para evitar as conotações paternalistas ou ‘de favor’”, salienta o economista Jonuel Gonçalves. “As responsabilidades das dívidas estão bem repartidas entre os governos africanos e as estruturas, sobretudo financeiras, mundiais. Parte do capital em dívida até já foi pago e o prolongamento do processo decorre, em boa medida, dos juros aplicados pelos credores. A anulação da dívida deve beneficiar os países com menos recursos e instituições com mais vontade concreta de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, é óbvio que em relação às dívidas a pagar tornou-se indispensável uma moratória de 3 a 5 anos (consoante os casos) para aliviar o peso do serviço da dívida sobre os orçamentos nacionais – em certos casos ultrapassam os 50% das despesas orçamentadas – e criar meios de investimento. É útil para os países endividados e é garantia de solvência para os credores”.

João Alvarenga também declara ser favorável ao perdão das dívidas, mas, avisa, os governos deveriam pensar mais na qualidade desses endividamentos. “Endividar para quê?”, questiona, “muitas dívidas são dívidas de ‘elefantes brancos’, obras de pouca valia. Os Governos deveriam ser mais rigorosos na sua gestão e na escolha de políticas e de prioridades e não em manter-se no poder a qualquer custo. Para evitarem prejudicar o país, colocando-o numa situação de profunda e continua dependência com credores e com limitadas margens de manobra para novos créditos e financiamentos à economia”.

Para o Banco Mundial, é necessária uma abordagem complementar em duas vertentes: responder eficazmente à crise urgente e continuar a concentrar a atenção em questões de desenvolvimento. Entre as recomendações – ampliar a aprendizagem e melhorar os dados, investir na preparação e prevenção, e expandir a cooperação e a coordenação – há uma que fala mais directamente aos governos: reduzir as lacunas entre as políticas formuladas e os resultados na prática.

“A perda de paciência pelas sociedades é um factor de pressão sobre os governos”, avisa Jonuel Gonçalves. “E tende a aumentar. Se os governos não forem capazes de medir esta subida nem os seus grandes eixos, optando pela repressão ou por artifícios de perpetuação no poder, aí teremos agitação social prolongada. No final, são sempre os governos que caem, mas o tempo necessário para isso muitas vezes é extremamente prolongado. Essa é uma das causas do atraso de várias nações”.

O último aviso deixado pelo Banco Mundial é que nenhum país, sozinho, poderá controlar adequadamente, e muito menos prevenir, o tipo de emergência que o mundo enfrenta hoje. No futuro, a preparação, a prevenção e as respostas às crises têm de ser globais e colaborativas. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 995 de 23 de Dezembro de 2020. 

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Autoria:Jorge Montezinho,28 dez 2020 9:33

Editado porAndre Amaral  em  29 set 2021 23:20

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