Antes de mais nada, é importante notar que a semana que passou e a nova que agorinha se inicia estão repletos de acontecimentos marcantes que, como se fossem encomendados, ajudam a engrossar esta onda reflexiva e celebratória da queda do Muro de Berlim: em África, o fim do duplo Governo na Guiné-Bissau; na América do Sul, a renúncia de Evo Morales na Bolívia, que se junta à situação de instabilidade política que se vive no Chile, no Peru, no Equador, no Brasil, na Venezuela e na Argentina; na Europa do Sul, as eleições espanholas.
Na sexta-feira, 8 de Novembro, ali na vizinha Guiné-Bissau, na sequência da acção política, diplomática e da decisão de reforço da presença das forças militares da Comunidade Económica de Estados da África Ocidental (CEDEAO) naquele país irmão, Faustino Imbali foi obrigado a renunciar ao cargo de Primeiro ministro, que vinha ocupando desde a sua nomeação ilegal, em finais de Outubro passado, pelo Presidente cessante José Mário Vaz. Com esse desfecho, cai por terra o Governo imposto pelo Presidente (candidato à sua própria sucessão) e fica em exercício apenas o Governo cuja legitimidade democrática advém do pleito eleitoral de 10 de Março de 2019. Já não restam dúvidas de que a estabilidade democrática na Guiné-Bissau depende fortemente dos resultados das eleições presidenciais que se realizam no próximo dia 24 de Novembro.
Na sexta-feira, 8 de Novembro, também um outro acontecimento dominou a cena mediática. As forças armadas bolivianas declinaram o apoio ao Presidente Evo Morales, acusado de fraude eleitoral nas controversas eleições presidenciais de 20 de Outubro passado. Depois de perder a confiança das forças armadas e embora tendo convocado a realização de novas eleições, Evo Morales teve que renunciar o seu mandato presidencial no domingo, 10 de Novembro, alegando entretanto que se trata de um golpe de estado e denunciando um plano de prisão contra si. As ruas de Bolívia continuam em tumultos à espera de dias melhores. No Brasil, Lula da Silva foi solto, o que tem animado os lulistas em particular e petistas em geral contra o Governo musculado de Jair Bolsonaro que teve o decisivo apoio judicial do ex-juiz Sérgio Moro, agora ministro do Governo brasileiro.
No domingo, 10 de Novembro, a Espanha foi a votos, tendo o PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol), do atual primeiro-ministro Pedro Sánchez, ganho as eleições gerais, contudo sem alcançar a maioria absoluta. Isto significa que continua a fragmentação parlamentar e a instabilidade governativa dos últimos quatro anos, com o caso da Catalunha por resolver e a emergência da ultradireitista Vox como a terceira maior bancada no parlamento espanhol.
Celebrou-se, no dia 9 de Novembro, os trinta anos da queda do Muro de Berlim e é este, em traços breves e mediáticos, o cenário político-democrático dos últimos dias. A queda do Muro de Berlim significou o triunfo da democracia liberal à escala planetária e, por conseguinte, a derrota dos seus inimigos mais ferozes, como o comunismo da Europa de Leste, os regimes militares da América do Sul e os regimes monopartidários dos países africanos independentistas.
O alargamento da democracia liberal-representativa ocorreu com a chamada «terceira onda de democratização», que começou em meados da década de setenta e intensificou-se a partir dos finais de oitenta. O êxito desta onda, para o seu teorizador Samuel Huntington, consistiu verdadeiramente em tornar a democracia liberal predominante em todas as sociedades ocidentais e ainda promover a sua emergência em sociedades não ocidentais. O futuro da «terceira onda» dependeria da expansão da democracia em sociedades não ocidentais, o que, para o falecido politólogo norte-americano, estaria refém de dois factores: do desenvolvimento económico e da receptividade das culturas não ocidentais à democracia.
Quanto ao primeiro factor, Huntington não se coibiu em realçar a correlação entre níveis de democracia e níveis de desenvolvimento económico. No entanto, partilhava a opinião de que essa correlação não provaria a existência de uma relação causa-efeito, embora apontasse para provas segundo as quais o desenvolvimento económico provocaria um efeito positivo sobre a democratização.
Esta relação entre desenvolvimento económico e democracia foi fortemente realçada pelo autor, no seu livro intitulado A terceira onda: a democratização no final do século XX, onde identificava uma «zona de transição política», que mostrava que à medida que o desenvolvimento económico se acentuaria e os países entrariam nesta zona, caracterizada por níveis intermédios de desenvolvimento económico, tenderiam a se tornar passíveis de democratização. Mais tarde, surgiram outras teses académicas que deixaram de acreditar em prérequezitos económicos para a democratização (nesse caso, as de Amartya Sen).
Quanto ao segundo factor, o cultural, Huntington afirmava que a democracia moderna sempre foi um produto da civilização ocidental e que foise enraizando no pluralismo social, no sistema de classes, na sociedade civil, no primado do Estado de direito democrático, na experiência das organizações representativas, na separação entre a autoridade espiritual e temporal e na própria defesa do individualismo, características que, segundo o teórico norteamericano, desenvolveram na Europa ocidental. Por esta razão, Huntington tinha a convicção de que o grau de aceitação da democracia pelas sociedades não ocidentais dependeria da influência ocidental. É aqui que ainda hoje reside uma das resistências em relação à democracia liberal em muitas sociedades não ocidentais ou mesmo nas ocidentais de democracias mais recentes.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 937 de 13 de Novembro de 2019.