Com as nossas ilhas, eu acho, deve acontecer o mesmo: nenhuma deve representar o conjunto de todas, ou parte. No final dos primeiros vinte anos do século XXI é louvável e desejável que uma ou duas ou apenas três ilhas do nosso arquipélago deixem de representar no que diz respeito à cultura, concretamente, o conjunto das nove ilhas habitadas.
Foi assim, participando desse sentido de justiça, que eu vi as pessoas aqui no Fogo – São Filipe, Santa Catarina e Mosteiros – apoderarem-se do Festival do Livro Morabeza - 2019. E, porque as coisas acontecem acontecendo, ouvi o Vereador da Cultura da Câmara Municipal de São Filipe comprometer-se com a aprendizagem de engajamento da sua população na cultura da ilha e do país, como esteve sempre o escritor foguense Dr. Henrique Teixeira de Sousa, cujo centenário do nascimento se festeja.
Para mim e para os participantes já houve engajamento, porque os eventos, mesmo os da mesma natureza, não têm que ter o mesmo formato. Eu defendi que o do Fogo teria que ser diferente e, embora não tenha contribuído com nenhuma ideia, nem sequer previsto o modelo, este apresentado foi, possivelmente, o mais próximo de chegar a uma população que não tem o hábito de leitura (estamos ainda à procura das que têm esse hábito). Houve debates, visitas às escolas, literatura, gastronomia, show cooking e visitas literárias às localidades.
Cabe aos políticos e operacionais falarem das dificuldades financeiras de descentrar iniciativas do calibre desta, mas eu, como consumidora, apenas aplaudo. Porque eu já estive do outro lado, do lado das minorias nem sempre numéricas, do tempo em que a mulher era ou estava “subentendida”, completamente apagada nos meios de comunicação e nos outros todos como, por exemplo, na cultura. Sei também das marcas que essa discriminação pode provocar na formação dos indivíduos e na sua complexidade enquanto pessoa. Com as ilhas pode acontecer o mesmo, porque, afinal, são governadas por gente. Viva a Lei da Paridade aprovada ontem no nosso Parlamento, por unanimidade. Sessenta mulheres para quarenta homens. Ou será que me confundi?
No caminho para Chã das Caldeiras continuo a pensar na cultura, enquanto produto que pode dinamizar o progresso económico, entendido como Indústrias Criativas. Perto do Vulcão o calor tem outras expetativas. Memórias. Reconheço o chef argentino Chakall de programas de televisão e faço amizade com o chef cabo-verdiano Lamine Medina. Continuo a pensar numa definição para Cultura, mas à medida que nos aproximamos, penso, tenho a certeza, que nenhum pensamento cabe em nós além da presença do Vulcão que deixa de ser uma personagem remota, carinhosamente escondida, passa a imagem que nos acompanha no caminho, até se transformar em algo que nós podemos tocar. Há um silêncio diferente à nossa volta. Tocamos as pedras quentes, mas não é o que impressiona a nós que ainda não tínhamos tido a experiência de voltar ao Fogo depois da erupção de 2014. A estrada recuperada no meio de lavas, campos agrícolas revivificados no meio de lavas, casas renascidas nas lavas, esperança fortificada nas lavas prendem a nossa emoção. O escritor guineense Abdulai Sila faz uma homenagem à força das gentes que nas encostas trabalham. Trocamos alegrias. Trocamos dores. E faz-se fotos. E mandam-se notícias para as rádios e tentam-se crónicas.
Mais tarde, os Chefs trocam receitas com os cozinheiros da localidade e preparam pratos gourmet na cozinha da Marisa, com produtos locais como batata doce, abóbora, ervas e outros. Mistura de saberes e sabores. O chef português Diogo Rocha fala de queijos e o escritor Sobrado apresenta um livro de literatura e gastronomia. Fala-se dos escritores cozinheiros. Lembro Aurélio Gonçalves e Jorge Barbosa, não cozinheiros, que eu saiba, mas grandes gourmets. Germano Almeida e Conceição Lima (que prazer, Conceição, encontrar-te e falar das nossas terras e de nós! Mantenhas à nossa gente do Príncipe) estão numa conversa moderada por Chissana Magalhães. Tudo perfeito. Dá-se a volta à Literatura.
Conceição Lima, generosa, quando se lhe pede que diga um poema seu ela surpreende a todos com uma homenagem às vítimas da fome de quarenta e nove, que agora faz setenta anos, com “Casebre” de Jorge Barbosa. O Vulcão escutando. O recinto repleto de gente e de emoção e nem vale tentar disfarçar os olhos húmidos, Ministro Abraão Vicente, nem você também, Dr. Fausto do Rosário, … Homens e mulheres ainda labutam na encosta do Vulcão. Tão pequenos nos parecem quando os procuramos com a vista e, no entanto, tão grandes na sua perseverança, no querer ficar com as suas terras que com o Vulcão disputam. Que força, que magia prendem essas mulheres e esses homens a esse chão que queima os pés e incendeia as almas? Cada um de nós tenta uma razão. Os escritores do Fogo ou descendentes, Samuel Gonçalves, Carmelinda Abu Raya lembram peculiaridades da zona e das gentes. Manuel Veiga fala da força da ilha e revisita Henrique Teixeira de Sousa. Margarida Fontes está à vontade na sua ilha e, talvez por isso, o seu andar é mais colado ao chão pintalgado por pedacinhos de lava e o seu olhar mais íntimo. Adelaide Monteiro diz que estamos na cratera de um vulcão. Porque fala tão baixo? Porque as vozes se tornam sussurros junto do Vulcão? Em sintonia, escritores, convidados estrangeiros e locais e os organizadores olhámos à volta, seguindo as montanhas que nos cercam. Eu não pensei em abraço. Depois abaixámo-nos para sentir o fogo da caldeira, a Terra. Os fotógrafos continuam a filmar. Alguém fala em cultura e eu penso no tema da minha conversa: O que é Cultura? Mais ao fundo, parte do grupo visita os moradores da Resistência.
Fausto do Rosário, quase em murmúrio, diz que quer mostrar-me uma casa. Não faço ideia do que vou achar, mas já tinha visto tudo o que me podia surpreender e segui-o calada. Aliás, quem é que falava naquele céu?
Um susto. Sim, um susto. Vejo um rio de lava a entrar pela sala adentro da casa onde estava. Por instinto tento recuar. Os olhos ardem. Eu paro. As lágrimas salgam. Lembro a aldeia soterrada. Os sonhos salvaram-se. Olhamos para a encosta. Mulheres e homens começam a descida de mais um dia de trabalho. Outros companheiros falam com gentes que reconstruíram suas casas no mesmo sítio onde dantes esteve a aldeia. Eu não percebo. Quem percebe tanta insistência, tanto desafio, tamanha ousadia? Preciso urgente da definição de Cultura. Procuro teorias e lembro uma noite, há vinte e três anos, em que o meu filho mais velho me telefonou, e me pergunta ansioso: – “Mãe, a tesoura debaixo da almofadinha do bebé fica aberta ou fechada?” Eu hesito e ele diz: “Hoje é o sétimo dia do menino e nós estamos a fazer-lhe o “Sete”, mas eu não sei muita coisa”. Eu não lhe havia passado essa tradição, mas a avó deve tê-lo feita nas suas longas conversas. Escutei uma voz que vinha de longe: – Aberta. A tesoura fica aberta, pronta para cortar qualquer mal. – Aberta – respondi. Sem demoras, ele desligou.
Fiquei a pensar nele, jovem e inexperiente, longe da família, preocupado com o “sete” do seu bebé, certamente não para cumprir a tradição ou homenagear a avó, mas, seguramente, pensando apenas na fragilidade do seu menino, na sua total dependência. Tinha que o proteger de todos os perigos e, para isso, recorreria a tudo, chamaria todas as forças, não esquecendo essa prática cultural do lado materno, para garantir que nada iria perturbar nessa noite o sono do seu bebé e prometendo que nunca deixaria que nenhum mal lhe acontecesse, porque estaria sempre atento. Compreendi, então, que Cultura pode ser Amor.
Na montanha, tons de escuro acompanham a penosa descida das mulheres e dos homens. Amanhã vão voltar. E tornarão a subir e voltarão a descer. E os filhos, também. E os filhos dos seus filhos. Porque eles amam o Vulcão. Sim. Cultura é memória, é tradição, é magia, mas pode apenas ser Amor.
Iniciámos o regresso. A noite caíra e havia um longo caminho à espera.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 937 de 13 de Novembro de 2019.