Com efeito, quando analisamos a vivência neolítica, por exemplo, constatámos que as grandes conquistas deste período, como sejam a agricultura, a sedentarização e a nova dieta alimentar, foram acompanhadas por uma das heranças mais pesada deixada por esse período, e que consistiu no surgimento de várias doenças infeciosas, das quais as que provocam epidemias, como a varíola, a gripe, a tuberculose, o sarampo e a cólera.
Na origem dessas doenças estava exatamente o sedentarismo, a aglomeração e a promiscuidade com os animais, então domesticados ou em processo de domesticação. Nessas condições, alguns micro-organismos e parasitas que antes atacavam somente os animais, deram um pulo para a espécie humana.
Mas, na verdade, é a partir da antiguidade que os historiadores começam a registar com mais clarividência, as epidemias e as pandemias, com informações mais detalhadas, por a documentação assim o permitir.2
A título de exemplo, podemos referir à epidemia ocorrida durante a guerra do Peloponeso- 430 a.C. – 427 a.C.- conhecida por peste de Atenas, que vitimou cerca de dois terços da população daquela cidade grega, ou ainda, a praga de Justiniano, considerada a primeira pandemia historicamente documentada - iniciou por volta de 541 da Nossa Era, tendo vitimada milhões de pessoas.
Na idade média, destaque vão o século XI, altura em foi registada, na Europa, as primeiras epidemias de Lepra, também conhecida como doença de Hansen, e para o século XIV, marcado pela Peste Negra, verdadeiramente devastadora - iniciada por volta de 1347 na Ásia Central, assolou a Europa, dizimando cerca de um terço a metade da população mundial.
Nas idades moderna e contemporânea, além de outras epidemias, temos a registar a grande peste de Londres (1665), as grandes pandemias de cólera, iniciadas a partir de 1817, a epidemia de sarampo nas ilhas Fiji (1875), a gripe espanhola (1918), a gripe asiática (1957), a gripe de Hong Kong (1968) e a VIH/Sida (1980).
Em relação a Cabo Verde, numa sociedade novíssima como a cabo-verdiana, nascida na idade moderna, visceralmente ligada ao mar, recebendo navios das mais diversas paragens que cruzavam o atlântico, seria de esperar que as patologias, também elas em expansão, chegassem nestas ilhas ainda muito cedo, e disseminassem entre elas.
Nos três primeiros séculos da história deste arquipélago, fica mais difícil fazer um mapeamento de eventuais epidemias nas ilhas de povoamento mais antigo, por insuficiência documental, realçando, porém, a questão da febre palustre, “também chamada de febre do paíz,”3 assunto bastamente estudado, nomeadamente pela equipa que elaborou a História Geral de Cabo Verde.4
O mesmo não acontece em relação ao século XIX, cuja documentação existente no Arquivo Histórico Nacional é relativamente vasta, e a partir da qual é possível desenhar linhas de pesquisas diversas, designadamente sobre esta matéria.
Quem estuda o século XIX cabo-verdiano, sabe que esta que foi uma centúria bastante densa em acontecimentos históricos, de carácter social, cultural, político, mas também sanitário, marcada por epidemias, em todas as ilhas povoadas do arquipélago.
I. A epidemia de cólera-mórbus na Ilha do Fogo
Em 1855, na ilha do Fogo, grassou uma epidemia de cólera-mórbus, de forma tão rápida e violenta que levou as principais autoridades e grande parte dos habitantes de São Filipe, onde ela começou, a abandonar a Vila, refugiando-se na então Vila da Praia, na ilha de Santiago. Dos “13.101 indivíduos que compunham a população da ilha do Fogo, em junho de 1855, 3.508 foram atingidos pela doença, sendo destes, morreram 643,”5 em pouco menos de um mês.
Estamos nos meados da década de 50 do século XIX, altura em que se verificou o mais longo período de escassez de chuvas, quase ininterrupto de 1850 a 1866 e com graves consequências nos planos ecológico, agrícola e demográfico.
À frente da Província de Cabo Verde, estava, nessa altura, o Major de Estado-maior, António Maria Barreiros Arrobas,6 que governou a Província de 1854 a 1858. A epidemia ocorreu um ano após a sua tomada de posse, e teve um papel importante na sua gestão, chegando, por isso, a merecer, pouco tempo depois, elogios dos habitantes da ilha do Fogo, pelo relevante serviço então prestado.
Estes elogios foram registados numa das atas das sessões camarárias da Vila da Praia (1856-1860), uma das fontes a partir de onde encontramos informações acerca deste e outros flagelos que assolaram as ilhas durante o seu consulado.
“(…).Tudo se fez e os resultados ião coroando de feliz êxito, quando uma epidemia aterroradora de Chólera-morbus assalta a ilha do Fogo e junca de cadáveres aquella infeliz visinha(…).”7
Porém, o documento mais completo até agora encontrado, que nos permite melhor inteirar dessa epidemia, é um relatório do então Physico-Mór da Província de Cabo Verde, que, na qualidade de Presidente da Junta de Saúde da Província, em agosto de 1855, dirige o Governador-Geral uma exposição acerca daquela epidemia.8 Nele encontramos informações pormenorizadas, quer relativamente a sua possível origem, quer em relação às medidas então tomadas pelas autoridades competentes, no sentido de a debelar.
(…) aparece na Vila de S. Felippe d’aquella Ilha, no dia 4 d’aquelle mez, um caso mórbido de vómitos – diarrhea serosa, semelhando agoa d’arroz – caimbra – suppressaon d’ourina – decomposição de feições – e morte rápida em poucas horas(…).9
Esta informação não deixa dúvidas em como a epidemia surgiu repentinamente na Vila de São Filipe, de onde foi-se alastrando de forma bastante rápida, ceifando vidas humanas, aterrorizando os habitantes da ilha.
No próximo artigo, incidiremos sobre a origem e os contornos desta epidemia.
____________________________________________________________
Notas
1 - Historiador no Arquivo Histórico Nacional. Doutor em Ciências Sociais.
2 - Entre outras referências, sugiro as seguintes: Sournia, Jean-Charles (s/d). História da medicina; Lisboa: Instituto Piaget; Delumeau, Jean (2019). História do medo no ocidente – 1300-1800. Uma cidade sitiada; São Paulo: Companhia de Bolso; Le Goff, Jacques (1985). As doenças têm história; Lisboa: Terramar; Revel, Jacques & Peter, Jean-Pierre (1988). O corpo- o homem doente e sua história; In Le Goff, Jacques, Nora, Pierre (orgs.). História: novos objetos; Rio de Janeiro: Francisco Alves.
3 - Almeida, José Maria (2015). Aloís de Rolla Dzíezaskí; um polaco nos destinos de Cabo Verde; Praia: IAHN, p. 80
4 - Cfr. Cabral, Iva (1995). Ribeira Grande: Vida Urbana, Gente, Mercancia, Estagnação, In Santos, Maria Emília Madeira (org). História Geral de Cabo Verde, Vol. II, Lisboa/Praia: IICT/INC-CV; pp.225-273.
5 - Vieira, Henrique Lubrano de Santa-Rita (1999). História da Medicina em Cabo Verde Praia: Ministério da Saúde de Cabo Verde, p. 291.
6 - Político e oficial do exército, nasceu em 1825. Assentou praça em 1840 e subiu os postos até coronel em 1844. Exerceu vários cargos, filiou-se no Partido regenerador, foi deputado em sucessivas legislaturas, vogal da Junta consultiva do Ultramar e da direção em vários Bancos e Companhias. Além de Governador-geral da Província de Cabo Verde, foi Governador-Civil de Lisboa (1881). Morreu em 1888.
7 - ANCV-Actas das Sessões. Câmara Municipal da Praia (1856-1860). Sessão extraordinária de 16 de setembro de 1857. Fls 66.
8 - Boletim Oficial do Governo-Geral de Cabo Verde, nº 175, 1855, de 18 de Agosto, Portaria nº 133, p. 729.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 973 de 22 de Julho de 2020.