A Independência de Cabo Verde, a abertura ao pluripartidarismo e os desafios da Democracia (ou a longa caminhada para a Liberdade)

PorIlídio Cruz,22 jan 2021 9:55

O processo que conduziu à Independência de Cabo-Verde, a 5 de julho de 1975, foi antecedido de uma longa noite colonial que durou por 515 anos, com muito sofrimento pelo meio, as populações a serem dizimadas pelas secas e enterradas em valas, a miséria, a emigração forçada para as roças de S. Tomé, o analfabetismo generalizado, enfim, o desprezo e o abandono total do povo das ilhas pelas autoridades coloniais .

Tomando consciência dessa situação, AMÍLCAR CABRAL, o Pai da Nacionalidade cabo-verdiana, cria com Aristides Pereira e outros patriotas, em 1954, o PAIGC para, de forma sistematizada e organizada, conduzir a luta de libertação dos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Ao compreender que não seria possível alcançar a Independência por via do diálogo com o Governo colonial português, Cabral toma a decisão de iniciar no chão da Guiné-Bissau, em 1963, a luta armada de libertação dos dois povos, uma construção a todos os títulos genial, já que Cabral sabia que o território cabo-verdiano não reunia condições para aqui se fazer a luta armada de libertação. É claro que a luta para a libertação de Cabo Verde teve várias frentes: a frente armada, o combate na clandestinidade, mobilizando jovens para a resistência e para a luta, mas também através da Cultura, designadamente da Literatura ficcional, da Poesia e da Música.

Cabral foi assassinado a 20 de janeiro de 1973. Ao contrário do se pensava, houve um recrudescimento da luta. O PAICG declarou unilateralmente a Independência da Guiné-Bissau em setembro de 1973. Com o advento do 25 de Abril em Portugal e a queda do regime fascista de Salazar, para a qual, aliás, muito contribuíram as lutas armadas de libertação nacional, em particular na Guine Bissau, onde as tropas coloniais vinham sofrendo pesadas derrotas, Cabo Verde ascendeu à Independência Nacional a 5 de julho de 1975.

Pode-se assim dizer que a Independência foi “arrancada a ferro e fogo” ao cabo de um longo processo sofrido e sonhado por várias gerações de cabo-verdianas e cabo-verdianos.

Nessa altura o mundo vivia sob o signo da Guerra Fria entre o Bloco Soviético e a Nato.

O PAIGC, detendo legitimidade histórica e abraçado por larga maioria do povo, foi reconhecido pela ONU e pelo Governo Português como o único interlocutor válido para a Independência e, desta forma, foi eleita uma Assembleia Constituinte, massivamente votada (nas eleições de 30 de junho de 1975), que proclamou a Independência de Cabo Verde, contrariamente ao que aconteceu em outras latitudes, em que foram os Comitês Centrais dos Partidos a fazê-lo.

O PAICV governou nesse contexto por 15 anos, como partido único.

No ponto de partida, em 1975, o país era considerado inviável, mas o povo de Cabo Verde e os dirigentes de então mostraram que aqueles que assim pensavam não tinham razão[1]. Ergueu-se um Estado credível na cena internacional, erradicou-se para nunca mais as fomes generalizadas no pais, massificou-se o ensino primário e secundário, milhares de bolsas foram atribuídas para estudos superiores em países de todos os blocos, soviético e ocidental, no âmbito da acertada política externa de não alinhamento seguida pelo Governo, o acesso à saúde melhorou muito, os cuidados materno-infantis, com a diminuição do número de mortes por nascimento, a diminuição drástica do analfabetismo, não só com acesso dos jovens à escola, como também com as aulas de alfabetização para adultos iletrados, a redução dos índices da pobreza, enfim, um percurso notável deste povo reconhecido, aliás, a nível internacional. Em termos económicos, edificou-se um sólido parque empresarial do Estado que convivia com o setor cooperativo e a iniciativa privada[2].

Depois, em 1990, o mundo mudou. Surgem as vagas das democracias liberais, a sociedade cabo-verdiana, já com vários direitos sociais assegurados, a saúde, a educação, o direito, a garantia e a liberdade fundamental ao pão, decide romper com o sistema de partido único e avançar com a instauração de um sistema pluripartidário. E aqui é que chegamos à transição política que desemboca nas eleições de 13 de janeiro de 1991.

A importância das datas e a quem atribuir os méritos da instauração da Democracia em Cabo Verde

Nos onze meses que mediaram a Transição Democrática em Cabo Verde, entre fevereiro de 1990 e janeiro de 1991, há algumas datas que são factuais, são marcantes e são históricas, independentemente da importância, sempre relativa e subjetiva, que este ou aquele Partido lhes atribui na sua luta pela imposição de sentido no campo político. Há o 19 de fevereiro de 1990 em que o Conselho Nacional do PAICV anunciou a abertura política, decisão ratificada pelo Congresso Extraordinário, de julho; há a Sessão Parlamentar da Assembleia Nacional Popular de setembro que aprovou a revisão constitucional e o pacote legislativo para uma transição regulada e pacifica, todos promulgados pelo Presidente Aristides Pereira, de quem na altura eu era Conselheiro Jurídico; e há o 13 de janeiro em que o povo ditou a vitória do MPD e a passagem do PAICV à oposição, um processo de alternância normal em democracia, em que o partido que perde as eleições dá lugar ao partido que ganha, alternando-se os papéis, não podendo haver Democracia sem uns e outros . A partir daí entramos na II República (expressão cunhada por Aristides Pereira) e o país iniciou uma nova largada no seu longo processo de desenvolvimento. Portanto, as datas são o que são e, no meu modo de ver, estão ligadas umas as outras numa relação de causa e efeito, condicionante/condicionada.

Os méritos da instauração da Democracia em Cabo Verde pertencem ao Povo de Cabo Verde e ao seu grande percurso histórico, que vem de longe. Não é atributo de nenhum Partido e muito menos de qualquer pessoa em particular. A ideia de haver “Donos da Democracia”, de que este ou aquele Partido legou a democracia ao pais e todos os outros Partidos ou simples cidadãos são apenas beneficiários deste legado, é uma ideia, salvo o devido respeito, infantil. Trinta anos volvidos, devíamos mudar de discurso. Não faz sentido continuar a bater na mesma tecla tão só em nome da competição político-partidária, a qual tem, deve ter sempre, os seus limites éticos.

Dizer isso não significa ignorar que o processo de Transição Democrática, como todos os processos históricos, tem instituições e rostos mais próximos e outros mais longínquos. Como sujeitos mais próximos, temos os Órgãos de Soberania que na altura discutiram, aprovaram e promulgaram os diplomas legais que conformaram juridicamente e regularam todo o processo, a Assembleia Nacional Popular, o Presidente da República, e todos os respetivos membros integrantes, temos os Partidos Políticos, o PAICV, o MPD, a UCID e a UPICV, estes últimos, que apesar de não terem participado nas eleições, de forma mais próxima ou remota deram a sua contribuição, e temos os rostos das pessoas de carne e osso que lá estiveram, de maior visibilidade pública, é certo, mas também de tantos e tantas, homens e mulheres, jovens e adultos, que se empenharam de corpo e alma e de boa-fé no processo.

Quando penso em figuras mais distantes, não consigo deixar de pensar nos Combatentes da Liberdade da Pátria, em particular os que faleceram em combate, e todos os que estiveram na luta armada e na clandestinidade, nos calabouços da PIDE, nos Poetas, Escritores, nos Músicos, e no maior deles todos, Amílcar Cabral, que deu a vida para que hoje pudéssemos ter o país que temos. Se se quiser atribuir a paternidade da Democracia a alguma figura impar da História deste país, só poderá sê-lo, por todos, a Amílcar Cabral.

Para mim as palavras-chave a reter é que foi um processo “autodeterminado”, “autorregulado”, “consensual”, “pacífico”, conduzido de “boa-fé” por todas as partes envolvidas e com “sentido do interesse nacional”.

Os desafios e os riscos da Democracia

Os países mais democráticos do mundo não nasceram assim. Tiveram de passar por diferentes processos históricos de superação da monarquia absoluta, da dominação colonial, da escravatura, do apartheid, de guerras civis, de lutas sindicais e movimentos civis. É o caso da Inglaterra, da França e das democracias europeias em geral, do Estados Unidos da América, a maior democracia do mundo. Não se ouve ninguém a atirar pedras contra a Rainha da Inglaterra ou aos pais da Independência dos Estados Unidos, para se assumirem como os donos da Democracia; antes pelo contrário, essas figuras são garantes da unidade nacional e são o cimento que garante a união entre o passado, o presente e o futuro.

As Democracia e o Estado de Direito Democrático não são dados adquiridos de uma vez por todas. São processos para cuja materialização dos valores na sociedade é preciso lutar permanentemente. Uma coisa é o Estado de Direito formalmente considerado, tal como está na Constituição da República, outra coisa é materialização, na vida das pessoas, das promessas que estão na Constituição. O direito à habitação condigna, o direito à saúde, o direito à educação, o direito ao trabalho, o direito à segurança, o direito de acesso a cultura, à internet, etc. A Democracia não são apenas os direitos civis e políticos, a liberdade de expressão e pensamento, o direito de eleger e ser eleito; é também o direito ao pão, não apenas o direito ao fonema, como diria Corsino Fortes, é o direito e a liberdade fundamental de escolha e da palavra, mas também o direito e a garantia fundamental aos bens básicos, económicos, sociais e culturais.

Enquanto os jovens não tiverem acesso ao emprego digno, a pobreza se mantiver em níveis elevados, tivermos milhares de pessoas a viver em barracas, sem casa de banho, etc., a nossa Democracia não poderá estar consolidada. Trata-se de um processo eternamente constituendo e reconstituendo. Não sei se algum dia teremos a Democracia perfeitamente realizada, desse ponto de vista.

Para qualificar mais a nossa Democracia devemos apostar mais na qualificação da classe politica e designadamente do Parlamento.

Temos de aceitar e estar em paz com a nossa História, com as suas falhas e omissões, que devemos assumir coletivamente, mas orgulhosos do extraordinário percurso feito, para assim podermos focar nas questões de desenvolvimento. Os atores políticos ainda perdem muito tempo no debate político, a atacarem-se uns aos outros, quando esse tempo seria precioso para discutir os reais problemas do país e encontrar os consensos necessários para os ultrapassar.

As próximas eleições legislativas serão uma oportunidade para qualificarmos melhor o Parlamento nesse aspeto.

Há que encontrar forma de dar mais espaço à sociedade civil para participar na gestão da coisa pública. As eleições autárquicas deixaram, com a participação de vários grupos independentes, um sinal bem claro de que os partidos e o sistema político no seu todo devem encontrar formas de se abrir aos mesmos.

Temos de encontrar formas de aprofundar a desconcentração e a descentralização de poderes da Administração Central para as ilhas por forma a aproximar cada vez mais o poder das pessoas.

Em particular, a classe politica deve falar a verdade ao povo e evitar derivas para o populismo e o extremismo, evitar narrativas que atiçam e aprofundam as divisões internas, atiçam o ódio e podem pôr em causa o próprio Estado de Direito e as suas instituições mais sagradas, como agora se viu nos Estados Unidos com convulsões internas impensáveis baseadas em conspirações continuamente alimentadas pelos seu próprio Presidente, que deveria ser o garante do Estado de Direito Democrático.


[1] Só a fome de 1946, uma das piores, matou mais de 30.000 pessoas, um numero quiçá superior à população de S. Vicente e de Santo Antão na altura. No Desastre da Assistência, na Praia, em 1959, morreram mais de 300 pessoas, entre homens, mulheres e crianças indigentes. As marcas da emigração para S. Tomé ainda hoje persistem no corpo, no rosto e na alma dos nossos conterrâneos que sobreviveram a essa época. Creio ter sido Hélio Varela que reproduziu a expressão de uma Senhora que dizia que “S. Tomé tinha-lhe comido a alma e teria que lhe comer os ossos”. Até 1960, S. Vicente era a única ilha com um Liceu; o da Praia é posterior. Só Praia e S. Vicente tinha Hospital. A Justiça, em várias partes do país, era administrada pelo Administrador do Concelho, sem as mínimas garantias de defesa. A esperança de vida era de menos de 50 anos.

[2] Numa conferência que fez aos jovens em S. Vicente por ocasião da comemoração dos 35 anos da Independência, Luís Fonseca lembrava-os de um texto de um jornalista francês publicado na altura que considerava Cabo Verde um país inviável e propunha desabitar as ilhas e espalhar os seus 400 mil habitantes pelos países que os quisessem receber como única forma de sobreviverem.

[3] Refira-se o papel da Empa para garantir o acesso aos bens alimentares essenciais, da ARCA VERDE, dos TACV, da ENACOL, da ENAPOR, da CABNAVE, da ELECTRA, entre outros, bem como de toda a rede de distribuição a retalho garantido por firmas comercias privadas e por cooperativas de consumo, bem como grandes empresas privadas que já existiam e continuaram a existir, como a Shell. 

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Autoria:Ilídio Cruz,22 jan 2021 9:55

Editado porAndre Amaral  em  21 out 2021 23:21

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