Cabo Verde na crise e o constrangimento do défice Orçamental

PorPaulo Monteiro Júnior,31 mai 2021 6:35

Ex – PCA da Caixa Económica de Cabo Verde Assessor Económico do Banco de Portugal (na reforma)
Ex – PCA da Caixa Económica de Cabo Verde Assessor Económico do Banco de Portugal (na reforma)

​I. Diagnóstico: crise global e crise cabo-Verdiana A política económica cabo-verdiana tem lugar em plena crise de pandemia da Covid-19 e, por conseguinte, a um momento de reflexão. É uma crise global muito violenta, caracterizada pela interação de choques de oferta e de procura, doméstica e externa, que se reforçam mutuamente. Esta reflexão é feita na perspetiva da sua congruência com o futuro: imediato e médio/longo prazo.

No domínio fulcral das finanças públicas, a crise pandémica da Covid-19 resulta em despesa acrescida do Estado (e esta última, mais pelas transferências do que pelos rendimentos provenientes da produção). As medidas de política adotadas pelo Governo – visando mitigar os danos económicos e sociais da pandemia, bem como a sustentação do consumo privado e dos investimentos públicos para o sector da saúde -, têm lugar em detrimento do equilíbrio orçamental. Com a manutenção da procura interna de bens e serviços - apesar da fraqueza das exportações - criou-se também um brutal desequilíbrio das nossas contas com o exterior. Não é, por conseguinte, surpresa que os efeitos da crise se manifestem através dos défices orçamental e externo significativos.

Necessidades líquidas de financiamento, em percentagem do PIB (2020)
dos poderes públicos vis-à-vis do estrangeiro
Cabo Verde 9.1 16.1

Os números acima indicados sublinham um aumento substancial das despesas públicas que fez aumentar brutalmente o défice orçamental, em percentagem do PIB (produto interno bruto). Estes indicadores realçam também que o défice da conta corrente da nossa balança de pagamentos está nos dois dígitos – e o seu corolário de forte endividamento vis-à-vis do estrangeiro -. No longo prazo, um rácio da dívida pública – interna e externa – em relação ao PIB (mais de uma vez e meia o valor do PIB) é insustentável. Os valores substanciais e persistentes destes défices e da dívida pública, in globo, revelam que a política económica enfrenta constrangimentos macroeconómicos cada vez mais severos e com margem de manobra reduzida.

II. Financiamento do défice orçamental do governo: as funções de reação do banco central

A resposta à crise, em Cabo Verde, seguiu dois eixos:

(i) medidas paliativas tais como ajudas às empresas e a uma fração das famílias;

(ii) desequilíbrio orçamental/monetário.

Nos dois casos, trata-se de medidas que respondem à urgência dos desequilíbrios massivos em rápido agravamento. Estes paliativos do Estado são necessários para absorver a curto prazo os choques. Todavia, o seu desenvolvimento é travado pela dimensão atingida pelo défice orçamental, componente maior do défice da balança corrente da nação.

Não houve nem reorientação sensível das políticas existentes (e.g., mais e melhor intervenção pública, incentivos económicos, infraestruturas, capital humano, reforço do balanço do banco central, planificação), nem definição de uma estratégia económica a longo prazo.

A economia cabo-verdiana está hoje confrontada com um problema maior resultante da dimensão do nosso défice orçamental. Com efeito, no regime cambial vigente de uma relação de paridade fixa unilateral entre o escudo cabo-verdiano e o euro, a política orçamental/monetária está ligada à política cambial. Como previsto no ACC, a Parte Cabo-verdiana compromete-se a adotar medidas de política económica compatíveis com os objetivos de garantir a estabilidade de preços e a salvaguarda da taxa de câmbio fixa entre as duas moedas. Nesta circunstância, a liberdade de ação do Banco de Cabo Verde (BCV) nas modalidades de financiamento do défice orçamental do governo fica singularmente reduzida.

A gravidade da situação económica, quer no plano do défice orçamental quer no que diz respeito ao défice externo, conduz-nos a examinar o difícil problema do seu financiamento a partir do constrangimento do orçamento do governo. Assim, temos:

G – T ≡ dB + dBCB (1)

Onde G - T é o défice orçamental do governo, dB é a variação da dívida do governo tomada pelo setor privado e dBCB é a variação do stock de crédito (líquido) sobre o governo na posse do banco central. Em geral, compara-se os bancos centrais segundo as modalidades de financiamento dos défices governamentais através das variações de B e de BCB. Os objetivos da política do banco central afetam o financiamento do défice orçamental do governo.

Assumimos, assim, que o banco central é confrontado com um défice orçamental do governo e que as modalidades de financiamento desse défice refletem os objetivos da política do banco central. Em primeiro lugar, a escolha do banco central no que concerne dBCB determina dB. Por seu turno, dBCB é igual a dH menos dR, onde dH é a variação da base monetária e dR é a variação dos ativos líquidos sobre o exterior (i.e. variação em % das reservas cambiais líquidas) do banco central. Note-se que as variações na base monetária são iguais às variações nos créditos líquidos sobre o governo mais as variações nos ativos sobre o exterior (líquidos) na posse do banco central.

Sobre essas bases, podemos extrair numericamente a decisão de financiamento do orçamento (i.e., dH, dB e dR) das funções de reação do banco central.De notar que, na estimação econométrica das funções de reação, deve-se ter em conta o regime cambial vigente (fixo ou flexível) e a imposição das restrições nos parâmetros nas “cross equation”, implicados pelo constrangimento do orçamento governamental.Adicionalmente, antes de se embarcar na análise econométrica, devemos examinar, historicamente, a importância do financiamento dos défices orçamentais pelo banco central. De realçar que a base monetária se ajusta também às variações dos ativos líquidos sobre o exterior na posse do banco central (BCV). Por último, deve-se ter em conta as duas hipóteses seguintes: (i) o défice orçamental é determinado pela política financeira do Estado (ii) o banco central determina como o défice é financiado. Ou seja, assumimos que os níveis de dH e dR, e assim dB, escolhidos para o financiamento do défice orçamental são uma decisão da política do banco central. Deve-se também aqui sublinhar que se impõe constrangimentos cross-equation implícitos nas relações do orçamento do governo.

De notar que as estimativas dos parâmetros das funções de reação não fornecem informação sobre as preferências atuais dos decisores políticos. As estimativas dos parâmetros combina informação das preferências dos decisores de política com os parâmetros da forma reduzida da macroeconomia. O processo passa por um raciocínio emprestado à programação matemática. Trata-se de uma otimização sob restrição. Ou seja, as funções de reação emergem da maximização das preferências dos decisores de política (i.e., função objetivo) sob a restrição das equações da forma reduzida que descrevem a economia. As estimativas dos parâmetros das nossas funções de reação dá-nos a resposta dos instrumentos de política às variações dos objetivos de política. A solução do programa dá-nos um preço dual (shadow price) associado à restrição, que mede o efeito de uma ligeira diminuição da restrição sobre a variável objetivo (ou seja, o aumento marginal do bem-estar nacional devido, por exemplo, a redução de uma unidade do défice orçamental. Na mesma lógica, considerando a identidade macroeconómica (M- X) = (I – S) + (G -T), que exprime a identidade entre o défice corrente e a soma dos défices privado e público, dá-nos uma interpretação alternativa respeitante à restrição sobre a balança corrente de pagamentos. A solução deste programa indica um preço dual (shadow price) associado ao constrangimento, que mede o efeito de um relaxamento da restrição sobre a variável objetivo (ou seja, o aumento marginal do bem-estar nacional resultante, por exemplo, de uma redução de uma unidade das importações (i.e., a taxa de crescimento desejada da dívida externa).

III. Conclusão

A reflexão revelou-nos o papel crucial do banco central na defesa do “peg” fixo unilateral do escudo cabo-verdiano ao Euro. A análise do relatório anual de 2020 do banco central (BCV) conduz-nos a interrogar sobre a tolerância dos decisores políticos face à situação atual do balanço do BCV. A tolerância é espantosa (tanto mais pronunciada quanto mais se prolongar a situação). A passividade face aos défices significativos dos poderes públicos e da balança de pagamentos correntes não lhe fica atrás.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1017 de 26 de Maio de 2021.

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Autoria:Paulo Monteiro Júnior,31 mai 2021 6:35

Editado porAndre Amaral  em  10 mar 2022 23:20

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