De 2016 a 2019, a atividade económica registou uma aceleração, crescendo em média, 5 por cento ao ano. Em termos de emprego, neste período o crescimento robusto do produto interno bruto (PIB) permitiu absorver a população ativa agrícola que tem sido fortemente afetada por três anos consecutivos de seca no País. Antes da crise, também a inflação foi contida e apresentou uma tendência de crescimento moderado e estável. Quer a taxa média anual, quer a taxa homóloga foi inferior a 1.0 por cento. Quanto aos défices “gémeos” a evolução neste período também comparou favoravelmente com os anteriores. O défice orçamental, em percentagem do PIB, esteve sempre abaixo dos 4 por cento e com tendência decrescente. O défice da conta corrente da balança de pagamentos esteve sempre em um dígito e, desde 2017, com reduções substanciais que o trouxeram para quase zero.
Estes resultados francamente positivos da nossa política económica recente significam que chegamos à crise pandémica razoavelmente bem preparados. O “segundo ato do drama” seria ainda pior na ausência da boa governação do “primeiro ato”.
Não obstante já terem existido crises pandémicas no passado, a globalização e a integração das economias que vivemos nas últimas décadas implicam que as circunstâncias atuais sejam muito diferentes. A crise COVID-19 é caraterizada pela interação de choques de oferta e de procura, doméstica e externa, que se reforçam mutuamente. E, tanto o nosso país, como as nossas comunidades na diáspora e os nossos principais parceiros comerciais, são afetados em simultâneo, pois num mesmo período de poucos meses a doença alastrou-se ao globo inteiro.
Assim, a magnitude da queda do PIB no curto prazo adivinha-se brutal. E, necessariamente, o crescimento negativo corresponderá a um forte aumento da taxa de desemprego. No cenário em que a população ativa permanecerá relativamente inalterada, é expectável que o desemprego atinja níveis superiores a 1/5 da população ativa.
Acresce que dada a fragilidade da estrutura produtiva e os desequilíbrios financeiros existentes na economia cabo-verdiana, a crise da COVID-19 resulta num aumento dos custos de financiamento das famílias, empresas e Estado.
Ao mesmo tempo, a crise pandémica resulta em despesa acrescida para o Estado. As medidas de política adotadas pelo Governo – através de transferências do Estado – que visam mitigar os danos económicos e sociais, bem como as medidas de reforço da proteção social, do consumo e do investimento públicos resultam no forte crescimento das despesas públicas. Relativamente aos investimentos públicos, a aquisição de equipamentos e recursos humanos para o setor da saúde para as ilhas turísticas (Sal, Boa Vista, entre outras) será absolutamente necessária para adequar a segurança sanitária no País. Adicionalmente, a crise pandémica não se refletiu apenas num aumento das despesas públicas para o setor da saúde, mas também num pacote de medidas de estímulo orçamental que visa atenuar parcialmente o impacto económico e social negativo sobre as famílias e as empresas. Importa ainda referir o acesso às linhas de crédito acompanhadas de esquemas de garantia da parte do Estado, a possibilidade de benefício de moratórias, a prorrogação do prazo de cumprimento de obrigações fiscais, bem como das responsabilidades com empréstimos existentes.
Todo este aumento das despesas públicas fará aumentar brutalmente o défice orçamental em percentagem do PIB e colocará a dívida pública numa trajetória fortemente ascendente, sendo o próprio Governo a admitir que chegue a 150% do PIB já em 2021.
A longo prazo, um rácio da dívida pública – interna e externa - em relação ao PIB desta dimensão é insustentável, sejam quais forem os montantes das outras variáveis-chave no cálculo da sustentabilidade (e.g., taxa de juro, taxa de crescimento do PIB). Ademais, a médio prazo, a queda brusca da procura externa, com destaque para os serviços associados ao turismo – que têm um peso relativamente elevado nas exportações cabo-verdianas – é igualmente preocupante. Com a manutenção da procura interna de bens e serviços, os desequilíbrios crescentes e cumulativos das contas com o exterior conduzirão inevitavelmente a um grave problema da balança de pagamentos.
No regime cambial vigente de “peg” fixo unilateral do escudo cabo-verdiano ao euro, a política monetária está ligada à política cambial. A liberdade de ação do Banco Central (BCV) fica singularmente reduzida. O forte défice externo destrói a base monetária ao ritmo em que ele (BCV) é obrigado a aumentar a base para satisfazer as necessidades do Tesouro. Se o défice externo se reduzir, o Tesouro poderá ser melhor alimentado e poderá diminuir o seu recurso ao Banco Central. Por sua vez, a taxa de juro depende também essencialmente das condições externas. Nesta perspetiva, o que permitiria reduzir o seu valor seria a confiança que poderia inspirar o anúncio pelo Governo de uma estratégia coerente de medidas que os agentes económicos julguem adequadas para a recuperação da economia cabo-verdiana no pós-COVID 19.
Falta escrever o terceiro ato: o pós-COVID-19. Este ato é condicionado pelo grau de incerteza muito elevado respeitante à descoberta de uma vacina e de uma solução médica eficaz para a COVID-19.
De salientar que os défices “gémeos” atingem valores históricos. Com a acentuada redução da procura por parte dos agentes externos, o défice da conta corrente da balança de pagamentos aumentará brutalmente no ano em curso e nos próximos. Os défices “gémeos” crescentes, resultantes quer das finanças públicas, quer das nossas contas externas, mostram que esta via é sem saída e que uma outra estrutura de desenvolvimento baseada nos serviços – e.g., turismo seguro – deverão tornar-se no motor do crescimento para a recuperação da economia cabo-verdiana.
Os indicadores definidos no “carré magique” da política económica dão, neste contexto, uma visão simplificada mas significativa. Três dos quatro indicadores revelam uma situação difícil e complexa para os défices “gémeos” em percentagem do PIB e o desemprego. Assim, as medidas tomadas para remediar a um tipo de desequilíbrio correm riscos significativos de agravar os outros desequilíbrios da economia cabo-verdiana. Daí que qualquer orientação de política económica implica, por consequência, uma escolha de objetivos prioritários e uma apreciação sobre as restrições mais fortes.
No contexto atual é absolutamente necessário definir uma estratégia de saída. Todavia, é de realçar que os instrumentos disponíveis de política são limitados. A escolha entre os que foram atrás referidos, ou de outros de mesma natureza, depende de uma análise mais detalhada no quadro de um modelo de equilíbrio geral estocástico e dinâmico (DSGE model). Mas seja qual forem as escolhas, é tempo de agir pois a estratégia e o instrumento de análise melhor concebidos levam tempo para fazer sentir os seus efeitos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 973 de 22 de Julho de 2020.