A proposta de lei do OE 2022 foi apresentada ao público em Outubro e tem sido alvo de debate público acalorado tanto pelo suposto impacto que teria tido nos resultados das eleições presidenciais como pelas reacções negativas recebidas de vários sectores da população e operadores económicos. A intenção do Governo de aumentar impostos, em particular de elevar a taxa do IVA de certos produtos de 15 para 17%, não foi digerida muito bem pela generalidade da população que desde Setembro/Outubro já se vê a braços com aumentos gerais dos preços, em particular dos preços de combustíveis, de energia e de transporte. A questão à volta dos impostos ganhou traços mais complicados quando alguns deputados da maioria deixaram transparecer, em declarações à imprensa e nas redes sociais, posições não convergentes com as propostas do governo de aumento do IVA.
No espírito de alguns estar-se-ia a desenhar algo similar ao que aconteceu em Portugal algumas semanas atrás com a não aprovação do Orçamento do Estado e subsequente dissolução do Parlamento pelo Presidente da República. A parecer confirmar isso, veio na semana passada o acto insólito do Primeiro ministro, acompanhado do ministro de Finanças e da ministra de Assuntos Parlamentares, ir ao palácio presidencial apresentar o orçamento do Estado ao Presidente da República. Logo de seguida, o Presidente da República chamou para consultas os partidos com representação no parlamento. Das declarações dos dirigentes partidários à saída, ficou-se a saber que havia abertura para diálogo em sede de discussão orçamental e em matéria de elevação do nível da dívida interna que, por duas vezes, tinha sido presente ao parlamento e não passou. Do protagonismo inusitado do Presidente da República ficou patente a fragilidade negocial do Governo junto da oposição e dúvidas aumentaram quanto à própria coesão da maioria parlamentar.
Em sistemas de governo de pendor parlamentar, esse tipo de intervenção do Presidente da República só acontece em situações extremas como a que se verificou recentemente em Portugal em que um governo minoritário se viu sem o apoio dos correligionários da chamada geringonça para aprovar o orçamento do Estado. Aí, sim, depois de avisar para as consequências de não aprovação do instrumento fundamental da governação, o PR agiu em conformidade. No caso de Cabo Verde, não parece que o espaço para as conversações com as forças da oposição tinha sido realmente esgotado. Só há pouco tempo é que se trouxe verdadeiramente para atenção das pessoas e dos protagonistas políticos a situação grave da dívida pública, os efeitos nos preços derivado do aumento distorcido da procura global de produtos, acompanhado de estrangulamentos logísticos graves nos transportes e, ainda, o enorme peso que irá representar o serviço da dívida a partir de 2022 com um aumento de mais 9 milhões de contos. Era só uma questão de tempo para, em sede parlamentar, se chegar a entendimentos e a compromissos para se ultrapassar a actual situação.
Por outro lado, não se compreende que, inadvertidamente ou não, se queira passar a ideia de uma maioria fragilizada. Como se pôde vislumbrar, há seis meses atrás, na aprovação da moção de confiança que se seguiu à apresentação do Programa do Governo, a maioria parlamentar é aparentemente sólida e não se vê razões para que em outros momentos cruciais para a garantia da continuidade do governo, como aprovação de Orçamento de Estado e votação de moções de censura ou de confiança, não vote em conformidade, mesmo que noutros momentos um ou mais deputados expressem desacordos pontuais. A acção do governo, enviesando desnecessariamente o processo de discussão e a aprovação do orçamento – que iniciado no Governo, vai ao Parlamento e só depois chega ao Presidente da República para promulgação –, diminui o papel do Parlamento e abre o caminho para uma reconfiguração das relações entre orgãos de soberania que desnecessariamente pode beliscar a estabilidade política que todos dizem prezar.
Grande parte do debate durante a campanha eleitoral para as presidenciais incidiu sobre a questão da relação do Presidente da República com o Governo. Todos os candidatos, com excepção do candidato abertamente presidencialista, professavam colaborar com o governo e não ser um factor de instabilidade política no país. A ênfase nesta questão às vezes até parecia excessiva porque parecia confundir lealdade institucional que deve existir entre órgãos de soberania com algum tipo de colaboração em que a função do PR de árbitro e moderador do sistema saía de alguma forma diminuída. Curiosamente, o que se vem notando nas últimas semanas é precisamente o contrário. O Governo dá sinais de fragilidade, de indecisão e até subserviência enquanto o Presidente da República não perde tempo em deixar o país saber o que pensa dos problemas e desafios que está a enfrentar neste momento de crise. O problema é que para além da imagem projectada por uns e outros, o sistema determina quem, de facto, tem os instrumentos para governar e é responsável pelos resultados obtidos.
O sistema de governo é mais eficaz, com benefícios para todos, em termos de liberdade e democracia, de capacidade de resolução dos problemas e ultrapassar vulnerabilidades e de criação de condições para prosperidade futura quando os seus titulares cumprem precisamente o que lhes compete. Naturalmente que há sempre jogo político e tensões que se desenvolvem no processo. Se tudo for percebido como feito em nome do interesse comum, credibilizam-se as instituições e valorizam-se ainda mais o pluralismo e a separação de poderes pelas vantagens a todos os níveis que trazem para o país, em particular a estabilidade política que tem caracterizado a democracia cabo-verdiana desde os seus primórdios há trinta anos atrás.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1043 de 24 de Novembro de 2021.