Os acontecimentos da semana passada, postos em movimento pela publicitação da fuga à justiça de um arguido em prisão domiciliária e previamente condenado por homicídio, deixaram todos preocupados e perplexos. O espectáculo de se ver o deputado/advogado a confessar cenários de uma fuga para fora do país que acabou por se concretizar sábado passado e depois, na sequência não acontecer nada de relevante, deixou muita gente inquieta. De facto, não é nada tranquilizador ver a autoridade do estado a vacilar.
Não se soube se o ministério público tinha aberto inquérito ao processo de fuga e se a polícia já tinha informação de como a passagem pela fronteira se verificou sem incidentes maiores. Também ficou-se por saber do pedido de levantamento da imunidade parlamentar do deputado para dar continuidade ao julgamento dos casos de difamação e calúnia postos por vários juízes entre os quais juízes conselheiros do supremo tribunal de justiça. Ainda por decidir pela comissão permanente, aparentemente ficou o pedido de detenção do deputado pelo PGR. Habituadas às peripécias da relação do referido advogado com a justiça, em que entre impropérios dirigidos aos juízes e supostas críticas dirigidas ao sistema de justiça, juntam-se adiamentos sucessivos de julgamento do caso interposto pelos juízes, as pessoas foram apanhadas de surpresa com esse novo desenvolvimento. Já não é só a justiça que é posta em causa, mas é próprio sistema político que também fica na berlinda.
De facto, o progresso meteórico feito pelo próprio dentro do sistema a partir de uma entrada inesperada como independente na lista de um partido para o parlamento em posição elegível seguida de nomeação para a comissão permanente da Assembleia Nacional e de ganho de visibilidade no processo de aprovação da moção de confiança ao governo criou outras possibilidades de intervenção que já foram utilizados nos costumeiros ataques aos magistrados. A condição de titular de órgão de soberania também abre a possibilidade de recorrer a outros expedientes para adiar o julgamento perpetuando a não resolução da disputa com os magistrados e confirmando a situação de “não justiça”. Em repetindo-se indefinidamente o ciclo em que há denúncias, mas não há responsabilização, já não é só a justiça a desgastar-se, são todas as instituições democráticas a dar uma aparência de indecisão e desorientamento.
Uma sensação de impotência geral vai-se impondo e aprofundando à medida que também em outros sectores prosseguem ataques e não há respostas convincentes e tempestivas das autoridades. A incapacidade em reverter a situação acaba por provocar uma erosão de confiança geral que não deixa de ter impacto noutros sectores da governação e da vida económica e social. Com o país a viver uma pandemia e as suas consequências na vida das pessoas, no seu rendimento e na sua perspectiva de futuro, era de esperar uma atitude mais firme na resolução dos problemas e maior disponibilidade para solidariamente se enfrentar os enormes desafios que se colocam ao país. Aliás, a decisão do eleitorado em garantir mais uma vez uma maioria absoluta na governação do país, apesar dos apelos em sentido contrário vindos de vários quadrantes, parece confirmar esse sentimento da população. Nesse sentido, compreende-se que para muitos é frustrante ver como por falta de liderança ou tendências autocráticas de líderes de maiorias eleitas tanto a nível local como central o país dá sinais de fragilidade abrindo portas para soluções complicadas e perdendo no processo tempo, energia e recursos vitais.
Perante tal fragilidade, os alertas vindos dos diferentes actores políticos quanto à necessidade de se reforçar os alicerces da democracia, têm razão de ser. Infelizmente em vários aspectos pecam pela ambiguidade e falta de coerência como se pôde constatar nas cerimónias do dia da independência. De facto, dificilmente se pode ter uma nação unida para enfrentar os grandes desafios da sua existência, quando se continua a alimentar um conflito no seu núcleo central de valores.
Há quem acintosamente insista em apresentar o dia 5 de Julho como a “data maior” para destacar que liberdade na sua essência significa libertação do domínio estrangeiro e que na sua defesa é justificável opressão e violação dos direitos humanos, como aconteceu nos primeiros 15 anos de independência. É uma ideia de liberdade em conflito directo com os princípios e valores da República que, como estabelece o artigo primeiro da Constituição, tem como base “o respeito pela dignidade humana e o reconhecimento da inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos humanos”. Imagine-se que manter as duas ideias de liberdade em confronto não deixa de ser um obstáculo sério à valorização plena dos direitos fundamentais, legitimando resistências ao Estado de direito democrático que, sempre que condições se proporcionam, manifestam-se de uma forma outra contra o sistema de garantias consagrado na Lei e contra a independência dos tribunais.
Diz-se que para se ter democracia há que primeiro ser independente, quando a verdade constatada por todo o povo cabo-verdiano é outra. Depois do 25 de Abril de 1974 houve liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade de criação de partidos, liberdade de reunião e de manifestação. Faltou o direito universal de autodeterminação dos povos que não foi exercido porque as circunstância histórico-políticas ditaram que o caminho fosse “Não ao referendo e Independência Já”. O país pagou essa omissão com a ditadura de 15 anos de um partido único que só veio a ser efectivamente desmantelada após o 13 de Janeiro de 1991.
A partir daí é que o povo se tornou realmente soberano, escolhendo na liberdade e no pluralismo os seus governantes e criando um Estado que protege os direitos dos indivíduos e não está acima da Lei. Insistir numa outra concepção do Estado, com outras formas de legitimidade do poder e com a menorização dos direitos, liberdades e garantias, pela via da apologia mais ou menos encoberta de uma outra constelação de valores, na prática, mantém viva as forças que vão sempre fragilizar a democracia, não só pela via de resistência às suas normas e procedimentos, como pela a de não contribuição para a sua realização plena através de participação no jogo democrático. Fazer discurso bonito no sentido oposto não altera em nada a realidade divisiva que se mantém por outras via. Só reforça a incoerência de quem o produz e aumenta o cinismo de quem o ouve. Perde a democracia, perdem as pessoas apanhadas entre dois sistemas de valores antagónicos e perde o país que não pode contar com um esforço colectivo unificado para enfrentar os desafios complexos do seu desenvolvimento.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1023 de 7 de Julho de 2021.