O Muro foi derrubado!

PorManuel Mendes Garcia,24 jan 2022 8:01

Jurista
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O Muro foi derrubado pela força da Lei. Afinal, é a Lei que faz a Lei. O n.º 1 do artigo 28.º (Idade máxima de ingresso e permanência na função pública) da Lei n. 42/VII/2009 de 27 de julho, alterada pela Lei n.º 117/VIII/2016, de 24 de março, que estabelece as bases em que assenta o regime da Função Pública, foi declarado INSCONSTITUCIONAL pelo Acórdão n.º 60/2021 de 6 dezembro, publicado no Boletim Oficial nº 5 I Série, de 17 de janeiro de 2022.

O teor do n.º 1 do artigo 28.º disciplinava o seguinte: “Os indivíduos que tenham completado 35 anos de idade não podem ingressar na função pública para serem providos em lugares correspondentes a categoria inferior ao de pessoal da carreira técnica ou equiparada, salvo se à data da constituição da relação jurídica de emprego já desempenhavam outras funções no Estado ou noutras pessoas colectivas de direito público com direito à aposentação, com idade inferior àquela, e desde que a transição se faça sem interrupção de serviço”.

Por força desta norma, até então, os cidadãos, com idade igual ou superior a 35 anos não podiam aceder aos cargos de Assistente Técnico ou de Apoio Operacional, designadamente de condutor ou secretária, na carreira do regime geral da Função Pública, salvo se à data do provimento já desempenhavam outras funções no Estado ou noutras pessoas coletivas de direito público. Dito de outra forma, doravante, todos os cidadãos interessados, igualmente capacitados, com idade compreendida entre os 18 anos e os 65 anos de idade, já podem participar em concursos de acesso à Função Pública, para exercício dos cargos de Assistente Técnico (nível I a VIII) e de Apoio Operacional (nível I a VI).

Bem andou os venerandos Juízes da corte do Tribunal Constitucional (TC) face ao peticionado (pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade) pelo Provedor de Justiça, que no entendimento do peticionante, a norma em questão, estaria em confronto com o estatuído pelo artigo 24.º(Princípio da Igualdade) e o n.º2 do artigo 42.º (Direito de escolha de profissão e de acesso à Função Pública)1 da Constituição da República de Cabo Verde (CRCV). Aliás, conforme estatui o n.º 5 do artigo 17.º da CRCV, “As leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias serão obrigatoriamente de carácter geral e abstrato, não terão efeitos retroativos, não poderão diminuir a extensão e o conteúdo essencial das normas constitucionais e deverão limitar-se ao necessário para a salvaguarda de outros direitos constitucionalmente protegidos”.

Historicamente, esta limitação etária de acesso ao funcionalismo público data de 5 de março de 1929 (sucedido de vários diplomas com teor idêntico até a presente data), através do Decreto 16.563, publicado no Diário do Governo, I Série, n. º52, ou seja, há 93 anos, em que se previa que “de futuro nenhum cidadão poderá ter primeira nomeação para lugar de acesso em qualquer repartição pública do Estado, corporações e corpos administrativos, de categoria ou vencimentos inferiores aos de chefe de repartição, com mais de trinta e cinco anos”. O próprio Estatuto do Funcionário Ultramarino de 1956 no n. º1 do artigo 12.º prescrevia que “Os indivíduos que tenham completado 35 anos não podem ser nomeados para lugares de acesso, de categoria inferior ao grupo F do artigo 190 deste diploma, se à data da nomeação não estiverem providos noutro lugar público, do qual transitem sem interrupção”, incisos legais que, entretanto, revogados em Portugal em 1976, através do Decreto-Lei n. º232/76, de 2 de abril.

Esta norma influenciou o nosso legislador que a transpôs para a ordem jurídica interna, e após a abertura política ( ver o n.º1 do art. 5.º da Lei 102/IV/93, de 31 de Dezembro, publicada pelo B.O, I Série, n.º49, Sup.,)fixara o regime jurídico da constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na função pública, mantendo o espírito da norma, o qual dispunha que “ os indivíduos que tenham completado 35 anos de idade não podem ser providos em lugares de acesso de categoria inferior ao de pessoal de carreira técnica ou equiparado salvo se à data da constituição da relação jurídica de emprego já desempenhavam outras funções no Estado, ou nos municípios com direito a aposentação, com idade inferior àquela, e desde que a transição se faça sem interrupção de serviço”.

A posição do TC veio elucidar uma questão controvertida uma vez que de um ponto de vista de justiça material, nada legitimava a manutenção da restrição de acesso ao funcionalismo público por razão de idade. O desvalor da “baliza etária” não se podia sobrepor a direitos fundamentais, como o da igualdade de todos os cidadãos perante a lei (n.º 2 do art.1.º, n. º5 do artigo 17.º, n. º2 do art. 42.º, nº1 do art. 56.º da CRCV), objeto de tutela constitucional e passível de restrição o necessário para a salvaguarda de outros direitos constitucionalmente protegidos, mas sustentadas numa situação fáctica adequada e proporcional.

O Direito de escolha de profissão e de acesso à Função Pública (art.42.º da CRCV), reconhece que todos os cidadãos têm direito de acesso à função pública, em condições de igualdade, nos termos estabelecidos na lei, sendo que o acesso e o desenvolvimento profissional, deve basear-se no mérito e na capacidade dos candidatos ou agentes (n.º 6 do art. 241.º da CRCV).

O princípio da igualdade enquanto princípio disciplinador de toda a atividade pública nas suas relações entre os cidadãos e, ainda que em menor grau, nas próprias relações entre privados assume duas dimensões essenciais: (a) proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; (b) proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias.

Por seu turno a proibição do arbítrio é um limite à “liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo: nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser arbitrariamente tratado como igual”;

last but not least, o Acórdão n.º 60/2021 de 6 de dezembro, declara também que relativamente ao artigo 5.º parágrafo primeiro, da Lei 102/IV/93, de 31 de dezembro, que fixa o regime jurídico da constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na função pública, e o artigo 12.º parágrafo primeiro, do Estatuto do Funcionalismo ultramarino, aprovado pelo Decreto do Ministério do Ultramar 49.165, de 18 de julho de 1969, não podem ser repristinados2.

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1 Um Direito que se enquadra no catálogo dos Direitos, Liberdades e Garantias Individuais, de acordo com a CRCV.

2 A repristinação é um instituto que determina a vigência de uma Lei revogada em virtude da revogação da Lei que a revogou em um primeiro momento. Em outras palavras, é o fenômeno jurídico pelo qual uma Lei volta a vigorar após a revogação da Lei que a revogou.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1051 de 19 de Janeiro de 2022. 

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Autoria:Manuel Mendes Garcia,24 jan 2022 8:01

Editado porAndre Amaral  em  11 mar 2022 9:19

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